Há poucos dias o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, uma vez mais fez uso das redes sociais. Ele costuma se comunicar desta forma com seguidores, além de outros interessados, de modo que o fato não chamou a atenção, tampouco que tenha ignorado desmatamento, pandemia, segurança pública, democracia, evidências científicas, situação indígena, população quilombola etc., em um intervalo de uns poucos minutos. Final das contas, melhor que não tenha se dedicado a qualquer desses temas, ao contrário, com isso ele poupou a todos de ouvirem frases sem sentido, de escassa correspondência com a realidade ou que desdenham de populações vulneráveis. A ação foi mais prosaica, ele brindou seu público com uma mostra de camisetas de equipes do futebol brasileiro, as quais vestiu e desvestiu, a pedido dos interlocutores, fotografando-se com elas.

Há os que têm camisetas de vários clubes e aqueles que ostentam no armário diversos modelos do mesmo time – atuais, retrôs, históricos, comemorativos, autografados etc. Bolsonaro é um político de extrema-direita que sempre esteve no mesmo lugar, embora tenha trocado muitas vezes de partido. Fez isso porque nunca jogou para o grupo, ou melhor, jamais atuou com senso de coletividade, mas, ao contrário, transferiu seus interesses de legenda para legenda.

Presidente da República, Jair Bolsonaro, assiste à partida de futebol entre Palmeiras x Vasco da Gama, válida pelo campeonato brasileiro 2019 (São Paulo – SP, 27/07/2019). Foto: Marcos Corrêa/PR (Fonte: Wikipédia)

Não é nova a inclinação de ditadores (ou de simpatizantes do ofício) ao uso e abuso do futebol. Benito Mussolini não deixou de comemorar como feito seu e da juventude fascista a vitória na Copa do Mundo de 1934, disputada na própria Itália. Quatro anos depois, o bicampeonato foi conquistado na vizinha França, e Il Duce destacou que a vitória se dera no país governado pela Front Populaire, com o êxito sendo creditado à “excelência atlética e espiritual da juventude fascista na própria capital do país em que os ideais e métodos são antifascistas”.

Emílio Garrastazu Médici, o general de sangrento governo do final da década de 1960 e início da seguinte era fã de futebol, direito que assiste a qualquer pessoa. Mas, não se furtou de tentar buscar popularidade por meio dele, bem como justificar, direta ou indiretamente, suas ações. Em uma crônica de Marcelo Rubens Paiva (“Rei brasileiro é muito admirado no mundo“, 1994), lemos que logo no início da Copa do Mundo de 1970, o Ministério do Exército publicou, comentando o sequestro do Embaixador alemão no Brasil promovido pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), a seguinte nota:

“Pelé, Brito, Clodoaldo, Rivelino e outros craques lamentaram que mais traidores e criminosos venham quebrar a tranquilidade e entusiasmo da seleção. Lamentaram que os terroristas, a serviço dos países comunistas, tentem com atos criminosos atingir um país amigo.”

A liberdade de Ehrenfried von Holleben, o diplomata teutônico, foi trocada pela de quarenta presos políticos que, recebendo pena de banimento do país, embarcaram para a Argélia, começando um exílio que duraria, para os que não morreram antes, nove anos. No país africano, antes que parte do grupo se espalhasse pela Europa e pela América, a postura frente à campanha do selecionado no México foi tema de debate: torcer para o time brasileiro ajudaria à ditadura e, por isso, seria ilegítimo? As posições se dividiram, conta Fernando Gabeira em seu “O que é isso companheiro?“, até que o primeiro gol brasileiro acabou com a cisão. Todos comemoraram.

Não torcer pelo selecionado de futebol do próprio país não é atestado de falta de patriotismo ou coisa que o valha, mas as ditaduras também usam esse golpe baixo para desacreditar seus opositores. Quando o Mundial foi disputado na Argentina, em 1978, o país vivia o terceiro ano de seu regime de exceção mais recente, aquele que começara com a deposição da presidente María Estela Martínez de Perón em 24 de março de 1976. A Junta Militar que governava o país costumava divulgar via imprensa sensacionalista que os Montoneros – grupo armado de inspiração peronista – pretendiam prejudicar o desenvolvimento da Copa. A liderança do movimento no exílio em Roma veio a público não só para desmentir o que general Jorge Rafael Videla, o chefe da junta ditatorial, dizia, mas também para afirmar sua torcida pela seleção nacional. O grupo denunciava, ademais, a forte pressão sobre a imprensa europeia, para que, uma vez na América do Sul, ela se limitasse a mostrar a Copa e nada mais.

Por falar em imprensa europeia e ditadura, não deixou de fazer-se notar uma matéria reproduzida pela Folha de São Paulo no último dia 15, de cinquenta anos antes, segundo a qual o já citado ditador Garrastazu Médici reclamara de jornalistas do além-mar. O general teria declarado que o Brasil “É um ambiente de paz e de trabalho, que, infelizmente, tem sido deturpado por alguns órgãos da imprensa europeia, que procuram dar a falsa impressão de que o governo brasileiro não respeita os direitos da pessoa humana ”. Criminoso.

Jair Bolsonaro também costuma criticar os europeus, que contariam mentiras sobre a Amazônia, e elogiar a ditadura empresarial-militar que começou em 1964. Como muitos líderes demagogos, dedica-se ao futebol como algo “do povo”, vestindo a camiseta de seus times preferidos e de mais alguns outros. Há poucas semanas trajava a do Esporte Clube Bahia, e seu gesto parece não ter caído bem na Boa Terra. Fico contente que ele tenha renegado a do Corinthians no seu troca-troca de dez dias atrás.

Presidente da República, Jair Bolsonaro, assiste à partida de futebol entre Palmeiras x Vasco da Gama, válida pelo campeonato brasileiro 2019. (São Paulo – SP, 27/07/2019) Foto: Marcos Corrêa/PR (Fonte: Wikipédia)

Os Montoneros bradavam Argentina Campeón, Videla al Paredón! em 1978. Não quero isso para Bolsonaro, é evidente. Não desejo sua morte, muito menos fuzilado, método, aliás, sobre o qual ele já manifestou simpatia. Quero apenas que ele responda devidamente por seus atos, como sua postura negacionista e anticientífica, que tanto mal tem causado. Levantar uma caixa de cloroquina como se fosse um troféu frente à horda em júbilo, sequestrando o gesto dos campeões, é a pantomima que o resume. Quando vejo dirigentes de clubes tradicionais do futebol brasileiro congratulando-se com ele, sinto que algo vai mal. Melhor que o futebol fique longe do fascismo.

Ilha de Santa Catarina, julho de 2020.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Que o futebol fique longe do fascismo. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 57, 2020.
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