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Reflexões sobre Olimpíadas, Modernidade e Brasil

Nos clássicos da literatura sobre o esporte encontramos uma discussão sobre o fim do lúdico e a profanação das competições esportivas. Johan Huizinga argumenta em seu Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura que o esporte moderno destrói um dos aspectos fundamentais para a satisfação dos grupos humanos: o elemento lúdico. Para Huizinga, “o espírito do profissional não é mais o espírito lúdico, pois lhe falta espontaneidade, a despreocupação”. Este livro foi publicado em 1938 e a crítica fazia sentido à época. Mas observemos que hoje parte expressiva da imprensa, dirigentes e aficionados demandam justamente maior profissionalização do esporte. Stanley Eitzen, em Sport in Contemporary Society, critica a “corrupção do esporte” afirmando que ele, ao se transformar em um espetáculo, substitui o prazer do atleta “por aquilo que dá prazer aos torcedores, dirigentes, televisão e empresas que pagam os comerciais televisivos”. É uma “denúncia” também datada, oriunda dos anos 1970. Gregory Stone faz uma crítica parecida em “American Sports: Play and Display”. Segundo ele, a “exibição” (display) para os espectadores é “des-brincadeira” (dis-play) destruidora do “puro elemento lúdico”. Seguindo esta tendência, Georges Magnane, em Sociologia do Esporte, expressa sua crítica ao esporte moderno afirmando que este “corre o risco de perder o seu caráter lúdico para tornar-se uma empresa comercial, sujeita às regras da propaganda e da publicidade”. Apesar de estes trabalhos terem sido escritos antes dos anos 1990, ainda hoje lemos argumentações parecidas.

Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres 2012. Foto: Mowa Press.

Notemos que, da mesma forma que o debate sobre o advento da mídia dividiu os contendores em dois grupos, alcunhados por Umberto Eco de “apocalípticos” e “integrados”, o debate clássico em torno do esporte moderno também poderia ser dividido em dois grupos semelhantes e, como naquele debate, com uma predominância maior do primeiro sobre o segundo. E se aquele debate se mostrou inapto para a compreensão do impacto da mídia na sociedade, no universo do esporte o mesmo também ocorreu. A ideia de que os espectadores são passivos, por exemplo, foi refutada por estudiosos que os consideram, inclusive, como parte inseparável do espetáculo. Até mesmo Muniz Sodré em seu “apocalíptico” O Monopólio da Fala, publicado em 1977, já havia rejeitado a perspectiva que via os torcedores como “passivos”. A ideia de que a erosão do lúdico foi acompanhada pelo advento da comercialização e de que os esportes modernos tornaram-se atividades totalmente seculares também foi alvo de questionamentos. As afirmações de Huizinga, por exemplo, foram questionadas por Eric Dunnig e Kenneth Sheard no livro Barbarians, Gentlemen and Players. Estes autores não acreditam que os esportes pudessem ter mantido a sua popularidade se o elemento lúdico inerente a eles tivesse sido atrofiado na extensão colocada por Huizinga, ou se eles tivessem se transformado em uma atividade profana. Segundo eles, o que parece estar ocorrendo é justamente o contrário, ou seja, “a centralidade cultural do esporte tem crescido de tal forma que hoje ele parece ser um fenômeno social de proporções quase que religiosas”.

O caso do futebol no Brasil confirmaria as asserções de Dunning e Sheard. Apesar de sua crescente comercialização, em jogos entre rivais tradicionais, os torcedores cantam, reverenciam seus ídolos, símbolos e cores de seus times, choram e rezam nos estádios, o que poderia estar indicando que certa aura sagrada permanece. No que concerne à racionalização do esporte, o futebol brasileiro é conhecido por ser o pólo oposto da rigidez e formalidade deste processo – o celebrado “futebol-arte” – ainda que eu tenha questionamentos sobre a existência de um determinado estilo. Inclusive, recomendo o artigo de Soares e Lovisolo “Futebol: a construção histórica do estilo nacional”. O fato é que a suposta racionalização tem enfrentado resistências por parte da imprensa e torcida.

Leandro Damião agradece aos céus após fazer um gol nos Jogos Olímpicos de Londres 2012. Foto: Mowa Press.

As Olimpíadas reforçam este debate e acirram a polêmica. Se existe uma força que caminha na direção da destruição do lúdico e da profanação do espírito esportivo (todo o dinheiro envolvido na organização do evento, por exemplo), existe outra que caminha na direção oposta, reforçando o lúdico e sacralizando elementos corriqueiros. Émile Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa já chamava a atenção para a capacidade da sociedade de “sacralizar” elementos mundanos, triviais, e corriqueiros. Vemos nos Jogos Olímpicos atletas “profissionais” serem adorados, idolatrados e festejados como semideuses do Olimpo. Observamos o “espírito olímpico” celebrado no esforço “sobre-humano” de alguns competidores, seja para vencer uma prova ou somente para terminá-la. Nas Olimpíadas de Londres, a participação da torcida brasileira marcou presença pelo estilo alegre (lúdico?) e chegou a ser notícia em alguns jornais norte-americanos, principalmente durante a final do vôlei feminino. As vaias da torcida brasileira a cada vez que as estadunidenses iam para o saque foram duramente criticadas pelo jornalista Reid Fordgrave no site da Fox Sports, conforme noticiou no dia 15 de agosto o colunista de O Globo Artur Xexéo. O que nós podemos interpretar como relações jocosas, improvisação e lúdico, pode ser visto pelo “outro” como falta de respeito. Talvez nós também encarássemos como falta de respeito se a torcida adversária fizesse o mesmo conosco. Quando somos nós seria “malandragem”. Quando são eles seria provocação.

O esporte é um grande negócio. Porém, este “grande negócio” é um terreno fértil para a produção de mitos e ritos da comunidade. A crítica da sociologia do esporte foi elaborada sem levar em conta a resistência deste universo aos elementos “racionais” e “profanos”. A atração que o esporte exerce nas pessoas faz parte de um processo intrínseco ao fenômeno em questão, que simultaneamente uniria povos em um sistema de comunicação universalizante e proporcionaria manifestações de diferenças culturais em supostos estilos e comemorações.

Público acompanha a passagem da tocha olímpica em Londres. Foto: Mowa Press.

O esporte seria, assim, uma manifestação de massa que integra sem homogeneizar, sem destruir as características básicas da cultura local, temor constante dos críticos da cultura de massa. O caráter extraordinário do esporte está justamente no fato de exigir a cooperação das diferenças ao mesmo tempo em que as estimula. Atletas e equipes diversas cooperam, aceitando e concordando com as regras e normas da competição e prometendo lutar pelo mesmo ideal, qual seja, a vitória. Some-se a esta característica do conflito esportivo uma outra que diz respeito à incerteza dos resultados e percebemos subjacente na mensagem esportiva o seu discurso democrático. Talvez resida aí o seu fascínio. Um confronto entre grupos sociais distintos, regiões, classes, culturas e nações e, no final, uma classificação hierárquica baseada nos méritos dos competidores. Sendo que o perdedor de hoje pode ser o vencedor de amanhã.

Por tudo isso, o esporte pode ser entendido como um ritual que proporciona sentido à coletividade. Em 2016, teremos uma oportunidade singular de produzir para o mundo e para nós mesmos um ritual paradigmático que poderá nos ajudar a entender melhor nossos hábitos culturais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Reflexões sobre Olimpíadas, Modernidade e Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 38, n. 6, 2012.
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