Chegamos ao final de mais um campeonato brasileiro de futebol, o nono disputado pelo sistema de pontos corridos. E é exatamente sobre o sistema de disputa da principal competição nacional que gostaríamos de refletir. Essa reflexão é uma auto-crítica, pois defendíamos essa fórmula de disputa e hoje temos dúvidas se ela é realmente a mais justa.

Em nossa infância e adolescência, no final dos anos 80 e início dos anos 90, discutíamos com os amigos da escola sobre os critérios que deveriam ser adotados para se chegar a um campeão de alguma competição futebolística. Certamente influenciados pela visão da imprensa da época e também pelos campeonatos italiano, espanhol, alemão e até mesmo o português, concordávamos que o melhor tipo de campeonato deveria ser o de pontos corridos, pois assim o campeão seria a equipe mais regular valorizando-se o desempenho ao longo do campeonato.

As maiores discussões versavam principalmente, em nosso caso por residirmos em São Paulo, sobre o Campeonato Paulista e, em menor escala, sobre o Campeonato Brasileiro. A Copa do Brasil era um torneio ainda em formação e não despertava grande atenção.

Naquele momento tínhamos exemplos que indicavam que a fórmula dos pontos corridos seria a mais justa. Quem acompanha futebol deve se lembrar muito bem da campanha do Cruzeiro em 1996. Terminou a primeira fase em primeiro (ressaltando que era turno único) e foi enfrentar a Portuguesa que se classificara em oitavo fazendo uma campanha muito irregular. No mata-mata a Lusa ganhou do Cruzeiro por 3 x 0 no Morumbi. Na volta mesmo vencendo o jogo por 1 x 0, o Cruzeiro viu-se eliminado pela última equipe a se classificar. A pergunta que fazíamos naquela ocasião era: como apenas um jogo apenas pode decidir uma campanha toda?

Torcida do Cruzeiro incentiva o time. Foto: Douglas Magno – VIPCOMM.

Enfatizamos que nesse mesmo ano (1996), os quatro primeiros colocados na primeira fase que foram Cruzeiro, Guarani, Palmeiras e Atlético-PR foram eliminados por Portuguesa, Goiás, Grêmio e Atlético-MG (oitavo, sétimo, sexto e quinto respectivamente na fase classificatória). A final acabou sendo entre o sexto e o oitavo colocado: Grêmio x Portuguesa. E o Grêmio só alcançou o Cruzeiro em números de pontos porque venceu a final contra a Lusa.

Mesmo em campeonatos em que o primeiro classificado não foi o campeão, como o já citado de 1996, não podemos esquecer que poucas pessoas tinham dúvidas de que o Grêmio era o melhor time do Brasil. Isso só não era admitido pela imprensa bairrista, em especial a paulista, que pensa que apenas os times de São Paulo e quiçá os do Rio de Janeiro são grandes, e tratava o time gaúcho como um time apenas competitivo e “copeiro”. Vale lembrar que o Grêmio ganhava tudo e sempre vencia os grandes do eixo Rio-São Paulo mas a imprensa tradicional se recusava a tratá-lo como o melhor do país.

O Grêmio sabia jogar com o regulamento da competição e se esta fosse de pontos corridos estaria certamente lá na frente com o Cruzeiro. Assim, não aceitando times campeões como o do Grêmio de 1996, a imprensa fazia toda sua propaganda para termos um campeonato no formato de pontos-corridos. Acreditamos ser uma fórmula interessante, mas será que realmente ela é a melhor? Se for, será que no Brasil ela funciona da maneira que deveria funcionar?

Temos outros exemplos que faziam com que achássemos que a disputa sem mata-mata era a melhor: em 90 Corinthians e São Paulo fizeram uma final deixando pelo caminho Atlético-MG e Grêmio cujas campanhas haviam sido superiores. O Vasco de 92 fez uma campanha fantástica na primeira fase. Um timaço que tinha Bebeto e a revelação Edmundo, mas no quadrangular semifinal (que minimizava as injustiças do mata-mata) caiu de produção e foi eliminado pelo Flamengo que havia passado em sexto lugar e acabou sendo o campeão vencendo o Botafogo na final.

Todavia não podemos esquecer que na maioria das vezes o campeão, mesmo em mata-mata, foi o melhor time. De 91 aos dias atuais, dos times que fizeram a melhor campanha e foram campeões: São Paulo (1991), Vasco (1997), Corinthians (1998 e 1999). Os campeonatos de 1993, 1994 e 1995 tinham regulamentos complicados e confusos, mas não havia dúvidas de que o Palmeiras tinha o melhor time do país no bi-campeonato 1993/94 e que, apesar de toda a polêmica na final de 1995, Santos e Botafogo chegaram à decisão com campanhas praticamente idênticas. Em 2001, São Caetano e Atlético-PR também chegaram à final com campanhas parecidas. Nos anos das possíveis injustiças, como 1992, em que o país esperava uma final entre Vasco e Botafogo, o Flamengo atravessou o caminho e acabou levando o título.

Jogadores que atuaram no futebol profissional nos anos 90 participam do Soccerex Football Festival 2011. Foto: Maurício Val – FOTOCOM.NET.

O tempo passou e as coisas modificaram-se: os Campeonatos Regionais encolheram e são vistos como algo menor diante das demais competições, o Brasileiro é disputado em boa parte do ano, a Copa do Brasil e a Libertadores ficam no primeiro semestre e a Sul-Americana no segundo semestre. Criou-se uma relação entre as competições que acabou por integrá-las. Essa relação gerou uma hierarquização dessas competições e colocou a Libertadores no topo do sistema enquanto os campeonato regionais ficaram como algo menor, que classifica somente para a Copa do Brasil.

A grande mudança na forma de disputa do Brasileiro foi a implementação dos pontos corridos, em 2003, em que o campeão é aquele que mais acumular pontos durante os nove meses de competição. Essa estrutura transformou o Campeonato da segunda divisão, a Série B, em uma competição atraente e muito disputada, pois ao todo são 20 clubes (tanto na primeira e na segunda divisão) e quatro deles sobem para a Série A enquanto outros quatro caem para a Série B.

Argumentos não faltam para defender os pontos corridos: o campeonato é “homogêneo” pois todos jogam duas vezes contra todos e o que acumular mais pontos (ou o melhor?) fica com o título; todos os jogos valem exatamente a mesma coisa, ou seja, a primeira rodada é tão importante quanto a última. Argumentos bons que parecem perfeitos, porém, não é assim que funciona na prática. No pontos corridos, o segundo nada mais é que o primeiro dos últimos, pois dificilmente este terá atenção uma vez que sempre joga na última rodada a quilômetros do local em que comemorará o título, sendo que a taça é entregue na festa do campeonato realizada na segunda-feira posterior à última rodada.

Apesar de sabermos que é um problema de calendário também devemos refletir sobre o fato de que o Campeonato Brasileiro começa enquanto a Libertadores e a Copa do Brasil estão em fase final. Com isso, as equipes que disputam alguma dessas duas competições poupam seus jogadores no início do Brasileiro pois terão tempo para se recuperar. Muitos dizem que é um problema da equipe que quer poupar. De fato isso é verdade, porém isso prejudica terceiros e com isso o campeonato mais uma vez deixa de ser homogêneo. Uma equipe pode se safar do rebaixamento porque enfrentou outra que poupou seus jogadores enquanto que o seu concorrente perdeu exatamente porque enfrentou os titulares dessa equipe. Essa situação também ocorreria se o sistema fosse outro, claro. O que combatemos aqui é o argumento usado pelos defensores dos pontos corridos, que dizem que todos os jogos valem a mesma coisa e assim a justiça sempre será feita.

Outra coisa que temos dúvidas é quanto ao número de participantes. Temos a mania de achar que tudo o que ocorre na Europa é realmente o melhor talvez porque somos em nossa maioria descendentes deles. Quantas Itálias cabem dentro de um Brasil? Quantas Alemanhas, Espanhas… Por que temos que ter 20 clubes como o campeonatos de países que são menores que muitos Estados de nossa federação? Pensamos que 28 clubes divididos em dois grupos de 14 seria muito bem vindo devido as nossas dimensões.

Porém, passado algum tempo dessas mudanças, não nos parece que essa fórmula seja a mais interessante para um campeonato longo e muito desgastante para os clubes. Apresentamos alguns argumentos para reflexão:

O primeiro refere-se aos desfalques das equipes que cederam jogadores para a Seleção Brasileira. Se o campeonato usa uma fórmula em que todos os jogos valem a mesma coisa então porque o técnico da seleção brasileira não se importa em desfalcar os times nas primeiras rodadas e quando faltam poucas rodadas vem com o discurso hipócrita de que não pode prejudicar as equipes em um momento decisivo? Se todos os jogos valem a mesma coisa, então não se deve desfalcar um time por conta da decadente (e mesmo que não fosse decadente) seleção da CBF em nenhuma rodada. O Santos foi muito prejudicado em 2011 por causa da CBF. Amistosos, Copa América…

Brasil enfrenta Argentina, no estádio Mangueirão, em Belém (PA), na decisão da Copa Roca. Foto: Sebastian Salguero – VIPCOMM.

O São Paulo também pois perdeu seu melhor jogador, Lucas, para a seleção muitas vezes. E o Internacional que teve que ceder o Oscar para a seleção sub-20! Sendo assim, o argumento da homogeneidade perde-se por completo pois estes times não puderam contar com os seus melhores jogadores durante todo o campeonato. Além disso, os outros times que os enfrentaram nessas condições adversas levaram vantagem quando enfrentaram os times sem a sua força máxima. Podemos então colocar ao menos em dúvida se o campeonato é homogêneo. Embora esse argumento possa valer para qualquer tipo de campeonato, se há jogo da seleção brasileira a rodada do campeonato nacional deveria ser cancelada, ou melhor, já deveria estar planejado que naquela data não haveria rodada.

Esse modelo de competição pode ter o campeão conhecido muito antes da última rodada. Não resta dúvida que as disputas secundárias, por vaga na Libertadores ou na briga para não ser rebaixado, ganham destaque. Porém, caso algum clube seja o campeão com cinco ou seis rodadas de antecedência teremos praticamente 30 jogos amistosos (desconsiderando os que ainda teriam algum interesse em se classificar ou sair do rebaixamento). Sorte do clube que jogar contra adversários que não disputam mais nada.

Nesse sentido o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, afirmou não queria que o seu clube fosse campeão somente após a última rodada em que iria jogar contra o rival Palmeiras, já sem pretensões no campeonato. O Palmeiras que oscilou durante todo o campeonato teve a oportunidade de disputar a final contra o maior rival, mesmo que a vitória somente representasse atrapalhar ou ofuscar a conquista do título do Corinthians.

Essa foi uma das grandes mudanças no Brasileiro: colocar os clássicos regionais para as últimas rodadas. Interessante essa estratégia, pois apesar dos Campeonatos Regionais Serem preteridos, pois estão na base da estrutura, recorre-se a eles para ter jogos emocionantes e com público em peso. Isso acontece pelo simples fato de que as rivalidades futebolísticas foram construídas nesses espaços e não nos campeonatos nacionais.

Luís Fabiano disputa bola contra os reservas do Santos na última rodada do Brasileiro de 2011. Foto: Idário Café – VIPCOMM.

Essa medida foi tomada para evitar as “entregas”, algo que não acontece (ou melhor não gera suspeitas) em outros campeonatos. Diferentemente da Europa, o futebol brasileiro primeiro cresceu nos Estados para depois se integrar no âmbito nacional, muito por conta da dimensão territorial do país. Assim criou-se várias rivalidades regionais. Além disso surgiram as “entregas”. O jogo de Campinas entre Corinthians e Flamengo em 2009 ilustra bem isso. Tudo para prejudicar os rivais Palmeiras e São Paulo que ainda sonhavam com o título. E o time do Corinthians ainda fez um teatro no vestiário reclamando da arbitragem mais especificamente seu técnico e hoje, da seleção brasileira, Mano Menezes. Os defensores do sistema dizem que isso não manchou o título do Flamengo. O Flamengo teve duas rodadas a menos, pois na última rodada disputava o título contra o Internacional e jogava contra o Grêmio. É a mesma coisa se o Flamengo tivesse começado o campeonato com seis pontos de vantagem.

No ano seguinte, em 2010, o Fluminense praticamente jogou contra times sem pretensões de ser campeão quando jogou contra o São Paulo e depois Palmeiras, uma vez que o Corinthians ainda lutava pelo título. E o presidente do Corinthians nem reclamou do que ocorreu nesses dois jogos. Por que será? Muitos dizem que em outro tipo de campeonato já ocorreu esse tipo de “entrega” para algum rival não classificar o que é igualmente lamentável. Vale lembrar o que o Celso Roth disse quando foi entrevistado no programa Bola da Vez da ESPN Brasil. Disse que pelo menos não havia entrega na hora de decidir o campeão.

Nesse ano, o Brasileiro teve duas finais: Corinthians x Palmeiras e Vasco x Flamengo. É estranho pensar em duas finais e que dois os times poderiam vencer aqueles que disputavam o título e mesmo assim não seriam campeões. Embora, a tensão esteja presente, pois gols em qualquer um desses jogos poderia modificar completamente a classificação do campeonato, perde-se algo que é essencial e que potencializa essa tensão: depender dos próprios esforços para ser campeão.

Ronaldinho Gaúcho disputa a bola na última rodada contra o Vasco. Foto: Maurício Val – VIPCOMM.

Apesar de em nossa adolescência o argumento usado pelo perdedor da final como forma de valorizar o seu clube, muitas vezes, era de que o time dele havia feito a melhor campanha e que, portanto, era a equipe mais regular. Se tomarmos essa ideia da regularidade para entender os pontos corridos, temos que essa regularidade elimina a possibilidade de colocar os dois melhores frente a frente para decidir o campeonato. Em nenhuma edição dos pontos corridos houve, na última rodada, um confronto direto entre os clubes que poderiam sagrar-se campeões.

Para valorizar a emoção e tensão, pensamos que um campeonato mais interessante e com estádios cheios seja aquele que após a etapa de classificação (todos contra todos) que ocorram jogos eliminatórios (com ida e volta), com vantagem para o clube de melhor campanha (com o benefício de poder jogar por dois empates e fazer a segunda partida em seu estádio). Se o time for realmente melhor e mais regular que os demais terá mais possibilidades de sagrar-se campeão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani; MARTIN, Gustavo Mandelli. Reflexões sobre os pontos corridos. Ludopédio, São Paulo, v. 30, n. 6, 2011.
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