“Sua derrota foi normal e deve-se mais à má atuação dos seus dirigentes do que aos jogadores. Meus compatriotas continuam a serem futebolistas de primeira categoria, e os erros cometidos pelo quadro, neste Mundial, são de responsabilidade da Comissão Técnica, que errou em impôr aos jogadores um sistema de jogo demasiadamente defensivo e lento. Não seguiram a evolução do futebol e não se utilizaram das qualidades características dos craques brasileiros, que instintivamente são mais atacantes que defensores”. As palavras do ex-técnico Oto Glória foram publicadas na Folha de S. Paulo, há quase 50 anos, mas parecem que foram digitadas logo após o já exaurido “7 x 1”.

Naquele mesmo dia seguinte à eliminação na Copa de 1966, o jornal dizia: “O Brasil, país do futebol, já não é mais rei desse esporte, que seu povo elegeu como favorito. Que seja, porém, um grande lutador, formado entre os primeiros. Que tenha a humildade de procurar reconhecer seus erros e saná-los, desde a pequena agremiação, base de tudo que pode ser certo ou errado” (FOLHA DE S. PAULO, 20/07/1966, p. 20). Sim, meus amigos, o discurso é o mesmo que ouvimos de um ano para cá. “Precisamos reinventar o futebol brasileiro”, dizem todos os especialistas, imprensa, palpiteiros de esquina, mesas de boteco. O que concluímos é que, sempre diante de derrotas onde não colocamos a culpa nos outros – como no juiz Mr. Ellis para o revés diante da Hungria em 1954 –, digo sempre, buscamos reinventar o já reinventado. E entramos num ciclo construído por dirigentes – imprensa – (e por que não?) torcida.

Após a derrota para o Uruguai, em 1950, o país – que se achava o “bambambam” da bola após resultados em amistosos e o 3º lugar no longínquo 1938 – preferiu calar. Quase um ano sem entrar em campo. “Necessária renovação”, “indispensáveis mudanças”, “novos rumos” eram expressões dominantes na montagem para o time de 1954. Tanto que dos 11 titulares do Maracanazzo, apenas Bauer e Ademir começaram jogando a partida seguinte, em 06/04/52 pelo Campeonato Pan-Americano, 2 x 0 sobre o México. Precisávamos resolver a “questão psicológica”, jogamos de lado a tradição de 34 anos da camisa, branca com gola azul azarada, para o amarelo ouro. Resolvemos um problema de identidade com o uniforme nas cores nacionais, mas na bola, só tivemos resultado em 1958.

Depois do tricampeonato, uma nova reinvenção do nosso futebol foi debatida com o quarto lugar em 1974:

Zagalo: Brasil precisa reformular sua concepção de futebol
Depois da derrota para a Holanda por 2 a 0, Zagalo disse ontem que o Brasil precisa reformular sua concepção de futebol: “Ou jogamos como a Holanda, um futebol rápido, moderno e objetivo, ou não conseguiremos mais nada daqui para a frente. Estamos alguns anos atrasados e precisamos andar depressa” (O GLOBO, 04/07/1974, capa).

A discussão seguiu nos dias após a eliminação:

Passo anuncia reestruturação do futebol
O Presidente da Comissão Técnica, Antonio do Passo, informou que todos os membros apresentarão seus relatórios à CBD, sugerindo principalmente, um estudo da possibilidade de reestruturação do futebol brasileiro:
– A Copa do Mundo de 1974 nos deu uma grande lição e nós da Comissão Técnica sentimos que chegou a hora de mudar os conceitos técnicos e táticos do futebol brasileiro (O GLOBO, 07/07/1974, p. 27).

A tal reestruturação passaria pelas Copas de 78, 82, 86 mostrando um futebol que ora encantava, ora era eficiente, mas sem um título sequer. Após os fracassos dos times de Telê nos anos 1980, Sebastião Lazzaroni assumiu com uma proposta de mais resultados, menos arte. Trocamos o “futebol-arte” pelo “pragmatismo”. Venceu a Copa América de 1989, é verdade. Mas na Itália, em 1990, a queda nas oitavas de final para a c Argentina, levantou novamente a tese da necessidade de mudança. Como vemos na matéria de Flávio Gomes:

Seleção do “futebol-nada” deve ser esquecida já a partir de hoje
[…] O pragmatismo de Sebastião faz sentido, mas só é defensável quando dá resultado. Da forma como tudo terminou ontem, os quatro jogos do Brasil na Copa da Itália passam para a história como exemplos de mediocridade, do “futebol-nada”, do “futebol-sem-resultados”, na verdade. Em quatro partidas, três delas terminaram com 1×0 no placar, um sinal de pobreza esportiva. A seleção brasileira de 1990 foi um time muito chato de se ver jogar (FOLHA DE S. PAULO, 25/06/1990, p. D1).

Os anos 1990 trouxeram o resgate do “país do futebol”. Frequentamos três finais seguidas, vencendo duas. A seleção chegaria em 2006 como favorita absoluta, afinal, desde 1982, nenhum outro time tinha encantado tanto quanto a equipe de 2005. A vitória da França liquidou um “futebol-arte” esperado, mas não jogado no torneio.

A chance de recuperação com uma equipe disciplinada, menos artística, veio quatro anos depois. O estilo do agora técnico Dunga, não agradou. Derrota novamente nas quartas, agora para a Holanda, e críticas aos comandantes e comandados:

A alegria há de voltar, José Geraldo Couto
Perder é sempre ruim, mas há um consolo. Com a derrota, a concepção bélica, triste e carrancuda de futebol do treinador Dunga talvez seja sepultada, ao menos por um tempo. Talvez voltemos a ver o futebol como um espetáculo, uma festa, uma alegria (FOLHA DE S. PAULO, 03/07/2010, p. D13).

Dunga durante treino da seleção brasileira em 2010. Foto: Agência Photocamera.

A queda do treinador Dunga – colocada pela imprensa como definitiva naquele momento – já era um sinal de mudança, como vemos na coluna de Renato Maurício Prado:

Fim de uma era sombria que não deixará saudade
[…] Ah, ia me esquecendo do mais importante: passamos, também, a praticar um joguinho chinfrim, sem graça nem talento, apenas na base de contra-ataque, sob a falácia de que o que interessa é o resultado – e não a consagrada história e a aplaudida e mundialmente reconhecida arte do nosso futebol. Vade Retro! (O GLOBO, 03/07/2010, p. 13, Caderno Esportes).

Chegaríamos ao ápice do atual “pedido de reinvenção” com a derrota para a Alemanha, em casa, na semifinal de 2014. O Brasil estaria atrasado diante do futebol praticado em outros países. O jornalista Fernando Calazans aponta como “Uma única saída: ressuscitar”:

O futebol brasileiro – aquele dos cinco títulos mundiais – só tem uma única saída: ressuscitar. Não há forma de remissão, de recuperação, de reação. O futebol brasileiro tem que nascer de novo. Tem que renascer. Para quem foi, para quem é pentacampeão do mundo, para quem tem um lugar definitivo na História, não deve ser impossível. […] Esse jogo, essa derrota, essa goleada histórica tem que ser guardada na memória, para marcar o início de uma era de total reformulação (O GLOBO, 09/07/14, p.2).

Lance da partida entre Brasil x Alemanha, válida pela semi-final da Copa do Mundo 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte-MG. FOTO: Jefferson Bernardes/ Vipcomm
Lance da partida entre Brasil x Alemanha, válida pela semi-final da Copa do Mundo 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte-MG. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

Tamanho o baque pela derrota, que a imprensa começa a questionar a perda da identidade nacional pelo futebol. A Folha de S. Paulo demonstra o desgaste dessa representação na sua editoria de Opinião, em um dos editoriais, com o título “Pátria sem chuteiras”:

Derrota brutal da seleção brasileira diante da Alemanha talvez possa representar o fim de uma era dentro e fora do futebol . […] O vexame histórico, ainda que não numa final de campeonato, vem eclipsar o famigerado ‘maracanazzo’ de 1950. […] A frustração – mas o termo é leve demais para descrever o que aconteceu – talvez possa, com o tempo, enquadrar-se num contexto diverso daquele que marcou, até hoje, as relações do brasileiro com seu esporte mais popular. […] Já constituía um fenômeno curioso que, no chamado país do futebol, tenham se observado movimentos expressivos, ainda que isolados, de oposição a que a Copa do Mundo se realizasse por aqui. […] A ideia de uma ‘pátria em chuteiras’, na célebre formulação de Nelson Rodrigues, terá provavelmente sofrido um subterrâneo desgaste ao longo dos anos. Um país mais diversificado, plural e rico foi deixando de ver, nos campos de futebol, sua única fonte de compensação diante dos muitos insucessos do seu projeto econômico e social. […] Injustificado, talvez, tenha se provado o hábito de depositarmos tanto de nossa identidade nacional num único esporte, num único campo, num único jogo – que sempre é o de hoje. […] A paixão futebolística sobreviverá, é claro, ao pesadelo de ontem. Mas o massacre, no que teve de brutal e inesquecível, não maculou apenas a mística da camisa verde-amarela; talvez venha a significar também o encerramento de uma época em que país e estádio, povo e torcida, governantes e técnicos, nação e seleção tendem a ser vistos como a mesma coisa. […] Talvez se possa dizer, a partir de agora, que o Brasil é maior que seu futebol – e que tem desafios mais importantes, e maiores, a vencer. (FOLHA, 09/07/14, p. A2).

Quanto à seleção brasileira, esta reformulação passa pelos próximos campeonatos. No início de maio, teremos a convocação para o primeiro torneio oficial após o desastre de 2014. Em parte, teremos mais sobreviventes do Mineirazzo na lista, do que os dois – Bauer e Ademir – que voltaram pós-Maracanazzo. Os principais jornais elogiam a nova postura da seleção, o novo Dunga. Alguns novos nomes, uma sequência de vitórias em amistosos e lá estamos nós, esperançosos em mais um título nacional. Cá estamos nós, reinventados. Mesmo que com os mesmos de antes.

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Chico Brinati

Professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Pós-doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como jornalista, atuou como produtor e editor na TV Integração, afiliada Rede Globo em Juiz de Fora-MG. Foi repórter de campo e plantonista da Rádio Panorama FM. Escreveu a coluna "Caneladas & Canetadas" no jornal "JF Hoje". Autor do livro "Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014".

Como citar

BRINATI, Chico. Reinventando o Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 71, n. 7, 2015.
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