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Retrospectiva do futebol argentino em 2022: “grietas” e “morbos” para todos!

Fabio Perina 3 de novembro de 2022

Como forma de dar mais movimento a esse texto trabalharei a uma dinâmica de tratar dos acontecimentos de fora para dentro de campo. Um ano que pouco há o que se falar no otimismo com a seleção argentina (conhecida como “Scaloneta” pelo seu treinador Lionel Scaloni) quem não somente venceu a Itália por 3 a 0 em Wembley como mantém um recorde invicto com mais de 30 partidas e assim se credencia a ser um dos favoritos para o Mundial do Catar nas últimas semanas do ano. O que se esboça no cotidiano do país vizinho um imenso abismo entre otimismo com a seleção, porém um desastre na crise-país e na crise-futebol local. (Obs: como nota de conjuntura, a crise argentina no país foi percebida no Brasil como “pauta” eleitoral fértil de fake news, enquanto a crise argentina no futebol foi percebida no Brasil como uma “evidência” da banalização da Libertadores atualmente sob hegemonia de clubes brasileiros e um correspondente desinteresse pelos assuntos que vindos de lá).

A começar pela breve menção à profunda crise social-econômica-política em espiral autodestrutiva diante de um acelerado endividamento do país e de um acelerado empobrecimento da população. (Obs: Daí o uso de “grieta” no título da crônica como termo genérico do meio político-midiático para se referir a incidentes e turbulências diversas, como essa crônica está repleta). Pois a inoperância do presidente Alberto Fernandez em governar remete na prática a ter entregado as chaves do governo da coalizão Frente de Todos ao super-ministro de Economia Sérgio Massa e à vice-presidente Cristina Fernandez Kirchner. Ela também uma ex-presidente que já teve dois mandatos entre 2007 e 2015, quando inclusive criou um programa de equilíbrio entre clubes pequenos e grandes nos direitos de transmissão do futebol conhecido como “Futbol para Todos” (por isso a ironia no título da crônica). Porém sofre cada vez mais intensa oposição da direita macrista e, para piorar, da radicalização das ações diretas da recém-criada extrema direita como uma tentativa de homicídio. Algo para se acompanhar com cada vez mais atenção diante de eleições presidenciais que ocorrerão no final de 2023. Embora com repercussões cada vez mais profundas e cada vez mais antecipadas nomeio futebolístico. Entrando nos acontecimentos futebolísticos, esse é o gancho para seguir nas breves menções a seguir em cada item:

– desde cima: Como premissa duradoura, há intensas relações promíscuas entre dirigentes de clubes e federações com políticos e até autoridades de segurança. Tendo atualmente um papel central o atual presidente da AFA, Cláudio “Chiqui” Tapia, em duas frentes: o favorecimento escandaloso por árbitros (mesmo com VAR) e tribunais disciplinares a seu clube Barracas Central e a incapacidade de organizar uma liga minimamente atrativa e rentável diante do excesso de participantes (28). Vide as constantes mudanças de regras a cada temporada entre formato Copa da Liga ou Superliga e entre haver ou não rebaixamentos.

Barracas Central
Chiqui Tapia celebrando com seus dois filhos o título do Barracas Central em 2019. Fonte: reprodução/www.barracascentral.com

– desde baixo: Ddiante da premissa anterior, houveram inúmeros incidentes e tragédias em todas as instâncias de partidas e de todos os tipos: provocações de jogadores a torcedores, ameaças de torcedores a jogadores, protestos de torcedores a dirigentes, invasão de campo por torcedores, repressão policial contra torcedores, etc. Deixando como pequeno exemplo alguns casos dos mais escandalosos como no Velez x Talleres pela Libertadores e no Gimnasia x Boca na reta final da Superliga.

– Já entrando nos fatos de dentro de campo também houveram amistosos festivos de despedida para os jogadores Gata Fernandez no Estudiantes e Leo Ponzio no River, assim como também no River o anúncio do final do tão vitorioso ciclo do treinador Marcelo Gallardo.

– Como desempenho geral no ano, Estudiantes e Velez foram muito bem na Libertadores (apesar do fundo da tabela na Superliga) contando com os treinadores Ricardo Zielinski e “Cacique” Medina. Assim como o Tigre, finalista da Copada Liga no primeiro semestre; e Atlético Tucumán e Gimnasia La Plata, líderes por diversas rodadas da Superliga no segundo semestre. Enquanto a surpresa dos últimos anos, Defensa y Justicia, parece ter estagnado. Já para a maioria dos grandes o ano foi de decepções e turbulências ainda maiores do que em 2021: Central, Newell’s, Independiente e San Lorenzo. Sobre eles, uma breve menção ao Central com um bom trabalho do estreante treinador Carlitos Tevez, o Independiente com imensa crise fora de campo com a renúncia do presidente e líder sindicalista Hugo Moyano e o San Lorenzo com a aposentadoria de dois referentes históricos da Libertadores de 2014: o goleiro Torrico e o volante Ortigoza.

– Enquanto para River e Racing houve muita expectativa por disputar títulos, mas também muita frustração por não alcançá-los. A sutil diferença que para o River ela veio de forma mais gradual através de eliminações precoces (Tigre na Copa da Liga, Velez na Libertadores e Patronato na Copa Argentina) e de uma desanimada Superliga em que sempre esteve entre os primeiros mas nunca com uma arrancada suficiente para dar condições reais de assumir a liderança. Fazendo com que o último ano de Gallardo fosse o mais decepcionante quanto a resultados e até mesmo quanto a desempenhos (mostrando não ter mais a equipe na mão). A equipe enfrenta uma díficil transição geracional com referentes históricos que já não podem entregar na condição física como os zagueiros Maidana e Pinola com seguidos erros primários e o volante Enzo Pérez. Enquanto os jovens talentos ainda não engrenaram. Já para o Racing a frustração veio sempre de forma mais intensa e dramática através de eliminações precoces mais vergonhosas (o modesto River-URU na Copa Sul-Americana e o semi-amador Agropecuario na Copa Argentina) e principalmente com o desfecho agônico da Superliga em 23 de outubro conforme veremos a seguir.

– Tratar da disputa entre Racing x Boca nos últimos meses permite olhar com um tempero a mais para o termo “morbo” com o seu duplo sentido para desempenho e resultado. Esse termo por origem significa preliminares sexuais, mas em um contexto futebolístico significa excesso de toque de bola e pouca objetividade em buscar o gol. Quanto a desempenho, atualmente o Racing do treinador Fernando Gago e o Boca do treinador Hugo Ibarra (assim como antes com Sebastián Bataglia) são os que melhor encarnam essa disputa discursiva de estilos de jogo: idealismo para o primeiro e pragmatismo para o segundo. O que também repercute nos resultados dos últimos meses e também dos últimos anos, sendo o Racing a equipe que mais se credencia a praticar um bom futebol, porém de fato é o Boca quem ganha os títulos nacionais. Como ao vencer o Tigre na final da Copa da Liga, em 22 de maio, aliviando um pouco a pressão de um ambiente turbulento. Falando no Boca, na metade do ano relatei essa turbulência permanente dentro do clube que é o assim chamado“cabaret” nas últimas décadas e até nos últimos meses. Ora, se a maioria dos escândalos e decepções eram responsabilidade dos jogadores referentes da equipe (como Benedetto, Rojo e sobretudo Villa), o pouco capacitado treinador Ibarra ao menos acertou ao não depender somente deles e apostar nos jovens talentos (como Pajero, Langoni e Vasquez) vindos das categorias de base do clube que ele recém treinara. Sendo esse o segredo para uma arrancada do meio da tabela à liderança na reta final. Em suma, o “método” Riquelme para unir o grupo com churrascos todas as sextas-feiras a noite passou de criticado a exitoso e evidente que não passaria impune pelos memes: “Asados para Todos!”

– Quanto a resultado, quis um capricho do destino que justamente a última rodada da Superliga tivesse a definição do título não somente o Boca na liderança e o Racing como vice, como os adversários da rodada seriam, respectivamente, o Independiente na Bombonera e o River no Cilindro. Foi então que durante a última semana o periodismo foi à loucura como segundo sentido de “morbo”: entre Independiente e River, qual iria facilitar mais a partida ao adversário para não entregar um título ao rival? Para surpresa de todos, foram partidas muito disputadas por todos os envolvidos (como se todos tivessem chances de título). Inclusive com viradas nos placares: o Boca começou perdendo mas deu a virada e por fim empatou; enquanto o Racing começou ganhando mas levou a virada. Final: Boca 2×2 Independiente e Racing 1×2 River. Com o título se mantendo na Bombonera. E mais, sobre os dois clubes grandes que apenas cumpriram tabela ficou ao final um questionamento de fundo: porque justo na última rodada se dedicaram tanto e não todo o torneio? Como não poderia deixar de ser os minutos finais foram agônicos: duplo empate simultâneo e pênalti para o Racing, porém seus referentes como Hauche e Copetti tiveram uma pipocada geral na decisão de quem seria o batedor. Por fim o garoto Rojas o perdeu, vindo o gol do River logo depois em contra-ataque. É então que o questionamento final e mais constrangedor ficou aos torcedores do Racing e principalmente do Boca ao se verem em plena cancha obrigados a comemorar um gol do maior rival!

Assista os agônicos minutos finais da última rodada.

– Em suma, aprofundando as considerações anteriores, foi uma imensa ironia que em um torneio tão criticado de ter sido nivelado por baixo acabou levando a tantas emoções paradoxais e até existenciais nos últimos dias e sobretudo nos últimos minutos. Indiretamente nos últimos dias se esboçaram debates discursivos em vários meios (grande mídia, mídia alternativa e claro entre torcedores seja em meio real ou virtual) sobre um contraste de valores. Seja entre amadorismo/ética x profissionalismo/pragmatismo do Esporte em si e entre os clubismos particulares. Um debate que não pode ser conclusivo em esfera discursiva de algoritmos e estúdios com ar-condicionado, mas apenas projetado e decidido na esfera instintiva dentro de campo quando o inesperado emerge de dentro de cada torcedor.
– Dessa forma, um novo item que pode ser chamado de “efeitos colaterais” de fim de temporada com mais alguns aperitivos de “morbos”. O primeiro, de alguma forma o atual Boca de tão pragmático se beneficia do “método” federativo de extremo improviso no calendário da AFA sob “Chiqui” Tapia que poderia ser chamado “Torneos para Todos” pela qual um campeão de Copa da Liga ou Superliga disputará inúmeros torneios de uma única partida como Supercopa, Copa de Campeones e até Copa Maradona para poder alegar que ganha mais troféus que os demais. Já o segundo, em poucos dias a disputa do torneio entre Boca x Racing se viu ofuscada nos vários meios e se transfere para a disputa da história entre Boca x River diante da hinchada xeneize tenta fazer o tema de Madri retornar ao debate ao sustentar uma nova narrativa que o rival renunciou de sua grandeza, e assim reaquecer uma “grieta” permanente de quem é o mais grande. Já por outro lado a hinchada millonaria, principalmente os mais gallardistas, buscam equilibrar um uso ao mesmo tempo dos valores universais e particulares ao alegarem que ao mesmo tempo o clube não manchou sua história e que seu treinador é tão eficiente que, cansado de ganhar títulos para si, acabou por ironia ganhando um para o rival que tanto cansou de superá-lo. “Que la cuenten como quieran”

– Por fim, se já não bastassem estórias curiosas, a Copa Argentina como sempre foi fértil. O torneio historicamente com diversos clubes grandes finalistas e vencedores também costuma ter surpresas finalistas. Vide em cerca de 10 anos de existência nunca houve um clássico para decidi-la. Dessa vez se já não bastasse as eliminações precoces de Racing e San Lorenzo contra Agropecuário e Racing-Córdoba, surgiu o modesto Patronato (da cidade de Paraná na província de Entre Rios) eliminando simplesmente River nas quartas e Boca nas semis, ambas por pênaltis. Sendo que contra o Boca carimbou sua faixa apenas 3 dias após o título da Superliga. Já na final disputada em Mendoza derrotou o Talleres de Córdoba (clube-empresa do milionário Alejandro Fassi cuja franquia já comprou o Pachuca-MEX e o Everton-CHI), que inclusive vinha de ótimas temporadas recentes. Ou seja, apesar de todos os defeitos do modelo clubístico associativo, o Patronato se veste de “outsider” ao representar uma série de contestações ao oficialismo. Por vencer nessa final um clube-empresa que era favorito. Por superar os gigantes River e Boca e com isso frustrar a expectativa mercadológica de um possível Superclasico em uma semifinal. Por obter uma vaga na disputa da Supercopa Argentina deslocada para Abu Dhabi para enfrentar o Boca campeão da Superliga. (Dessa forma, a expectativa dos empresários da AFA e dos xeiques árabes era de outro possível Superclasico em instância decisiva, porém a sua impossibilidade fez com que ocorressem em todo o ano apenas 2 encontros por Copa da Liga e Superliga enquanto rodadas normais, frustrando várias expectativas clubísticas e financeiras). Ora, um fatídico encontro, em 26 de julho, desse torneio (tido como sonolento por muitos) que amarra o início com o final desse texto em que em um Barracas x Patronato em escandaloso roubo de arbitragem a favor do “club del poder” despertou a revolta em todo o clube e da comunidade do Patronato. A ponto do treinador Eduardo Sava desabafar que perdia a vontade de trabalhar depois disso e sobretudo de aparecer uma faixa insólita no estádio remetendo a uma letra de cumbia: “Quieren bajarnos, no saben como hacer!”. Com o rebaixamento e depois o título o destino redimiu parcialmente o clube. E mais inusitado ainda por ter sido rebaixado na Superliga nas últimas semanas, repetindo a situação curiosa do Tigre de 2019 que ao vencer a mesma Copa Argentina (justo contra o Boca em Córdoba) obteve uma vaga na Libertadores nessa mesma condição paradoxal.

Patronato
Patronato vence o Talleres, e conquista a Copa da Argentina e vaga na Libertadores. Fonte: reprodução/Patronato
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Retrospectiva do futebol argentino em 2022: “grietas” e “morbos” para todos!. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 3, 2022.
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