No último final de semana, dias 18 e 19/05, a praia Formosa, mais conhecida como Leste-Oeste, localizada em Fortaleza-CE, sediou o primeiro Circuito Feminino de Surf do estado. Após o fatídico episódio da morte da Luzimara, surfista local, a iniciativa ganhou fôlego, uma responsabilidade e um significado a mais, pois homenageou a atleta intitulando a etapa com seu nome e estampou sua foto nas camisetas do evento. As ondas e a areia da praia, ainda com resquícios estereotipados e estigmatizantes, foram palco de um movimento potente e, provavelmente, irreversível.
Ainda que não tenha participado presencialmente, os comentários, a repercussão, os números do evento e uma conversa de almoço despretensiosa foram mais que suficientes para instigar e estimular a escrita. Ademais, todos esses fatores supracitados corroboram e refutam uma pseudo aporia inquietante que serviu e serve como justificativa para a manutenção de certas relações de poder. Desestruturar um argumento e apresentar a sua incoerência interna por meio da concretização de uma ideia é mais do que digno e válido. Não poderia me furtar ainda que a ausência e a própria escrita possam ter seus preços.
Segundo uma das organizadoras, Joana Meireles, o evento contou com 98 meninas inscritas e divididas em categorias, como mini Surf Ladies (sub 12), Surf Ladies Iniciante, Intermediária e Avançada, Surf Ladies Open; Surf Ladies Master, Body Board Open, Body Board PRO AM e casadinha (uma participante de surf, juntamente com outra de body board). A locução também foi realizada por uma mulher e, em cada bancada de árbitros, havia uma árbitra. Um cuidado para manter a representatividade em todos os níveis e setores do evento e um zelo para fomentar o protagonismo.

Diante do valor atribuído e o cuidado com os detalhes o campeonato colecionou conquistas e rompeu com uma aporia clássica e bastante ouvida quando se trata das mais variadas modalidades esportivas de mulheres: “não tem boa premiação, pois não tem muita adesão e participação, não me inscrevo, pois a premiação é ruim”. Vale ressaltar que o mesmo argumento já foi utilizado como tentativa de justificar a inexistência de competições. Esse caminho ou pensamento se apresentava de forma a não possuir saída. Inquestionavelmente, dado os números e a repercussão do evento, o problema parece ter sido solucionado. As justificativas não são mais plausíveis. Suspeito que a gênese desse tipo de argumento ancora-se em um juízo de valor mascarado e imiscuído de interesses. O primeiro evento mostra que uma pseudo aporia se resolve com o valor que se dá ao juízo e não com juízos de valor transfigurados nas mais variadas formas.
A própria condição de ser um campeonato somente de mulheres e para mulheres auxilia no combate da lógica patriarcal dominante e hegemônica que produz efeitos, muitas vezes, danosos. A prova disso é a supervalorização do polo masculino, tido como o padrão de performance e qualidade que resulta em comparações prejudiciais, infrutíferas e, geralmente, depreciativas para o polo feminino. A materialização do campeonato e o consequente deslocamento da centralidade masculinizada tende a produzir comportamentos variados que se alteram entre elogios, desconfortos, indiferenças e silêncio. Um caldeirão efervescente de afetos.
O Ceará é berço de atletas com destaque nacional e internacional, como Silvana Lima e Tita Tavares. Todavia, de forma geral, o esporte permanece na periferia e o surf feminino ainda possui menos prestígio no que tange a valorização, o respeito e os patrocínios. A iniciativa do campex é amplamente profícua, pois nasce de forma ativa e afirmativa com vistas a engrandecer aquilo que, dada as relações de força e o pouco interesse de outros organizadores, parecia pequeno, mas já era grande. A proposta, declaradamente, combate a insistente associação e valorização dos atributos corporais em detrimento da qualidade técnica e tática para os moldes competitivos. O tensionamento tem tido vez e voz, e o conflito tem se instaurado em diversas esferas.

Para além do evento, ainda é notória e perceptível algumas ações que diante de um mar de mulheres procura um homem, ao ver um carro de mulheres, procura o motorista, uma casa de mulheres, procura um pilar de segurança. Em territórios em que alguns corpos são, corriqueiramente, sexualizados e, muitas vezes, invisibilizados, a ocupação dos espaços e a visibilização dos ganhos são armas eficientes nas disputas políticas.
O sintomático silêncio, em determinadas ocasiões, grita. O incômodo foi gerado e os efeitos parecem ter sido produtivos. Na esteira de tantas conquistas, algumas questões adquirem relevância, como a necessidade de cursos de arbitragem e formação para possíveis professoras. Vale ressaltar que já existem ações que corroboram para a desestabilização dessa estrutura tradicional e conservadora. A própria WSL (World Surf League) já adota a política de isonomia de premiação. Tal medida já foi aderida pelo próprio circuito brasileiro de surf.
A competição na água escancara uma luta diária e uma dificuldade em diversos âmbitos. Até chegar à água muitas conjunturas cristalizadas precisaram ser combatidas. Ao chegar à água, outras tantas iniciarão. Ao permanecer no cenário do surf, seja local, nacional e internacional, os desdobramentos são incomensuráveis. Insisto no deslocamento do surf feminino para o surf de mulheres. Digo isso influenciado por algumas intelectuais do esporte que questionam o acoplamento de determinados termos às expectativas de comportamentos sociais. Dessa forma, questões, aparentemente, imperceptíveis e naturalizadas passam a ser estranhadas e alguns padrões tradicionais do surf passam a perder relevo e capilaridade.
As bundas têm dado lugar a remadas, rasgadas e batidas. Aguardemos as próximas cenas e já aguardamos as demais etapas desse circuito que já mostrou a que veio.