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“Quiricocho”: a misteriosa ‘maldição’ que cruzou o Atlântico e ecoou na Champions League

Uma história nascida no coração da Argentina e que vez ou outra surge para assombrar personagens do futebol no mundo todo

Na última terça-feira (9), entraram em campo Borussia Dortmund e Sevilla, jogo válido pela volta das oitavas de final da UEFA Champions League. Apesar do empate em 2 a 2 nos 90 minutos, os alemães levaram a melhor no confronto graças à vitória no primeiro jogo por 3 a 2. Além da classificação dos aurinegros, a partida trouxe de volta uma lenda nascida na Argentina e que quase provocou confusão dentro de campo.

Um confronto equilibrado, cheio de emoção e muitos gols. Porém, um episódio, no mínimo muito estranho, terminou chamando levando uma parcela da atenção neste duelo. Quando uma penalidade máxima foi assinalada para o Dortmund, por volta dos 8 minutos da etapa final, a mágica aconteceu.

Enquanto o artilheiro Haaland se preparava para a cobrança, ouviu de seu potencial algoz, o goleiro Bono, alguns gritos com uma palavra esquisita, e desconhecida até então para o norueguês. “Quirichoco! Quirichoco!” gritava o guarda-redes marroquino do Sevilla, que defendeu o penal, mas não teve nem motivo para comemorar, pois o VAR flagrou ele se adiantando, e o árbitro determinou a repetição da cobrança.

Mais uma vez Bono conjurou Quiricocho, que dessa vez não o ajudou. O goleador balançou as redes e bem próximo ao goleiro repetiu aos berros o que ele falara antes das cobranças, atitude que gerou revolta de jogadores do Sevilla que partiram em busca de Haaland na comemoração, mas foram impedidos pela turma do deixa disso.

Todos bem, confusão evitada. Falemos agora do motivo para a alteração de ânimos, os gritos de Bono que foram transformados em provocação pelo artilheiro do BVB. Quiricocho. O que é e porque isso foi entoado pelo goleiro da equipe espanhola?

Quiricocho (ou Kiricocho) é uma lenda que surgiu em La Plata, Argentina, no ano de 1982. A história conta que na cidade havia um fanático torcedor do Estudiantes que gostava de frequentar o dia a dia do clube amado, se tornando figurinha carimbada nos treinos da equipe comandada por Carlos Bilardo. Acontece que a presença do torcedor chamado Quiricocho era sempre acompanhada de alguma desgraças. A cada treinamento em que ele estava, um jogador se lesionava.

Carlos Bilardo
Carlos Bilardo, principal responsável pelo surgimento de Quiricocho. Foto: Wikipédia

A história do azarado torcedor chegou aos ouvidos de Bilardo que fez questão de conhecê-lo. Carregando uma fama supersticioso, o treinador dos “Leões” foi ao encontro do maior de seus problemas naquela época, e todos temeram que Quiricocho fosse proibido de ir aos treinos e jogos do Estudiantes.

No entanto, uma decisão inesperada e audaciosa foi tomada. O comandante resolveu que queria a “magia” daquele estranho torcedor ao seu favor, e fez um acordo como ele, dando-lhe uma função importantíssima no clube. A partir de então o “hincha desafortunado” iria receber e cumprimentar todos os adversários do Estudiantes, com a intenção de passar-lhes a má sorte já conhecida em La Plata.

Aquela foi uma temporada fantástica para a equipe do Estádio Jorge Luis Hirschi, principalmente em seus domínios. Jogando em casa, o Estudiantes viveu uma época quase perfeita, sendo derrotado apenas uma vez, para o Boca Juniors.

O motivo do maravilhoso desempenho pode ter sido o ótimo time formado, mas a crença dos torcedores creditam a Quiricocho os feitos de 82. Assim como lhe foi determinado, ele recebeu e cumprimentou todos os rivais do Estudiantes que foram até La Plata, exceto um. Graças a uma equipe particular de seguranças, o time do Boca Juniors, no dia 14 de novembro, foi o único que não recebeu a saudação do “torcedor maldito”, e impediu que a campanha dos Leões em casa tivesse a marca da invencibilidade.

Estudiantes
Foto: Reprodução Twitter

A campanha rendeu o título ao Estudiantes e cravou para sempre a lenda do Quirichoco na história do futebol. Carlos Bilardo foi alçado para a seleção argentina no ano seguinte e comandou os hermanos na conquista da Copa do Mundo de 1986.

No vídeo a seguir podemos ver o quanto a lenda é utilizada e também a sua impressionante eficácia na Copa Libertadores.

Anos depois, em 1992, o treinador desembarcou na Espanha para treinar o Sevilla, curiosamente o mesmo time do episódio da última terça, quando a lenda nascida em La Plata foi novamente invocada.

Naquele ano, Quirichoco já não era mais algo relevante para o treinador, que havia deixado para trás a história. Até que em um jogo, na hora de um pênalti contra seu time, por trás dele alguém sussurrou “Quirichoco, Quirichoco”, o que o deixou extremamente surpreso, pois aquela história – lenda? – sobreviveu 10 anos, atravessou o oceano e chegou à Europa.

“Acredite ou não, quando fui à Espanha para treinar o Sevilla houve pênalti para o time rival e ouvi atrás de mim que alguém sussurrou ‘Kirichoco, Kirichoco’, e não pude acreditar. Até que Cholo (Simeone) e Diego (Maradona) me disseram que já haviam falado algumas vezes e o resto do elenco aprendeu. Na Europa! Parece mentira, mas você fala ‘Kirichoco’ e eles falham!”, disse o treinador argentino em uma entrevista explicando sobre a história de Quirichoco.

Hoje isso é tudo o que sabemos de Quirichoco, um menino de La Plata que ajudou o seu time a fazer história, e se tornou história importante do futebol argentino, que vez ou outra atravessa os mares e vai assombrar noutros lugares do mundo. Quem é de fato, o que fazia ou faz, quando nasceu e morreu, se morreu, ou mesmo se foi real, o menino Quirichoco ainda é uma incógnita e parece que continuará a ser. O que se sabe é que a lenda se fez real e isso é suficiente para lhe garantir a existência.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Jaqueilton Gomes

Jornalista em formação, amante do futebol e comentarista no Universidade do Esporte

Como citar

GOMES, Jaqueilton. “Quiricocho”: a misteriosa ‘maldição’ que cruzou o Atlântico e ecoou na Champions League. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 29, 2021.
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