30.5

Quanto dura um instante?

Katia Rubio 20 de dezembro de 2011

“Adoro cortinas que se abrem

Adoro o silêncio antes do grito

Adoro o infinito, de um momento rápido

O instrumento gasto

O ator aflito”.

Zélia Duncan

 

Comecei esse texto assistindo à final Barcelona e Santos. Era início do segundo tempo e o Barcelona ganhava por 3 x 0. Vi um Santos recuado, com o semblante carregado, a responsabilidade pesando sobre as costas. Sim, afinal é a final do campeonato mundial, competição que se repete todos os anos no comecinho do nosso verão e do inverno no Hemisfério Norte, como se a emoção toda gerada ali pudesse aquecer os vários meses de frio.

Ouvi no final do jogo contra os japoneses, na última quarta-feira, que a única coisa que o Santos poderia fazer contra o Barça seria jogar para se divertir, afinal era esperado um duelo de Sansão (e não Santos x São Paulo) e Golias. Isso queria dizer o quê? Que a vitória do Barcelona já era líquida e certa? O que dizer então do locutor que falou ao menos 5 vezes que o Barça era um time de outro mundo e que não havia nada a fazer diante daquilo?

Equipe base do Barcelona em jogo contra o Panathinaikos em Atenas. Foto: Tasos Kaimenakis.

O futebol não é diferente do esporte olímpico. Tirando as quantias incalculáveis que circulam nesse comércio chamado futebol, ele envolve pessoas que competem, que vibram com a vitória e sofrem com a derrota, que dedicam suas vidas a gastar seus corpos em treinamentos sem fim, que divertem milhões mundo afora com cenas magistrais de habilidade, mas que como heróis são também sofrem como os mortais.

A vitória em um jogo ou campeonato imortaliza, ainda que por alguns dias ou semanas. Ok. Em alguns casos o efeito residual de uma vitória dura muito mais a depender da equipe de marketing que está trabalhando com esse “produto”. Mas, quando discuto a duração de um instante, procuro falar do ponto de vista do protagonista. O momento de uma competição que é ditada pelo cronômetro tem a precisão do instrumento que aufere aquela manifestação: sejam os 90 minutos no futebol, os 40 do basquete, os 5 minutos do judô, os 10 segundos dos 100 metros rasos. Embora hoje os relógios marquem precisamente os décimos, centésimos e milésimos de segundos isso pode representar a eternidade para aquele que protagonizou a ação que permanecerá na memória daqueles que assistiram, torceram e se emocionaram com algo tão raro.

São muitos os atletas que relatam não terem lembranças da competição que eternizou alguma de suas ações. E não falo apenas das modalidades cujo imperativo é a velocidade.

A memória é muito curiosa porque retrata uma condição afetiva daquilo que é lembrado e que envolve o fato em si, a emoção que envolve o fato e o desejo (ou não) de recordá-lo. Por isso lembramos com detalhes precisos algumas passagens de nossas vidas e outras simplesmente “apagamos”. Podemos chamar a isso de mecanismo de defesa, mas não é exatamente sobre isso que desejo discutir aqui. Pretendo gastar um pouco de tinta para falar sobre o significado de algum episódio que marca vidas. Falo de um momento raro, por exemplo, da vida do atleta, que por ser um figura pública protagoniza uma ação que pode significar muito para si mesmo, e também para milhões que assistem aquele episódio, as vezes magistral.

E o que é curioso, no caso do esporte, é que podemos lembrar da competição em si, dos atletas envolvidos no jogo, de passes magistrais, gols de placa e, em casos extremos, a escalação de todo o time titular e reserva. É assim que funciona a memória. Precisão cirúrgica para aquilo que interessa.

Mas, faço todo esse preâmbulo para voltar ao jogo do Santos. Que lembrança teremos desse jogo daqui alguns anos ou décadas? Nesse exercício de futurologia provavelmente me lembrarei, com irritação, da afirmação do locutor esportivo de que o Barça é um time do outro mundo, e a irritação será fruto da relação que farei porque o locutor certamente quis dizer que o Santos é desse mundo, ou seja, é um time menor. Certamente lembrarei disso com irritação porque há nessa construção uma proximidade com a situação vivida pelos atletas olímpicos: eles ouvem durante quase toda suas vidas que têm que treinar e competir, mas ninguém diz a eles que chegarão a ser campeões, afinal… os outros, os estrangeiros, os americanos ou europeus, são sempre melhores.

Não sou ingênua suficiente para achar que o Santos era melhor que o Barça. Eu assisti ao jogo e vi uma equipe impecável, um espetáculo, mas daí a desmerecer o trabalho que Muricy e os jogadores fizeram é inadmissível. Não suporto ver chutarem cachorro morto. Os mesmos que hoje narraram a condição alienígena do Barça, na última quarta-feira não cansaram de endeusar Neymar e os meninos da Vila. Por que será que o brilho se apagou? O que mudou tão drasticamente no jogo da equipe da Vila Belmiro? Lembro dos comentaristas mais conscienciosos dizendo que para ganhar da equipe catalã seria preciso jogar bem mais do que contra a equipe japonesa, mas que o resultado era fantástico, que Neymar é o melhor do mundo e que não é consagrado como tal porque não joga na Europa. O Barcelona é hoje bem mais do que um time de futebol. Ele é uma escola, tanto do ponto de vista da formação de jogadores como do ponto de vista da criação de um estilo de jogar. Basta olhar para o time e ver, historicamente, como foi construído o sistema tático que prevalece até hoje. E não vou falar do Barça no qual jogaram Romário, Ronaldo e Ronaldinho, porque parecerá que só me lembro disso por causa dos brasileiros que lá jogaram. Falo de um Barcelona que marcou a história por ter amor a sua camisa sem patrocinadores, que representa a identidade nacional da Catalunha e que não transpira a arrogância de outros times que desejam ser de outra Galáxia, mas que mal conseguem ser vitoriosos no próprio estádio.

Hoje o Santos não jogou contra um time do outro mundo. Jogou contra um time que tem identidade, mesmo em um sistema determinado pelas grandes negociações que fazem os jogadores beijarem o brasão do time sem nem saber ao certo qual é a sua história recente e ainda assim declararem que “são” dali desde criancinha.

Neymar em jogo amistoso da seleção brasileira em Londres. Foto: André Figueiredo.

Neymar é sim um atleta espetacular, mas é desse mundo, um brasileiro tão habilidoso como tantos outros que não tiveram a sorte de ter um pai com “espírito empreendedor”, nem empresários espertos o suficiente para transformá-lo nesse grande produto no qual ele se tornou. A começar de seu colega de equipe, Paulo Henrique Ganso.

Como assisti ao jogo no Rio de Janeiro, pelo menos não ouvi os gritos, já esperados, Chupa Peixe, a cada gol do Barcelona.

Os 90 minutos do jogo de hoje me fizeram pensar na breve eternidade do instante no mundo que vivemos e o quanto o esporte contribui para isso. Quantos atletas gastam anos de suas vidas buscando o aprimoramento técnico para chegar a competições que podem definir suas carreiras. E essas vidas são construídas de instantes de treinamentos, que somados geram quase o infinito; de instantes que valem índices ou vagas que levam a competições como mundiais ou Jogos Olímpicos; de instantes nas competições que marcarão, ou não, a própria história, a história do esporte ou do país, a depender do resultado obtido. Para depois de tudo, o público, a mídia ou o próprio atleta dizer: “não me lembro ao certo o que aconteceu”, seja para poder se proteger da dor causada pelo resultado obtido ou simplesmente porque foi, de fato, tudo tão breve.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Katia Rubio

Professora da Escola de Educação Física e Esportes da USP.

Como citar

RUBIO, Katia. Quanto dura um instante?. Ludopédio, São Paulo, v. 30, n. 5, 2011.
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