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Reflexões marxistas sobre futebol e violência

Fabio Perina 16 de setembro de 2021

Em texto anterior, busquei esboçar de modo informal um possível vínculo entre alguns dos principais conceitos do marxismo com a realidade complexa dos jogadores de futebol em sua dupla condição de trabalhadores e mercadorias. Acrescento como ponto de partida que aplicar a teoria das classes sociais ao futebol implica situar: a-) os torcedores e jogadores como as classes dominadas; e b-) os dirigentes, empresários e autoridades estatais como as classes dominantes. (Embora seja uma afirmação abstrata sem a análise de uma conjuntura histórica concreta). Contudo, para jogadores e dirigentes há desigualdades muito grandes dentro de uma mesma categoria, por isso a dificuldade de se enxergar essa estruturação. Vide quando dirigentes tentam colocar os jogadores ‘pobres’ contra os próprios torcedores ao fazê-los parecerem ‘ricos’ quando reivindicam seus direitos ao fazê-los parecer privilégios. Seja na esfera privada do clube ou eventualmente na esfera pública da política parlamentar. Casos assim são muito recorrentes pelo mecanismo ideológico de dissociar a consciência de classe da condição de classe. Ainda nesse esboço geral, arrisco afirmar que a excessiva abstração (como oposta ao materialismo) também é outro elemento fundamental da crítica marxista para entender o futebol: seja principalmente com torcedores passando a enxergar jogadores como seus heróis, seja em casos mais discretos (mas igualmente importantes) de se “torcer” contra ou a favor de dirigentes (que representam interesses individualistas) como se fossem a extensão dos clubes (que representam um valor simbólico popular centenário).

Depois da ideologia, irei detalhar daqui por diante outra forma de dominação que é pela violência. A partir de agora buscarei articular os três vértices de um “triângulo impossível” (ou ao menos improvável) com marxismo, futebol e violência, ou seja, os poucos estudos com dois desses elementos acabam desconsiderando um terceiro. Diante dessa dificuldade de encontrar uma bibliografia brasileira para os três elementos ao mesmo tempo, trarei ao auxílio pesquisadores de outros países sul-americanos. O que indiretamente também é produtivo diante do engano recorrente no senso comum de restringir o marxismo apenas ao estudo da dominação interna às sociedades da Europa Ocidental, porém não fazem a articulação com a dominação (neo)colonial no terceiro mundo ocorrendo por mecanismos similares.
Como aporte teórico geral como ponto de partida, segundo González (1998), a violência ‘originária’ é a alienação na infraestrutura econômica, ou seja, o homem separado das condições de produção e sem se reconhecer mais nas coisas que produziu e, portanto, sequer com seus semelhantes. A qual determina as posteriores alienações nas super-estruturas político-jurídicas (vide o Estado ao se separar em relação à sociedade) e ideológicas (vide separação entre consciência e condição de classe). Assim, a alienação econômica é a violência estrutural por ser a partir dela que se estruturam os fundamentos da sociedade. Também conhecida por “acumulação primitiva”, é uma profunda reescrita da história com a ciência no lugar da ideologia, daí a conhecida frase que “a violência é a parteira da história”. O maior engano sobre tal elemento seria de toma-lo como um evento histórico isolado, mas é um processo e uma condição estrutural do capitalismo. Para o futebol, o maior resultado disso é o jogador alienado de sua arte de jogar e o torcedor alienado de participar em seu clube (ou até no estádio). Vide o inimigo direto do jogador é o dirigente e do torcedor é a autoridade.

Fora dessa ‘normalidade’, surgem mecanismos arbitrários e de exceção (como a polícia e o judiciário) como os aparelhos fundamentais que fazem do Estado o instrumento de poder da classe dominante para suprimir qualquer ameaça. Mas essa tal normalidade é só uma fina camada que esconde contradições violentas, porém somente nomeia como violento aquilo que a perfura. O olhar para a violência dentro do materialismo histórico marxista traz a ressalva de nunca reduzi-la a uma mera vontade individual ou fato isolado acidental. Mas admitir que a violência é inerente à própria estrutura social. Daí também acrescento que o maior erro junto de individualizar a violência é também o de moralizá-la. Ou seja, um equívoco dos dominados de renunciar a toda e qualquer violência (até mesmo a revolucionária) simplesmente com a expectativa que assim o dominante também renunciasse a sua violência dentro da ‘normalidade’.

Indo agora buscar a aplicação dessas reflexões ao futebol atual, Aragón (2014) afirma que as guerras ‘internas’ das barras bravas (o que na Argentina passou a ser muito mais comuns do que confrontos entre barras de clubes rivais) são o produto mais visível de como as classes dominadas aderem violentamente à lógica competitiva do atual neoliberalismo. Pois ele incide não apenas nos aspectos centrais da economia, mas também construindo uma nova subjetividade de destruição dos laços sociais tradicionais. Se qualquer negócio ilegal pode ser explorado, então os tradicionais códigos de confrontos entre esses grupos se flexibilizam quando também entram em disputa recursos econômicos. Acrescento que é previsível que as barras tenham se tornado tão competitivas se estão inseridas em uma sociedade também tão competitiva.

Barra brava
Barra brava – Los de Abajo, Universidad de Chile. Foto: Wikipédia

Soto Lagos (2016) contribui que não se pode equiparar (através de uma excessiva e até desonesta abstração) a violência do Estado com a violência de alguma barra. Pois desconsidera a condição concreta que o Estado dispõe de muito mais orçamento e armas de confronto e principalmente dispõe da legitimidade que a sociedade lhe concedeu de aplica-las dentro da lei. E a partir daí vem a distinção fundamental entre violência estrutural e violência direta. Sendo a primeira a responsável por manter a ‘normalidade’ da estrutura social e neutralizar qualquer dissidência. Em outras palavras, é violenta em sua substância, mas no discurso transfere o rótulo de violento para o outro lado. Já a segunda é facilmente flagrada e identificada em uma distinção moral (“bons” x “maus”) pelos elementos agressor-ato-vítima. Uma forma das classes dominantes empurrarem para as classes dominadas esse rótulo de violência. Se atualmente o pensamento liberal e anti-marxista diz que a política acaba onde começa a violência, o marxismo não cai nessa inocência ao escancarar a violência estrutural ao perpetuar as condições que tornam possíveis a imersão da violência direta.

Para Yepes (2016), o começo da violência no futebol foi quando da sua apropriação de espaço lúdico passando a ser um negócio controlado por uma restrita elite econômica ou estatal. Uma espécie de “acumulação primitiva” com a passagem de um jogo de todos para sua apropriação por instituições esportivas junto com seus interesses privados. E assim um jogador é desvinculado da sua arte de jogar futebol ao passar a fazê-lo muito mais por dever do que por prazer. Ora, se nem todos os espaços da sociedade são intrinsecamente mercantilizados e nem todos os homens são consumidores, isso exige uma transformação violenta para passarem a ser, e por isso confrontar os modos de vida lúdicos anteriores. Diante do tema do futebol e violência, entra o Estado para salvaguardar a reprodução econômica e com isso legitimar a exclusão social que faz aos torcedores pobres (principalmente nas barras e torcidas organizadas) através da elitização e da criminalização. Um Estado “ventríloquo”, segundo brilhante termo do autor, por simular um diálogo consigo mesmo esboçando o problema e logo em seguida a própria solução. E com isso raramente ouvindo aqueles realmente envolvidos no problema que são os torcedores e que poderiam ajudar por conhecerem melhor seus bairros, suas organizações torcedoras com seus membros e até seus rivais.

Por fim, como consequência dessa incompetência estatal deliberada, Yepes (2016) também contribui muito com a afirmação que conforme mais o futebol se aprofunda como negócio mais os conflitos entre torcedores se afastam dos estádios para os bairros. Ao mesmo tempo o futebol negócio privilegia apenas a sua reprodução enquanto espetáculo e exclui do estádio todo aquele que não se tornou consumidor. A proliferação da medida de torcida única na Argentina e no Brasil principalmente são essa clara articulação entre economia e segurança. E para os demais confinar o pertencimento emocional do torcedor pobre com seu clube para o bairro como seu último reduto depois de já expropriado de outras experiências. Quem são os que potencialmente recairá o rótulo de “violentos”.

Materiais de Apoio:

ARAGÓN, S. Neoliberalismo, construcción de nuevas subjetividades y violencia en el contexto del fútbol argentino actual. Esporte e Sociedade. Rio de Janeiro, n.24, 2014.

GONZÁLEZ, L. A. Raíces sociales de la violencia: el aporte del marxismo. Realidad: Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, n. 64, p. 313-324, 1998.

SOTO LAGOS, R. ¿Agresión o violencias en el fútbol professional? Análisis y perspectivas de la seguridad a partir de la Psicologia Social. In: ¿Quién raya la cancha? Visiones, tensiones y nuevas perspectivas en los estudios socioculturales del deporte en latinoamérica, ALABARCES, P. et al (orgs.). Buenos Aires: CLACSO, 2016.

YEPES, J.A.M. Barras bravas y la violencia del capital. 2016. 85f. Disertacion de Grado (Escuela de Sociologia y Ciencias Politicas), Facultad de Ciencias Humanas, Pontifia Universidad Catolica del Ecuador, Quito, Equador, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Reflexões marxistas sobre futebol e violência. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 23, 2021.
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