39.8

Renascendo das cinzas

Marcos Alvito 28 de setembro de 2012

No início da década de 1980, o futebol inglês parecia destinado à auto-destruição. Na temporada 1984-1985, o público total não chegava nem a 18 milhões. O ano de 1985 seria o annus horribilis. Em março, a televisão transmite em rede nacional uma batalha entre torcedores do Luton e do Millwall. As cenas da polícia sendo varrida do gramado por uma massa enfurecida de torcedores chocam todo o país. No último sábado da temporada, um incêndio na arquibancada de madeira do Bradford – que estava celebrando o título da 3a. Divisão – leva à morte de 56 pessoas. Tudo fora causado por uma ponta de cigarro que cai atrás das arquibancadas, onde havia lixo acumulado há décadas. Em 29 de maio, em um jogo transmitido ao vivo pela televisão para vários países, 39 torcedores do Juventus morrem esmagados quando fugiam de um ataque dos torcedores do Liverpool, durante a final da Copa Européia de clubes no estádio de Heysel, em Bruxelas. O estádio fora mal escolhido e o planejamento da polícia mal feito, mas nada disso atenua o horror diante do acontecido.

Heysel levou a UEFA a banir os clubes ingleses das competições europeias por prazo indeterminado, proibição que perduraria por cinco anos. Margartet Thatcher, a “Dama de Ferro”, eleita com base em uma plataforma de “lei e ordem”, forma um “gabinete de guerra” contra os hooligans, por ela chamados de “o inimigo interno”. Ainda em 1985, o álcool é banido dos estádios ingleses. No ano seguinte, a “conduta desordeira”, definida de forma vaga e ampla, é penalizada como crime, dando maior poder de prisão à polícia.

Cada vez mais são utilizados circuitos internos de televisão para filmar, vigiar e processar os torcedores violentos. A polícia começa a se infiltrar nas gans de hooligans tentando prender os líderes dessas organizações, embora às vezes as operações undercover terminem em fracasso. O governo Thatcher, por fim, propõe um esquema de cartões computadorizados para controlar o acesso dos torcedores aos estádios, uma medida que afrontava a liberdade e tratava a maioria pacífica dos torcedores como criminosos. Os torcedores reagem contra esta proposta através de um abaixo-assinado organizado pela recém-criada Football Supporters Association, procurando pressionar os parlamentares. 

Em meio a essa intensa batalha política, ocorre a maior tragédia da história do futebol inglês. Em 15 de maio de 1989, um sábado de sol, Liverpool e Nottingham Forest jogavam a semifinal da FA Cup em Hillsborough, estádio do Sheffield Wednesday. Como a maioria dos estádios ingleses, Hillsborough era um estádio antigo, que não oferecia maiores condições de conforto e de segurança aos torcedores. Dois terços dos clubes das quatro primeiras divisões jogavam em estádios construídos antes de 1910.

A preocupação com os hooligans alterara para pior esses estádios: o objetivo principal era conter a violência, tudo o mais ficava em segundo plano. Hillsborough, considerado pela Football Association um dos melhores estádios do país, sofrera reformas parciais, subdividindo os terraces em uma série de pens, aprisionando os torcedores em verdadeiras gaiolas. Dois desses pens, os de número 3 e 4,  ficavam bem atrás do gol, um lugar muito apreciado.

A massa de torcedores do Liverpool começa a concentrar-se horas antes, mas fica do lado de fora bebendo cerveja e tomando sol, o que era algo de se esperar. O número de roletas por onde eles podem entrar é diminuto, e à medida em que vai chegando a hora do jogo a concentração e o aperto do lado de fora das roletas vão piorando minuto a minuto. Algumas pessoas começam a passar mal e os policiais não conseguem impedir a confusão. Os torcedores, cada vez mais impacientes diante da proximidade do pontapé inicial, começam a empurrar e a pressionar. Oito minutos antes da partida começar, a polícia decide abrir os portões para evitar o esmagamento do lado de fora. 

Uma onda de torcedores do Liverpool precipita-se para dentro do estádio, entrando em um túnel em declive que saía diretamente em frente dos dois pens localizados atrás do gol. A sinalização era falha, não apontando a possibilidade deles se dirigirem para os outros dois pens nas extremidades, aonde havia bastante espaço. A polícia simplesmente abriu os portões e não tomou medidas para impedir a superlotação dos pens 3 e 4. A pressão da multidão aumenta ainda mais quando o Liverpool chuta uma bola na trave logo nos primeiros minutos de jogo: os que estavam no túnel forçam ainda mais a sua entrada nos setores atrás do gol, formando uma onda humana irresistível.

A polícia demorou a perceber o que estava ocorrendo e chegou a usar de força para impedir os torcedores que tentaram escapar da morte pulando as grades. Os policiais pensavam que fosse mais uma tentativa de invasão de campo. Quando as portas que davam passagem ao campo foram abertas já era tarde demais. O jogo foi interrompido aos seis minutos do primeiro tempo. Noventa e seis pessoas morreram esmagadas, pressionadas contra as grades ou no meio da multidão compacta.

Como é tradição na Inglaterra, um alto magistrado foi encarregado de preparar um relatório acerca da tragédia de Hillsborough, descrevendo as causas do ocorrido e propondo medidas para evitar novos desastres. Lord Taylor, ao contrário do que esperava o governo conservador, retira a culpa dos torcedores e acusa os clubes, as autoridades e a polícia. Em nome da preservação da lei e da ordem, os torcedores eram coletivamente tratados como criminosos e não havia preocupação com a sua segurança ou o seu conforto.

Em seu relatório final, publicado em janeiro de 1990, Taylor propõe uma transformação radical no futebol inglês. Posiciona-se contra o esquema dos cartões computadorizados, questionando sua utilidade enquanto mecanismo para reduzir a violência e demonstrando que era na prática inaplicável. Recomenda a retirada das grades ou pelo menos a sua redução para por fim aos estádios-prisão, dando maior conforto e segurança aos torcedores. Para controlar os torcedores violentos, propõe criminalizar as invasões de campo, as agressões verbais – incluídas aí as manifestações racistas e o arremesso de objetos no campo. Taylor também aconselha melhores normas de segurança, maior planejamento por parte da polícia e maior rigor das autoridades na fiscalização das condições de funcionamento dos estádios.

Taylor viajou todo o país, visitou dezenas de estádios, consultou especialistas, conversou com torcedores e autoridades do futebol. Mais do que simplesmente melhorar a segurança dos estádios, seu relatório final posiciona-se a favor do respeito aos torcedores e às suas reivindicações de maior participação nas decisões tomadas por clubes e pelos órgãos que controlam o esporte. Embora previsse medidas contra a violência, Taylor clamava por uma mudança de mentalidade por parte da polícia, acostumada a tratar todos os torcedores como criminosos em potencial.

Outra proposta feita por Taylor iria revolucionar a ecologia dos estádios ingleses. Em nome do conforto e, principalmente, da segurança dos torcedores, Taylor propõe o fim dos terraces, tornando obrigatória a colocação de assentos em todos os estádios das quatro primeiras divisões da Inglaterra dentro de no máximo quatro temporadas (em 1994-1995). Posteriormente a norma foi alterada e continuou obrigatória somente para as duas primeiras divisões.

Taylor admitia que a capacidade dos estádios seria reduzida, mas pedia que os torcedores não fossem penalizados financeiramente. Infelizmente, embora a maioria das propostas encaminhadas por Taylor tenha sido seguida, não pode-se dizer o mesmo do “espírito” do relatório. Muitas das mudanças foram implementadas em nome da segurança mas, na prática, tentando transformar o torcedor em consumidor, para atrair preferencialmente famílias de classe média, com maior poder aquisitivo e comportamento mais passivo.

Por um lado, as mudanças pós-Taylor recuperaram a credibilidade do futebol inglês, desgastada por décadas de hooliganismo. Havia um consenso nacional quanto à necessidade de por fim ao que vinha acontecendo no futebol. A tragédia de Hillsborough sensibilizou a todos quanto a isso. Tinha que se dar um basta. As reformas nos estádios eram absolutamente necessárias, quanto a isto não há dúvida.

A ênfase na segurança dos torcedores dava um novo norte às autoridades até então obcecadas com a questão da violência. A polícia é obrigada a admitir seus erros e excessos e a buscar um novo tipo de relacionamento com os torcedores. Os clubes, todavia, irão aproveitar as mudanças de forma a elitizar o futebol. Agora a classe trabalhadora, o coração do futebol inglês, não será mais bem vinda. Nos estádios reformados ou nos novos e modernos estádios construídos de acordo com as normas o preço das entradas vai subir assustadoramente de forma a afastar os “indesejáveis”. Agora a classe trabalhadora, antes o coração e a alma do futebol inglês, não será mais bem vinda. Na verdade, o público deixa de ser tão importante, porque cada vez mais o futebol passa a ser um produto fabricado para a televisão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Renascendo das cinzas. Ludopédio, São Paulo, v. 39, n. 8, 2012.
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