165.22

Resenha: Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde

Yohann Lossouarn 22 de março de 2023

Christian Bromberger, Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde, Bayard, 1998, 139p.

Este livro já tem um quarto de século. Então, o estado da questão do futebol na etnologia que seu autor elabora aqui (especialmente usando os seus trabalhos, mas não só) não é o mais recente (em português, alguns capítulos da “FCH” (Giglio et Proni 2020) fazem isso com excelência). No entanto, trata-se de um cientista francês e o seu trabalho – e o dos outros franceses que ele usa– não é dos mais conhecidos no Brasil. O país do futebol não necessita da Europa para produzir literatura científica sobre o seu esporte rei (ainda, FCH para o último estado da questão, Giglio et Proni 2020), mas eu gostaria aqui de apresentar este livro, ilustrando uma parte da carreira de Christian Bromberger sobre o futebol.

No início da obra ele apresenta de forma crítica as diferenças teóricas e científicas elaboradas sobre o futebol em nossas sociedades. A primeira que ele critica é a mais mencionada: “ópio do povo”. Ele se baseia no trabalho de Jean-Marie Brohm (que publicou dezenas de textos sobre o tema). Em um primeiro tempo, Bromberger faz uma crítica contundente à metodologia usada por Brohm, apontando sobretudo para a falta de estudos empíricos.  Como contraponto, ele mobiliza alguns exemplos concretos, como a famosa Democracia Corinthiana e também o caso de fanzines de torcidas organizadas do sul da Europa, ambos exemplos da construção de um  verdadeiro pensamento libertário. O autor referencia outros de seus trabalhos para contraditar uma teoria do futebol como gosto social (de uma elite num tempo… e popular num outro…), mostrando que o que é social é muito mais a maneira de assistir do que o fato de assisti-lo (Bromberger 1995).

Bromberger
Fonte: divulgação

Por que futebol?

Outra questão chave do livro é a busca pela explicação da popularidade e universalidade deste esporte. Para tal, o autor apresenta uma  lista das particularidades do futebol – especialmente a facilidade da prática. Esta é – para mim, historiador – uma fraqueza do livro, pois  os casos apresentados não vêm acompanhados de uma reflexão histórica. 

Por outro lado, ao justificar o sucesso do futebol como espetáculo, Bromberger usa os resultados de seus trabalhos empíricos (realizados nas cidades de Nápoles, Turim, Marselha, Lens) dando força ao seu argumento. Seu ponto inicial é que este espetáculo ganha sentido quando se é partidário, apoiante (ele não fala aqui exatamente do torcedor/supporter). “O partidarismo é a condição necessária para garantir a máxima intensidade patética no confronto. Também é fundamental para viver plenamente o sentimento de ser ator de uma história incerta que se constrói diante de nossos olhos” (p. 30), cujas peripécias majestosas ou injustas vão alimentar discussões intermináveis após o jogo e até o próximo.

É nesses momentos também que ele viu os partidários fazerem a construção de algo jogador ou estilo de jogo como referência de uma identidade de um torcedor, da torcida ou de toda a cidade. Se o futebol joga um papel “performativo” na afirmação da identidade, é porque é uma maneira de ser, mas sobretudo de fazer sua narrativa. Os exemplos paradigmáticos são os de Marselha (OM) e Nápoles; cidades do sul que têm uma disputa histórica em relação  ao norte dos seus países, contexto no qual constroem as narrativas como times loucos, surpreendentes e esplêndidos.

Identidades através do futebol

O futebol como uma afirmação da identidade pode tornar-se também violência. O estádio pode representar um espaço onde sente-se livre para externalizar  valores que não são mais possíveis de endossar na sociedade. Para Bromberger, uma análise científica que se atenta a isso tem o poder de revelar  um inconsciente dos homens de nossas sociedades. 

Nos seus trabalhos empíricos, e também na sua revisão da literatura antropológica, ele chama atenção para  a ostentação da virilidade, notadamente nos insultos (em relação ao juiz, os jogadores, as torcidas etc.), podendo chegar até posicionamentos fascistas dentro de alguns grupos. Outro tipo de violência é a violência física – que, segundo o autor, está longe de ser uma questão restrita às classes populares -, especialmente no norte da Europa (Dunning, Murphy, et Williams 1988). Esse sintoma é, para ele, um resultado do fato de que as torcidas foram bem menos organizadas no Norte (Inglaterra, Países Baixos, etc.) que no Sul (Itália, França, etc.). 

Torcida
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

O Irã e o futebol

Todas essas reflexões são confrontadas no último capítulo da obra, apresentando o caso  do Irã e o  futebol como símbolo das tensões da sociedade. Aqui se vê a atualidade da publicação, de 1998, com a qualificação para a Copa do Mundo do time nacional – e ainda no grupo dos Estados Unidos! Assim, se Bromberger usou muitas vezes das análises antropológicas do futebol para iluminar cristalizações de identificação em algumas sociabilidades, nesse exemplo ele apresenta as evoluções de uma nação que – no futebol – pesquisa e tenta diversas alterações (mostrando a atualidade de sua análise). 

O autor destaca muitas tensões que evidenciam as oposições “tradição vs modernidade”, como por exemplo a presença proibida de mulheres nos estádios vs as celebrações femininas (especialmente jovens de classe rica) da qualificação da equipe nas ruas de Teheran. Também chama atenção para a transformação de um  esporte tradicional da luta vs uma visão moderna com o futebol que pode ser usada pelos políticos para mostrar um estilo de vida. E ainda evidencia as acusações do futebol como um signo da inveja cultural ocidental vs a satisfação —nacionalista também— de vê-lo como  consenso da população em uma celebração nacional. Essa modernidade também se expressa na estrutura empresarial dos clubes profissionais e na diversidade de origem dos jogadores nas seleções nacionais, que são mais outros pontos de uma dinâmica da sociedade iraniana no extremo fim do século XX.

Bromberger conclui sua obra afirmando que o futebol oferece um ótimo ponto de observação para as investigações antropológicas como linguagem comum dos homens, qualquer que seja as regiões ou gerações. “Uma bagatela plena de senso comum, em suma” (p. 126) que então merece ser estudado. 

Bibliografia

Bromberger, Christian. 1995. Le match de football: Ethnologie d’une passion partisane à Marseille, Naples et Turin. Éditions de la Maison des sciences de l’homme.

Bromberger, Christian. 1998. Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde. Paris: Bayard.

Dunning, Eric, Patrick Murphy, et John M. Williams. 1988. The Roots of Football Hooliganism: An Historical and Sociological Study. Routledge & Kegan Paul.

Giglio, Sérgio Settani, e Marcelo Weishaupt Proni. 2020. O futebol nas ciências humanas no Brasil. Editora da Unicamp.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Yohann Lossouarn

Doutourando na universidade Paris Cité (França).

Como citar

LOSSOUARN, Yohann. Resenha: Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 22, 2023.
Leia também:
  • 176.27

    Como Durkheim – com ajuda de Simmel – explicaria o futebol

    Rodrigo Koch
  • 173.11

    Salif Keïta, the defiant Malian football legend who created history on and off the field

    Paul Dietschy
  • 171.18

    A guerra em Nice: o que de fato aconteceu naquela noite

    Gabriel de Oliveira Costa