04.2

Que os erros de 1950 não se repitam em 2014

Marcel Diego Tonini 9 de outubro de 2009

Neste pequeno texto, a intenção é mostrar sucintamente alguns dos erros cometidos pelo Brasil na Copa do Mundo de 1950 como forma de alerta para a próxima Copa sediada novamente em solo nacional, a de 2014.

Muitos dizem que até hoje ninguém conseguiu explicar, nem mesmo os personagens diretamente envolvidos naquele fatídico dia 16 de julho de 1950, por que o Brasil perdeu a Copa em casa para o Uruguai, diante de um público de aproximadamente 200 mil pessoas no Maracanã. Se é tão difícil e complexo achar respostas para a “derrota de todas as derrotas”, ao menos podemos apontar os erros cometidos pelo nosso país naquela IV Taça Jules Rimet, o que inclui não só os do nosso selecionado, mas também os da comissão técnica, dos dirigentes, dos políticos, da imprensa e da torcida brasileira.

Comecemos pelos erros da comissão técnica. Ainda que nos dias de hoje seja bastante tempo de preparação (praticamente inviável), três meses no calendário futebolístico da época era um período razoável para que a equipe se formasse, treinasse e estivesse apta para a competição. Contudo, o próprio Mario Filho, integrante daquela comissão, havia indicado seis meses, o que não foi acatado por Flávio Costa, cujo argumento foi o tédio que tomaria os jogadores. A discórdia foi o motivo do desligamento tanto de Mario Filho quanto de Máximo Martinelli do grupo (esse último contestou a convocação de dois jogadores). Flávio Costa estava no auge de sua carreira como técnico e tinha uma personalidade forte, além da fama de disciplinador.

Embora estivesse no cargo desde 1944, Flávio Costa nunca havia enfrentado uma equipe européia e isso era motivo de muita preocupação para ele, uma vez que acreditava serem os países da Europa os principais adversários em busca do então inédito título mundial. Pior do que subestimar a capacidade dos uruguaios (nosso maior rival sul-americano naquele certame) era não considerar o risco da familiaridade entre o nosso futebol e o futebol do Uruguai. Pois uma coisa era surpreender adversários que desconheciam nossos jogadores e nossa maneira de jogar; outra era enfrentar uma seleção que já sabia o que a aguardava.

Se não bastasse isso, nossos dirigentes ainda acabaram marcando a disputa da Copa Rio Branco, tradicionalmente jogada entre Brasil e Uruguai. Assim, essas duas equipes escalaram praticamente os mesmos titulares que entrariam na final da Copa do Mundo, dali apenas dois meses. Hoje nenhum técnico em sã consciência faria isso, uma vez que se deixa à vista o esquema tático e diminui as chances de surpreender o adversário. Foi o que o técnico e a seleção uruguaia fez, tal como revela o goleiro uruguaio Máspoli: “Embora eles vencessem o torneio, nós tiramos experiência daquelas partidas. […] Se não tivesse havido aquela Copa Rio Branco, aí sim, não ganharíamos nunca.” (PERDIGÃO, 2000, p. 92).

Outros erros cometidos pelos nossos dirigentes dizem respeito à organização da Copa. A distribuição geográfica das partidas era um ponto bastante questionável, já que havia um ligeiro favorecimento a seleções postulantes ao título (como Brasil, Inglaterra e Itália), ao passo que seleções menos prestigiadas eram obrigadas a percorrer grandes distâncias entre os locais de seus jogos (Estados Unidos, Suíça e Iugoslávia, por exemplo). Esse foi um dos motivos alegados por alguns países (como a França) que acabaram desistindo do torneio.

A falta de influência dos nossos dirigentes fez com que a Copa de 1950 tivesse o menor número de países participantes (13, juntamente com a primeira Copa, em 1930), o que acarretou em grupos de tamanhos distintos: as chaves A e B com quatro times, a C com três e a D com apenas dois. Além disso, eles exigiram da Fifa a alteração do formato de disputa, sendo a única Copa que não teve final (foi disputado um quadrangular final entre Brasil, Uruguai, Suécia e Espanha). Como se diz: “o feitiço virou contra o feiticeiro”. O que era pra ser uma segurança para a nossa seleção, que mesmo perdendo uma partida poderia sair vitoriosa da Copa, acabou se transformando em nosso pesadelo.

A ilusão da conquista brasileira, após o segundo jogo, seguida da frustração inesperada pela perda do título fez com que a Fifa nunca mais adotasse estranho formato, o qual ainda podia levar a um empate técnico. Dessa vez, a conhecida “Lei do Gerson” não vingou.

O mal planejamento dos dirigentes da CBD e da comissão técnica não ficou por aí. Ainda foram capazes de trocar a concentração da seleção brasileira no meio da competição, alegando perturbação popular depois do feito de 7 a 1 ante os suecos.

Se se concentrar em Joá estava ficando mais difícil, calcule se concentrar em São Januário, que era mais perto da cidade, do povo, dos jornalistas e dos políticos. Zizinho, o craque do nosso time, disse: “São Januário tornou-se a sede da política nacional. […] Era um tal de assinar autógrafos…” (idem, p. 101). Ademir reitera os argumentos: “Pior do que isso era o clima político que o Brasil vivia na época.” (idem, ibidem).

Lembremos que desde aqueles tempos a eleição presidencial ocorre poucos meses após a Copa. E em 2014 acontecerá novamente! Bigode também contribuiu: “Era um entra e sai bárbaro. E ali eu acho que perdemos o jogo.” (idem, p. 102). Barbosa: “Tiraram a gente do céu e colocaram no inferno. […] Nunca vi tanta gente na véspera do jogo. […] Não tínhamos liberdade, nem tranqüilidade. […] Toda hora apareciam políticos querendo se promover às nossas custas para ganhar votos.” (idem, ibidem).

No dia da final, os jogadores foram obrigados a assistir a uma missa, ficando muito tempo ajoelhado e em pé. Tiveram, também, o almoço interrompido por duas vezes para que Cristiano Machado e Adhemar de Barros discursassem por longos minutos na sala de troféus do Vasco. Ademir declarou: “Ficamos cansados e, o que é pior, diante de tal discurseira, que era dirigida aos ‘campeões do mundo´, ficamos acreditando piamente que nada poderia nos derrotar. Eu mesmo já me considerava campeão mundial.” (idem, ibidem). O clima de “já ganhou” tomava os jogadores, o povo e a imprensa. Há relatos que dizem que os jogadores até tinham feito contratos de propaganda com algumas marcas e empresas, antes mesmo da final.

A torcida, que entrou no clima ufanista da imprensa, cobrava não apenas o título, mas uma goleada frente ao Uruguai, tal como aconteceu contra a Suécia e a Espanha. Afinal, como disse Mario Filho: “Quem foi lá [Maracanã] naquele dia [16 de julho] foi menos para assistir a um jogo do que para participar de um carnaval que já houve.” (idem, p. 108).

O momento único da nação e de quase glória para nosso futebol levou os jornais a publicarem matérias ufanistas e nada cautelosas às vésperas da final: “O que todos querem, agora, é o título de Campeão Mundial de Futebol para o Brasil, um título que aumentará o prestígio de nossa terra em todo o mundo. […] Uma vitória ainda maior é o que todos desejam!” (O GLOBO, 15/07/1950). “Amanhã venceremos o Uruguai!” (A GAZETA ESPORTIVA, 15/07/1950). “Amanhã, 200 mil pessoas assistirão à sua consagração.” (DIÁRIO CARIOCA, 15/07/1950).

Contudo, certamente a manchete que mexeu com os brios dos uruguaios foi a do jornal O Mundo, que na manhã de 15 de julho publicou exemplares com uma foto de capa dos jogadores brasileiros perfilados, contendo os seguintes dizeres “Estes são campeões do mundo!”. Os dirigentes da AUF sabiamente utilizaram esse periódico para estimular os seus jogadores.

Se todos esses erros não fossem suficientes, minutos antes de começar a partida derradeira, o então prefeito do Rio de Janeiro, Ângelo Mendes de Moraes, proferiu um último discurso, repetindo infelizes palavras que já havia pronunciado aos jogadores no jogo contra a Iugoslávia. Vejamos:

“Vós, brasileiros, a quem eu considero os vencedores do Campeonato Mundial! Vós, jogadores, a que menos de poucas horas sereis aclamados campeões por milhões de compatriotas! Vós, que não possuís rivais em todo o hemisfério! Vós, que superais qualquer outro competidor! Vós, que eu já saúdo como vencedores! […] Cumpri minha promessa construindo esse estádio. Agora, façam o seu dever, ganhando a Copa do Mundo! Jogadores do Uruguai: o desporte no Brasil os saúda com o coração aberto! Jogadores do Brasil: 52 milhões de brasileiros esperam pelo título mundial! Não frustrem essa esperança!” (PERDIGÃO, 2000, p. 114).

Se por algum motivo ainda os jogadores não sentiam, até esse momento, o peso do favoritismo, passado o discurso não tinha mais como negar o fardo. Como diz o dito popular, era a “pá de cal” que estava faltando.

Talvez em vez de nos inconformarmos com a derrota frente aos uruguaios e nos perguntarmos por que ela aconteceu fosse mais prudente refletirmos sobre os inúmeros erros, de maneira a não cometê-los mais nas próximas Copas, sobretudo na de 2014, quando o Brasil voltará a ser sede. Que não culpem nossos jogadores negros em caso de nova derrota em solo nacional, tal como fizeram em 1950 com Barbosa, Bigode e Juvenal, os quais passaram o resto da vida pagando pelos erros de toda uma nação.

Bibliografia
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Que os erros de 1950 não se repitam em 2014. Ludopédio, São Paulo, v. 04, n. 2, 2009.
Leia também:
  • 152.23

    La guardia de Los ´Charrúas`

    Arturo Lezcano
  • 143.37

    Whisky brasileiro, Jules Rimet e Obdulio Varela: bastidores do Maracanazo 1950

    Gabriel de Oliveira Costa
  • 138.33

    A rivalidade entre Brasil e Argentina no imaginário do futebol da Paraíba de 1950

    Raniery Soares