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Reprises: emoções e passado em tempos de pandemia

Momento curioso este no qual podemos receber intimamente músicos e outros artistas em nossas casas, através de shows transmitidos ao vivo, enquanto no universo do futebol podemos nos sentir presentes em eras passadas, “reviver” conquistas e mergulhar em sequências de vitórias inesquecíveis de times e seleções, através de reprises na TV. Ocorridos mais de dois meses de isolamento social, mais ou menos efetivo, esses jogos não são mais uma grande novidade, mas ainda podem nos estimular a pensar.

O podcast Bola Presa [1] lançou, em algum lugar do mês passado, a reflexão: vale a pena ver reprise no esporte? Assistir esporte ao vivo é essencial? A partir de um texto sobre as vantagens da transmissão esportiva ao vivo na TV, de autoria do estadunidense Chuck Klosterman, Denis Botana e Danilo Silvestre discutiram o papel das reprises em meio ao isolamento social que nós – aqueles que podem – vivemos.

Chamada da TV Globo para as reprises de jogos históricos de futebol. Foto: Reprodução/Infoesporte/TV Globo.

Estas são as cinco razões de Klosterman para preferir o esporte ao vivo às reprises: 1) os comerciais, momento no qual é construída a tensão do jogo; 2) a proximidade do jogo em tempo real, pois o acontecimento do jogo perde a sua intensidade conforme o tempo passa; 3) a sensação de falta de controle sobre a partida; 4) o envolvimento pessoal de cada um com o jogo, que inclui clima, superstições, energia e sorte; e, por último, 5) se a partida já aconteceu e você não ficou sabendo dela, então é porque não foi nada de mais, não valendo a pena assistir [2].

Podemos concordar ou não com as razões do autor, mas, em tempos de pandemia, os jogos passados tornam-se algo mais relevante no mundo esportivo. Na verdade, a única possibilidade de contato com partidas entre clubes brasileiros. Ainda que, em relação ao futebol ao vivo, assistir reprises seja como abraçar cadáveres (como a opinião de Klosterman citada no referido podcast), não há como negar o potencial afetivo, social e histórico dos jogos passados para muita gente.

Outro aspecto interessante da ausência de jogos ao vivo nas emissoras é o protagonismo de debates que alguns insistem dizer não ter relação com o futebol: questões políticas e sociais do esporte, majoritariamente delegados a um submundo subjetivo acadêmico/jornalístico daqueles que se esforçam em torná-los visíveis. Como lembrou o historiador Ricardo Pinto dos Santos, em entrevista ao jornalista Breiller Pires [3], mesmo as reprises podem ser instrumentos de reflexão, tanto da forma como nos relacionamos uns com os outros, quanto sobre como o esporte integra a engrenagem política do Brasil. É importante olhar para o passado com outros olhos, não no sentido de reinventá-lo, mas de enxergar nele acontecimentos e nuances antes não vistas.

Se, a princípio, as reprises fazem fruir menos as emoções e produzem menos tensão, muito por causa do contexto mais frio e controlável, por outro lado, há a oportunidade de se conectar com aspectos mais racionais do jogo e também com emoções diferentes das evocadas no futebol ao vivo [4]. Essas partidas são oportunas também para debates intergeracionais que podem desnaturalizar o “foi sempre assim” ou o “antes não era assim”, constantemente evocados no “calor” do jogo.

De alguma maneira, as reprises podem dizer um pouco da forma como nos relacionamos com o passado, embora se deva evitar a relação causal direta entre uma coisa e outra. Elas podem evocar saudades (inclusive do que não vivemos), indignações, apaziguar ânimos, enfim, emoções e sentimentos que intensificam ou ressignificam experiências.

Podemos compreender, então, aqueles que adoram e os que não gostam muito das reprises, pois mergulhar em um universo nostálgico pode ou não ser prazeroso. Vale lembrar que, mesmo nas mais célebres vitórias há a possibilidade do incômodo e do desconforto, pois assistir ao passado pode ser também um encontro com angústias. Não à toa nos interessamos por grandes jogos que narram histórias de sucesso e vitórias de nossos times e raramente em rever as derrotas lamentáveis. Os momentos não exitosos fazem parte da construção das vitórias, entretanto, ninguém anseia rever as grandes derrotas, ainda que alguns admitam ser possível aprender com elas.

Imersos em passados vitoriosos, curioso será quando chegar o momento de voltar à rotina do desempenho nem sempre tão certo e sublime de nossos times e seleções. Dos desencantos do presente, das vitórias incertas, mas também dos reencontros em bares e estádios que nos permitirão construir novas vivencias e memórias.

Notas

[1] O Bola Presa é um podcast sobre basquete.

[2] Para saber do desdobramento desses cinco pontos, vale a pena conferir o programa #254 do Bola Presa.

[3] Reportagem com a entrevista disponível neste link.

[4] Há que se considerar também as diferenças entre o jogo ao vivo no estádio e na TV.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. Reprises: emoções e passado em tempos de pandemia. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 51, 2020.
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