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Quem é Salathiel de Campos?

Bruno Jeuken Souza 24 de fevereiro de 2019

Eu não conheço Salathiel de Campos. Ninguém mais conhece.

Quem é Salathiel de Campos? Quem é Leopoldo Sant’Anna? Quem é Tatu? Quem é Arlindo Veiga dos Santos? Quem é Petronilho de Brito? Quem é Gibi? Quem é Bisoca? Eu não os conheço. Ninguém mais conhece.

São muitas perguntas para um texto só. Em geral temos lido só as manchetes. Você se deu ao trabalho de ler o texto, já leu dois parágrafos e não teve nenhuma informação. As informações não fazem mais tanta diferença atualmente.

Outra pergunta:

Quem é Chico Mendes? Chico Mendes é irrelevante?

Algumas perguntas são feitas para escrever História, outras, para reescrevê-la. Que tempo difícil.

Calma, já vou escrever o que sei sobre Salathiel de Campos, mas antes preciso compartilhar meus receios.

No momento em que vivemos, a verdade não é o horizonte do raciocínio e do método. A verdade, hoje, é tão flexível quanto absoluta. Para alguns, Ustra é um herói e Chico Mendes é irrelevante. É a verdade como ferramenta, não como objetivo. Que tempo difícil!

Se eu disser agora que Salathiel de Campos é uma das figuras mais importantes da inclusão de negros no esporte de São Paulo, como isso será interpretado? A quem essa informação irá servir?

E se eu disser que Salathiel de Campos fez parte de um movimento monarquista, e que o movimento negro do qual participava se aproximou do fascismo no início dos anos 30, como isso será interpretado? A quem essa informação irá servir?

Se depois disso eu disser que ele foi funcionário do veículo de imprensa do reacionário Partido Republicano Paulista? E se disser que era religioso? A quem servirá conhecer essa informação hoje em dia?

Melhor não dizer.

Mas não vivemos o primeiro momento difícil da história. Isso é certo.

O tempo de Salathiel de Campos não foi fácil, ainda mais para pessoas como ele. Nasceu em março de 1901, negro, de família pobre, caipira de Piracicaba. A escravidão havia sido abolida (por lei) havia menos de 13 anos. O penta da seleção brasileira de futebol é mais antigo para nós do que a escravidão para o bebê Salathiel.

Na sua adolescência, a guerra mais sanguinária da história até então. Na primeira década de vida adulta, a maior crise econômica da história (até então), e a ascensão de regimes totalitários pelo mundo. Depois, já mais velho, uma ditadura em seu país e uma guerra ainda maior e mais fatal. Tudo isso vivendo num espaço e num tempo ainda mais racistas e segregacionistas do que hoje.

E agora? Falo mais sobre Salathiel ou não? Corro o risco de instrumentalizá-lo ao parecer dizer: essa é a direita de que precisamos, essa é a boa direita, não a que está aí. Corro o risco de que outros o instrumentalizem, dizendo: veja só como temos ícones políticos negros, como podemos ser racistas?!

Daí a importância da História: evitar anacronismos, analisar Salathiel de Campos como um homem de seu próprio tempo, entender o quanto a participação política dos negros era limitada, compreender as disputas política da época e quanto esse personagem é complexo e contraditório. Mas a História ainda é respeitada atualmente? Eu acho que não.

Mesmo assim, levanto outras perguntas:

Você gosta de futebol? Você gosta de esporte? Costuma ler sobre o assunto?

Se você respondeu “não”, não pense duas vezes em buscar mais informações sobre Salathiel de Campos, ele foi muito mais do que um jornalista esportivo. Se você respondeu “sim”, faço mais duas perguntas:

Quem é Thomaz Mazzoni? Já leu ou ouviu falar sobre a História do Futebol no Brasil?

Quem é Mário Filho? Já leu ou ouviu falar sobre o Negro no Futebol Brasileiro?

Você provavelmente os conhece. São celebrados jornalistas esportivos que escreveram grandes clássicos sobre o futebol brasileiro.

Quem é Salathiel de Campos? Já leu ou ouviu falar sobre O Homem Negro no Esporte Bandeirante?

Provavelmente não. Hoje escrevo esse texto, mas alguns anos atrás também não conhecia nem um, nem outro.

Quando comecei o meu trabalho de mestrado, um generoso e genial historiador, Wilson Gambeta, cedeu uma fonte para me ajudar em minha pesquisa. Eu pesquisava a história da ideia de futebol arte, e ele me indicou esse livro de Salathiel de Campos. Achei, primeiro, que não conhecia a obra por pura ignorância. Logo vi que ninguém conhecia nem o autor, nem o livro. Com um empurrão de meu orientador, Flavio de Campos, Salathiel e toda sua impressionante obra tomaram conta da pesquisa. No fim, escrevi: Salathiel de Campos: esporte e política (1926-1938).

A universidade onde fiz minha pesquisa, a USP, foi criada no mesmo ano e contexto em que o livro de Salathiel de Campos foi publicado no Correio Paulistano (1934): a construção de uma mitologia paulistana, vencerás pela ciência, um estado avançado, honrado, construído pelos bandeirantes. Havia um esforço da elite paulistana em apagar o passado rural e escravista. Tanto a USP quanto obras historiográficas como O Homem Negro no Esporte Bandeirante faziam parte desse projeto.

A diferença: eu pude entrar nessa universidade, enquanto Salathiel, dizem as fontes, teve sua entrada no Largo do São Francisco negada simplesmente por ser negro. Os tempos eram difíceis – e mudaram muito pouco.

Já falei demais sobre Salathiel de Campos, é um risco que corri.

Se eu disser que, depois da publicação desse livro, ele chegou a chefe da redação esportiva do Correio Paulistano, logo estarão negando o racismo da sociedade brasileira como um todo. Mas você, leitor, não cometerá esse erro. Saberá compreender mais a fundo.

Se disse isso, então digo mais: já tendo militado na chamada imprensa negra por vários anos, em 1926 Salathiel de Campos levou sua mobilização para a imprensa oficial (ou imprensa branca, por que não?).

Trabalhando n’ A Gazeta, junto de seu chefe Leopoldo Sant’Anna – que comandava a redação antes do já citado Thomaz Mazzoni – Salathiel de Campos utilizou as páginas do jornal, principal mídia da época, para cavar trincheiras na luta pela inclusão dos negros no esporte.

Eram disputados nessa época os campeonatos interestaduais, e a seleção de São Paulo já havia perdido dois anos consecutivos para os cariocas – time do que era, então, o Distrito Federal. Aproveitando a brecha dada pelas derrotas, Salathiel e Leopoldo criticaram diariamente a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), entidade que defendia o futebol profissionalizado nessa época. Em suas colunas, condenaram a arbitrariedade dos dirigentes – que escolhiam as convocações – e mobilizaram os leitores a defender a convocação de jogadores negros em grande fase como: Gibi, Bisoca e Petronilho.

Ao mesmo tempo, elogiavam a Liga dos Amadores do Football (LAF), concorrente direta da APEA nas disputas do campo esportivo nas décadas de 20 e 30. Para eles – especialmente para Salathiel de Campos como fica claro no restante de sua carreira – a LAF era a grande defensora da participação dos negros no esporte.

Deu certo. Com alguns percalços que não cabem nesse texto, os atletas foram convocados.

Os que gostam da numerália podem ler o próximo parágrafo:

Na reta final do Campeonato Interestadual de 1926, o sucesso destes jogadores já era evidente. Especialmente de Petro. O selecionado paulista acumulava placares elásticos, mesmo para essa época do esporte, caracterizada por muitos gols. Contra Santa Catarina, placar de 16 a 0 – seis gols de Petronilho. De 5 a 3 contra o Rio Grande do Sul – um gol de Petronilho. E de 13 a 1 contra a Bahia – cinco gols dele. No dia 30 outubro, A Gazeta mostra o quadro dos artilheiros: Petro era líder, com doze gols, cinco a mais que o vice artilheiro, Ladislão, que tinha sete. Não foi surpresa quando, no dia 7 de novembro, no estádio das Laranjeiras, o selecionado paulista voltou a ser campeão interestadual. Como em todas edições anteriores, a final foi contra os cariocas. E o título veio com gols dele: Petronilho de Brito.

Essa campanha se tornou um símbolo para Salathiel de Campos em toda sua obra.

É desse período também a mais intensa politização de Salathiel de Campos, que começou a frequentar o Espaço Cívico Palmares (1926), onde a população negra de São Paulo se encontrava e articulava. Em seguida, foi como membro fundador de dois movimentos liderados por Arlindo Veiga dos Santos, um ícone da história do movimento negro. O primeiro: a Ação Imperial Patrianovista (1928), um movimento monarquista e nacionalista. O segundo: a Frente Negra Brasileira (1931), o mais importante movimento negro da época.

Apesar do que nosso raciocínio apressado possa levar a crer, Salathiel de Campos, membro de uma classe média negra politizada, não era crítico do status quo. Ele não queria desconstruir a sociedade paulistana como estava configurada. Queria apenas, isso sim, que os negros também pudessem fazer parte dela.

Religioso, monarquista, nacionalista, militante da imprensa negra e do movimento negro, defensor da igualdade racial, crítico do racismo, admirador da elite paulistana, crítico do futebol profissional, defensor do amadorismo.

Que personagem complexo é Salathiel de Campos.

Já estou começando a achar que qualquer pessoa mal-intencionada, que queira instrumentalizá-lo para reforçar algum discurso imbecil de nossos dias, irá logo desistir da tarefa. Compreender Salathiel de Campos exige esforços.

Com influências da imprensa negra, dos monarquistas e dos frentenegrinos, em 1934 Salathiel de Campos publica o já citado O Homem Negro no Esporte Bandeirante.

(O livro foi escrito dois anos antes, em 1932, mas para falar sobre isso precisaria falar sobre a guerra civil entre os paulistas e o governo varguista daquele ano. E não temos tempo nem espaço. Hoje em dia os textos têm que ser rápidos. Não quero perder o leitor. Vamos em frente.)

Essa não é sua única obra, mas é certamente a mais importante. Ele narra a entrada dos negros no esporte como uma conquista, fruto de muita luta, da qual ele mesmo participou (como aconteceu n’A Gazeta em 26), e chama atenção para as limitações dessa inclusão. Diz que falar em racismo no Brasil é mexer em uma caixa de marimbondos, é como “falar de cadeia perto de criminoso”. Não sabemos o nível de interferência do Correio Paulistano no texto porque não temos o original, apenas o publicado. Seja como for, o resultado final tem clareza, assertividade e coragem.

Mas quem é esse homem? Por que não o conhecemos?

Salathiel de Campos foi esquecido por ser negro. Tenho convicção, mas também tenho provas.

Há na sua obra muito de Gilberto Freyre, mas só o sociólogo pernambucano ficou conhecido. Há na sua obra muito do que Thomaz Mazzoni aproveitou depois, em 1950, mas só o jornalista ítalo-brasileiro ficou conhecido. Há muito de Salathiel em Mário Filho, numa versão pasteurizada, mas só o pernambucano radicado no Rio de Janeiro ficou conhecido.

Freyre talvez não o conhecesse, apesar de ter feito coro com Salathiel em 1938, durante a Copa do Mundo.

No dia 06 de junho daquele ano, Salathiel fala que no futebol europeu “o aspecto physico do jogador se relaciona muito de perto com a technica” e que “fiel aos regulamentos e observando os costumes, o jogador europeu põe em prática (…) o esforço physico de trancos e marretas” enquanto o futebol brasileiro era um “bailado choreograpfico, rico de improvizações momentaneas” [1].

Dez dias depois, em Football Mulato, publicado no jornal Diário de Pernambuco, Freyre diz: “O nosso estylo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa de manhã, de assistir, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual” [2].

Não afirmo que Freyre roubou a análise, seria leviano. Mas é possível dizer que, ao menos no que diz respeito à análise esportiva, ambos estavam no mesmo nível.

Thomaz Mazzoni o conhecia certamente, há relatos de viagens a trabalho que fizeram juntos, há um considerável período n’A Gazeta em que ele foi seu chefe. O ítalo-brasileiro chega a colocar em seu livro a história de Tatú, jogador negro que teve sua entrada negada no Corinthians, narrada primeiro por Salathiel. Mas para que o citar, não é mesmo?

O jornal onde Mário Filho trabalhou, O Globo, e o jornal do qual era proprietário, o Jornal dos Sports, trazem mais de uma nota sobre Salathiel de Campos, então podemos dizer que Mário Filho o conhecia, mesmo que apenas de nome. E, se realizou uma pesquisa decente para escrever seu livro O Negro no Futebol Brasileiro, deve ter tido contato com o livro de Salathiel de Campos.

Especulações…

O que é fato: ninguém o citou.

A História está também nas ausências, nos silêncios…

Em 1945, Salathiel era ainda um respeitado chefe de redação, uma importante figura da imprensa. Sua mulher, Celisa Vieira de Campos (talvez eles ainda não soubessem), estava grávida. Foi trabalhar como em qualquer outro dia, provavelmente a pé ou de bonde, dado que morava bem perto da redação do Correio Paulistano. Lá, foi interceptado por um boxer português, irritado com uma crítica do jornal ao seu desempenho em uma luta – que nem ao menos havia sido escrita por Salathiel. Na discussão, o português socou a cabeça de Salathiel, que teve um aneurisma. Foi hospitalizado. Passou os 6 anos seguintes entrando e saindo do hospital. Se afastou do jornalismo. Depois de uma comoção inicial pela agressão, foi sumindo aos poucos.

Em 1951, morreu.

Depois da sua morte, um vereador batizou uma rua com o seu nome. A publicação no Diário Oficial desse projeto de lei foi uma fonte importantíssima para que eu descobrisse quem foi Salathiel de Campos. Mas parou por aí.

Eu não o conheço.

Quem é Salathiel de Campos?



[1] Correio Paulistano, Todos os Esportes, Ao Correr da Penna, 06-06-1938, pg.10, primeira coluna. Disponível em <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/> acesso em 08/11/2015.

[2] Idem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bruno Jeuken Souza

Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do NAP-Ludens, caipira e santista (graças a deus!).

Como citar

SOUZA, Bruno Jeuken. Quem é Salathiel de Campos?. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 24, 2019.
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