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Reflexões sobre a relação do racismo recreativo e o futebol

Era intervalo da partida entre Santos e Ponte Preta, pelas quartas de final do Campeonato Paulista de 2020. Naquela altura do jogo, o Peixe vencia por 1 a 0 com gol da Marinho que fora expulso aos 42 minutos da primeira etapa.

A rádio “Energia 97”, da capital paulista, transmitia o jogo e fazia aquela resenha comum enquanto o jogo estava parado.

“Alguém como você, por exemplo, está no grupo do Whatsapp dos jogadores do Santos, como está o chefe Benedetti, e que não passa esse tipo de mensagem. Porque é amiguinho, amiguinho de jogador. Aí não passa essa mensagem [risos].”

“O que você vai dizer no grupo lá para o Marinho?”

“Eu vou falar assim, você é burro e você está na senzala. Você vai sair do grupo uma semana para pensar sobre o que você fez”.

A última declaração, de conotação racista, é do comentarista Fabio Benedetti, conhecido como Chef Benedetti. É importante destacar que não houve qualquer repreensão dos colegas no momento em que ele fez tal comentário. Ele pediu desculpas pela “infelicidade” e seguiu a discussão. Foi compreendido como um momento de desconcentração.

Comentarista Fabio Benedetti, conhecido como Chef Benedetti. Foto: Energia 97/Reprodução.

Não demorou muito para que naquele mesmo 30 de julho de 2020 chovesse na internet uma série de críticas e represálias ao posicionamento do comentarista. Marinho, um atleta negro, vítima dessa situação, fez um post em suas redes sociais ao qual reprovava qualquer tipo de discriminação e afirmava ter orgulho de sua cor e de sua trajetória. O Santos também publicou uma nota de repúdio sobre o caso.

Com a repercussão negativa, Benedetti após ser questionado no Twitter sobre sua postura, comentou: “Fui muito mal… Errei feio, usei uma palavra que nunca deveria, mesmo que sem intenção”, escreveu a uma pessoa que o questionou. “Na mesma hora percebi que falei uma grande M, pedi desculpas, mas sei que foi ridículo.”

A rádio “Energia 97” divulgou uma nota de repudiando o ocorrido e que tomaria providências, disse que iria suspender o comentarista – posteriormente ele foi demitido.

Uma pergunta que ficou martelando em minha cabeça sobre esse caso e sobre outros tantos, foi o porquê de posicionamentos racistas diluídos no humor e em brincadeiras tanto no jornalismo esportivo, quanto em outras esferas da vida social, são difíceis de serem interpretados pelas pessoas como atos de ofensas raciais.

Para refletir sobre essa questão e trazer alguns apontamentos para a recorrência dessa situação, me atenho ao conceito de “racismo recreativo” (2019) do professor e especialista em Direito Antidiscriminatório, Adilson Moreira.

O conceito de Racismo Recreativo

O humor e as brincadeiras com ofensas raciais não devem ser analisados de forma particular e simplória. É preciso identificar os processos de poder e hostilidade racial que elas envolvem. “Ele deve ser visto como um projeto de dominação que procura promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial”, define Adilson Moreira no livro Racismo recreativo (2019), que faz parte da coletânea Feminismos Plurais.

De acordo com o autor, essa estratégia utilizada por membros do grupo racial dominante revela o interesse de garantir para o público a respeitabilidade desse grupo. Que o privilégio do respeito seja garantido apenas para pessoas brancas. “O racismo recreativo contribui para a reprodução da hegemonia branca ao permitir que a dinâmica da assimetria de status cultural e de status material seja encoberta pela ideia de que o humor racista possui uma natureza benigna” (MOREIRA, 2019). Voltemos lá para a declaração do Benedetti, “[…] Errei feio, usei uma palavra que nunca deveria, mesmo que sem intenção”, a ideia de que a ‘brincadeira’ foi encoberta por uma natureza boa, sem intenção, está presente no ideal branco desse comentário.

O livro “Racismo recreativo”, de Adilson Moreira. Foto: Reprodução.

Moreira ressalta que o Racismo Recreativo atua dificultando o pertencimento entre os negros, além de operar como uma pedagogia da subordinação racial baseado nas noções de inferiorização social e de antipatia social, o que resulta também em pessoas não brancas utilizando o humor racista para degradar pessoas negras (MOREIRA, 2019).

Como no próprio exemplo que o autor traz em seu livro.

Em 2018, após o empate por 2 a 2 entre o Palmeiras e Linense, pelo Campeonato Paulista, o jogador Edílson Capetinha foi convidado para a edição do Fox Sports Radio.

Edílson, que é um homem negro, atribuiu o empate do jogo ao fato que goleiros negros são incompetentes. De acordo com ele, o Palmeiras teria vencido a partida se seu goleiro fosse branco. O goleiro do Verdão no jogo era Jailson, que falhou nos acréscimos e cedeu o empate da equipe de Lins, essa era a evidência que segundo Capetinha concluía que negros não deveriam jogar nessa posição.

Na situação, os comentaristas brancos riram histericamente depois que ouviu Edílson utilizar a expressão “goleiro negão”. Um outro questionou seus comentários citando Dida, um dos principais goleiros da história do Brasil. Capetinha atribuiu o fato dele ser “pardozinho” como a teoria que o impedia que ele fosse um atleta de menor valor.

Este exemplo nos ajuda a verificar de que forma o racismo recreativo pode ser uma ferramenta reproduzida por outras minorias raciais e que a utilização do humor racista para degradar pessoas negras pode também ser uma arma para desarticular mobilizações de política e de pertencimento entre pessoas negras.

Adilson Moreira cita que o uso de humor é muito comum para produzir entretimento na cobertura do futebol – como veremos no próximo tópico. Entretanto, as pessoas ainda se recusam a interpretar alguns atos como ofensas raciais. “Insultos racistas estão amplamente presentes nos campos de futebol e também em programas esportivos, sem que isso cause qualquer tipo de consternação”, conclui.

O uso do humor para informar e entreter no jornalismo esportivo

O humor, os trocadilhos e em alguns momentos até a diversão, são ferramentas comuns na narrativa do jornalismo esportivo. Segundo Bernal (apud MONTÍN, 2008), o superdimensionamento dos acontecimentos; a utilização do vocabulário no superlativo, que em muitas vezes abusa de adjetivos e a capacidade de criar personagens (heróis e vilões) são artimanhas muito comuns do segmento.

Em consonância, Lovisolo (2011) ressalta que o jornalismo esportivo possui um papel relevante em trazer para os meios de comunicação a informação com o objetivo de divertir, entreter e até emocionar.

“Nossas atitudes e sentimentos em relação ao esporte seriam pouco compreensíveis se não levássemos em conta a formação de emoções, crenças e competências técnicas geradas e difundidas pelo jornalismo esportivo” (LOVISOLO, 2011, p. 94).

O humor e o tensionamento de sentimentos compartilhado por jornalistas, comentaristas e outros atores da cena é algo pungente na construção narrativa esportiva. Esse não é o problema, a princípio. Entretanto, relativizar posicionamentos racistas maquiados de “piadas” e “humor” é naturalizar contextos raciais desiguais no esporte, na profissão e na vida social. Como bem escreve Adilson Moreira, a sua percepção recreativa é institucional como o racismo é. É preciso compreender as relações de poder raciais desiguais onde o poder dominante pode usar o artificio do humor para desestruturar e desarticular minorias raciais. Tanto o futebol quanto o jornalismo esportivo podem ser vetores em potencial disso.

Referências utilizadas

BERNAL, A. L. Periodismo deportivo y sensacionalismo: motivos para la reflexión. In: MONTÍN, J. M. Imagen, comunicación y deporte: una aproximación teórica. Madrid : Vision Libros , 2008. p. 277.

ESPORTE, U. Edílson revolta palmeirenses ao opinar sobre Jailson: “Goleiro negão falha”. UOL Esporte, 2018. Acesso em: 6 fev. 2021.

LOVISOLO, H. Jornalismo e esporte: linguagens e emoções. Corpus et Scientia, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 91-99, nov. 2011.

MOREIRA, A. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.

TRASKINI, E.; WILKSON, A. Comentarista diz que Marinho “é burro e está na senzala” e pede desculpa. UOL Esporte, 2020. Acesso em: 6 fev. 2021.


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Como citar

ESTEVES, Emerson. Reflexões sobre a relação do racismo recreativo e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 19, 2021.
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