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Redes sociais e a visibilidade ao coming out de atletas profissionais

Quando se pensa em futebol americano não há como fugir de ideias de virilidade e masculinidade que caracterizam tal esporte, surgido em ambiente universitário no nordeste dos Estados Unidos e que, por volta de 1840, já estava estabelecido no cotidiano de estudantes em universidades como as de Harvard e de Yale. O futebol americano, caracterizado por jogadas agressivas e divididas truculentas, legitima no imaginário a imagem de homens fortes, viris, muscularmente definidos e, sobretudo, que ostentam o “ser macho” nesse contexto.

Diante disso, possivelmente Carl Nassib pensou muito antes de tomar uma das decisões mais importantes de sua vida – e, com certeza, a mais marcante de toda sua carreira esportiva. Se assumindo homossexual em suas redes sociais, o defensive end, do Las Vegas Raiders, entrou para a lista dos atletas da NFL (Liga norte-americana da modalidade) que assumiram a orientação homossexual no testosteronado mundo do futebol americano.

Carl Nassib
Nassib atuando pelo Cleveland Browns em 2018. Foto: Wikipédia

Ao contrário do que grande parte da mídia esportiva noticiou, Nassib está longe de ser o primeiro a ter feito isso: ele foi o sétimo, se considerarmos jogadores que chegaram a atuar em partidas oficiais da Liga, e o décimo primeiro, se incluirmos os que participaram dos training camps, período de cerca de quatro semanas em que 90 candidatos disputam 53 vagas em cada equipe para dada temporada, antes ainda de serem draftados < >. Como se manifestou em vídeo, publicado em seu Instagram:

“Quero aproveitar um breve momento para dizer que eu sou gay. Eu venho querendo fazer isso há algum tempo e finalmente me sinto confortável para tirar isso do meu peito. Eu realmente tenho a melhor vida, família e amigos que poderia pedir”.

Nenhum dos que se assumiram anteriormente, no entanto, haviam feito isso com sua carreira em andamento. O pioneiro, o running back David Kopay, atuou por nove anos em equipes como San Francisco 49ers, Detroit Lions, Green Bay Packers e Washington Redskins – hoje Washington Football Team –, mas revelou sua homossexualidade em uma entrevista para um jornal impresso em 1975 já depois de sua aposentadoria

A questão não é se assumir, pois hoje em dia, para as novas gerações de atletas, o armário da sexualidade talvez nem exista, e o fenômeno de uma sexualidade não orientada pelas estéticas da cisgeneridade/heteronormatividade é perfeitamente possível. Cada vez mais estamos observando enunciações de outras sexualidades e mesmo identidades de gênero dissonantes em Jogos Olímpicos, vitrine máxima do esporte.

Como reiterou Nassib no vídeo citado anteriormente, “eu sou uma pessoa muito reservada, então não estou fazendo isso por atenção. Só penso que representatividade e visibilidade são muito importantes. Espero que um dia vídeos como esse não sejam mais necessários“. E, de fato, essa representatividade abre portas para tantos outros/as atletas que se escondem por medo do preconceito de torcedores/as, colegas de equipe, dirigentes e patrocinadores.

É interessante analisar que os atletas da NFL que “saíram do armário” antes de Carl Nassib não contavam com redes sociais para fazê-lo e para repercutir essa ação. Quatro dos que tomaram a mesma decisão participaram da Liga entre as décadas de 60 e 70, quando internet sequer era uma opção. O contexto atual, no entanto, nos faz levar em consideração a exposição e a visibilidade que essas tecnologias proporcionam ao coming out de uma figura pública no esporte do século XXI.

Aliás, um exemplo próximo e conhecido dos brasileiros nessa direção é o de Douglas Souza, da seleção brasileira de vôlei e da equipe italiana Vibo Valentia. Assumidamente homossexual, o ponteiro não precisou sequer estar tanto tempo presente em quadra quanto seus companheiros de seleção nos Jogos Olímpicos de Tóquio para se tornar um verdadeiro fenômeno midiático: a publicação contínua no Instagram de bastidores irreverentes, debochados e disruptivos em relação ao seu corpo, gênero e sexualidade fez com que as visualizações de seu perfil aumentassem e, consequentemente, o número de seguidores/as explodiu. Os três milhões alcançados ainda no fim de julho de 2021 o consolidaram como o jogador mais seguido do mundo em sua modalidade.

A expressiva popularidade alcançada pelo voleibolista no ambiente digital evidencia não apenas o apoio à personalidade que ele expõe em suas redes, mas também reforça a ideia de que assumir sua orientação sexual não se configurou como um obstáculo à sua imagem de atleta. Apesar do vôlei ser uma modalidade muito menos opressora à pessoa LGBTQIAPN+ do que outras (como o próprio futebol americano de que tratamos aqui), o fenômeno que Douglas se tornou na internet apresenta um novo quadro no que se refere às sexualidades de atletas no esporte.

Um detalhe fundamental está atrelado a toda essa questão: em momento algum Douglas mascara sua orientação sexual. Ele exagera nos trejeitos, rebola e se refere a si próprio com termos no feminino, como fez em postagem sobre advertência sofrida no Facebook, por conta de direitos autorais, em que brinca: “Mark, eu achei que eu era sua princesinha”, fazendo referência ao criador da rede em questão, Mark Zuckerberg.

Douglas Souza
Douglas Souza. Foto: FIVB/Fotos Públicas

Será que estamos diante de novas formas de expressão de masculinidade? Ou, dito de outro modo, se considerarmos que Douglas performatiza uma “masculinidade efeminada”, em que medida essa expressão pode desencadear outros valores sociais relativos às práticas de esporte em nível profissional? Se fosse possível imaginar um time de voleibol cheio de atletas como Douglas, o mesmo poderia ser aplicado ao futebol americano? Qual seria a diferença entre um Carl Nassib “gay e masculino” e um Carl Nassib “gay e efeminado” para sua equipe e para a opinião pública?

O debate em torno das masculinidades no esporte não é recente, tampouco é novo. E não é nosso propósito aqui entrar em desdobramentos teóricos, pois há uma gama de pesquisadores/as que são extremamente qualificados/as nessa seara. O que se coloca como interessante nos casos trazidos é o questionamento postulado em público por alguns atletas sobre suas sexualidades (e, principalmente, de modo bastante visível), a partir de suas manifestações em redes sociais, acessíveis globalmente por qualquer pessoa detentora de um celular com acesso à internet.

No momento em que acabamos de viver um “apagão” de algumas horas nas principais redes de comunicação (Facebook, Instagram e Whatsapp), valeria perguntar: haverá retrocesso nessas questões, caso não tenhamos mais redes sociais? Ou o campo esportivo daqui em diante nunca mais será o mesmo no tocante à sexualidade, com ou sem redes sociais? Até que ponto o esporte já aprendeu que os corpos podem expressar distintas formas de masculinidade e feminilidade, independentemente de suas genitálias e suas orientações sexuais? Fica a questão, estamos atentos!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Flávio Amaral

Jornalista pós-graduado (especialista) em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte, narrador esportivo pela webrádio Alternativa Esportes e Superliga Fut7 e gerador de conteúdo sobre o esporte LGBTQIAPN+. Atua nesse movimento desde 2017 como atleta de futebol 7 e e-sports e também como comunicador - é autor do blog Cores do Esporte, no qual documenta a trajetória de equipes e atletas dedicados à causa. Teve passagens por veículos como TV Globo e LANCE! trabalhando com rádio, televisão, jornal impresso e site/portal, além de experiência em comunicação corporativa, gestão de conteúdo e redes sociais no setor público e iniciativa privada. Possui experiência docente em  disciplinas como Jornalismo Esportivo, Gestão de Talentos e Planejamento e Produção de Eventos.

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

AMARAL, Flávio; CAMARGO, Wagner Xavier de. Redes sociais e a visibilidade ao coming out de atletas profissionais. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 37, 2021.
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