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Quanto vale o jogo?

Leandro Marçal 26 de setembro de 2017

Só resolvi ir a um estádio de futebol pela primeira vez depois de tanto ouvir uma propaganda antiga de uma empresa do ramo alimentício. Era possível trocar uma lata de achocolatado por um lugar na arquibancada. Foi assim que eu consegui juntar uns solitários trocados para ir a um jogo qualquer de estadual no começo da década passada.

Os anos passaram e fui mais vezes a partidas de futebol profissional. Menos do que já quis um dia, mais do que muita gente conseguiu. E que com os preços atuais, dificilmente conseguirá sem comprometer o orçamento e contas domésticas.

A experiência de estar em um lugar gigantesco com milhares de pessoas torcendo pelo mesmo objetivo é algo inigualável e curioso. Lembra um pouco essa lenda estranha que alguns inocentes acreditam, na qual basta pensar positivo para tudo na vida melhorar como num passe de mágica.

A tal promoção do achocolatado foi embora há uns bons anos. Meus solitários trocados não se juntam há muito, o que me distancia de estádios e arenas com essa denominação estranha.

Estava em frente ao notebook do trabalho quando um amigo pediu para ver o preço de ir ao jogo da Seleção Brasileira contra o Chile, no estádio do Palmeiras – posso ser processado se não chamar de arena? – quando vi que uma entrada custava o preço de uma mensalidade do meu plano de saúde.

(Pois é quando passamos a comparar o valor de qualquer mercadoria, produto ou serviço com outra conta mais urgente é que percebemos a chegada da vida adulta, um caminho sem volta enquanto houver sanidade mental).

BELO HORIZONTE / BRASIL (01.04.2017) Cruzeiro x Atlético-MG, no estádio Mineirão, em Belo Horizonte, pela 10ª rodada do Campeonato Mineiro de 2017 © Washington Alves/Cruzeiro
O estádio Mineirão, em Belo Horizonte, foi um dos que se transformou em Arena. Foto: Washington Alves/Cruzeiro/Light Press.

E foi entre cervejas e música alta que eu e uns amigos discutíamos sobre o que é uma quantia justa a se cobrar por uma partida qualquer in loco. Sempre longe do radicalismo dos que exigem uma gourmetização completa ou ingressos a ainda ao preço de uma lata de achocolatado.

É tudo tão caro, penso eu. E o trabalho de sair de casa, cruzar avenidas intransitáveis, correr o risco de encontrar brigas sem sentido e futebol sem qualidade é tão grande que nós, os zumbis dos aplicativos de mensagem no celular (pois me recuso a falar smartphone por questões ideológicas), vamos nos acostumando às televisões grandes cobrindo a parede da sala com todos os campeonatos ali disponíveis em um clique no controle remoto.

Já havia tomado cerveja suficiente para saber que o valor da conta daria o preço de um ingresso para o jogo da rodada seguinte do Campeonato Brasileiro.

Fico pensando em quais serão as estratégias para atrair as novas gerações aos estádios (ou arenas?). O futebol é pior que o dos países exibidos na TV grande cobrindo a parede da sala, o preço é maior do que o de uma lata de achocolatado e os problemas parecem nunca ter fim. Nos meus piores pesadelos, apenas os velhos e antiquados vão torcer por times nacionais em um futuro nem tão distópico assim.

Ainda não me acostumei à ideia de que o preço de um jogo aumenta conforme percebemos o quão caros são esses novos estádios (ou arenas?), ainda que o valor pago não seja proporcional à qualidade do esporte ali praticado à nossa frente.

Nesse ano, não fui e nem devo ir ao estádio. E um quilo de carne está tão caro quanto a arquibancada. Não pagaria o valor do meu plano de saúde a algum jogo, nem (ou tampouco) da seleção, mas acho justo ingressos mais caros para as principais decisões. O problema é que já faz um bom tempo que o futebol daqui não vale mais que uma lata de achocolatado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Quanto vale o jogo?. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 26, 2017.
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