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Reviravoltas na trama: ginástica, política e vida de Vera Caslavska

Wagner Xavier de Camargo 29 de novembro de 2020
Vera Caslavska em 1967. Foto: Wikipédia

Hoje consigo mapear quais foram algumas das fontes que me fizeram gostar de história do esporte e a procurar saber mais sobre elas. No meio de uma aula de geopolítica no início dos anos 1990, ainda no colegial, um detalhe me chamou atenção: uma ginasta que defendia um regime político mais democrático para seu país e que, tempos depois, fora perseguida pelos soviéticos. O comentário durou segundos no detalhamento de uma explicação sobre a Primavera de Praga, mas repercutiria anos mais tarde em minha formação e visão de mundo. Em 2012, para minha surpresa, um documentário sobre a vida de tal atleta foi lançado.

Věra 68 (90 min., dirigido pela cineasta Olga Sommerova) resgata a trajetória de vida de Vera Caslavska, exímia ginasta, que teve uma carreira olímpica extremamente bem-sucedida. Realizado pela Evolution Filmes e pela televisão Tcheca, o projeto fílmico teve apoio financeiro, igualmente, do governo japonês. A relação de admiração do Japão pela atleta tcheca veio pela participação cativante dela nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, e pela sintonia e amizade que desenvolveu com ginastas daquele país, como Yukio Endo, medalhista de ouro (geral na ginástica) naqueles Jogos e porta-bandeira do país em 1968.

Caslavska começou sua vida esportiva na patinação, mas logo se enveredou pela ginástica artística (na época, conhecida como “ginástica olímpica”). Já no Campeonato Mundial de 1958, realizado em Moscou (capital da então União Soviética), conquistou uma medalha de prata por equipe. Os anos 1960, contudo, vão ser extremamente produtivos para seus resultados, tanto em Mundiais (1958, 1962 e 1966), quanto nos Campeonatos Europeus (1959, 1961, 1965 e 1967) e Jogos Olímpicos (1960, 1964 e 1968).

Nas duas caixas que arrasta em companhia da pequena neta, numa cena do documentário, encontravam-se as inúmeras medalhas, incluindo as 11 que ganhou apenas em provas olímpicas (sete delas de ouro e quatro de prata). Essa é uma das tomadas iniciais do documentário, que apresenta uma senhora, ao mesmo tempo simpática e melancólica, que fala sobre seus tempos de glória.

Vera Caslavska em 2015. Foto: Wikipédia

O contexto em que viveu parte de sua vida de ginasta foram os efervescentes anos 1960. Seu país era a ex-Tchecoslováquia, que vivia sob forte domínio soviético. Partícipe da chamada “cortina de ferro”, tinha como regime o socialismo real, implantado com a ocupação do leste da Europa, pós-II Guerra. Para uma/um atleta, a existência não era fácil: treinavam-se muitas horas por dia, pois o regime político também dependia de seus sucessos esportivos.

Vera era uma pessoa conhecida e, depois de Tóquio-64, tornara-se uma espécie de garota de ouro na ginástica. Era franca favorita em vários aparelhos de sua modalidade nos Jogos México. O ano de 1968 se inicia com um cenário acalentador: o presidente reformista Alexander Dubček anuncia uma série de medidas liberalizantes, como descentralização e democratização econômicas e mesmo garantias de maiores direitos para cidadãos tchecoeslovacos. Tais medidas compunham o que passou a ser conhecido como “Primavera de Praga”, um movimento de abertura, endossado por intelectuais e também por atletas. A assinatura de Vera no “Manifesto das 2000 palavras” que legitimava o presidente, colocou em xeque sua participação nas Olimpíadas e, de meu ponto de vista, dá início a primeira das muitas reviravoltas que sua vida daria a partir desse momento.

O período de esperança de dias melhores não dura muito. Exército e tanques da União Soviética ocupam Praga, capital da Tchecoslováquia e colocam a sociedade sob tensão. Vera e um conjunto de ginastas se refugiam em Šumperk, um retiro nas montanhas. Algo curioso conta o jornalista Fábio Piperno, em seu pequeno livro Jogada Política no Esporte, de 2016, “com o futuro indefinido, o que lhe restava era praticar os exercícios de solo nos prados que ocupavam o entorno da casa onde se refugiou. A madeira retirada da floresta e as árvores do local emulavam os aparelhos nos quais pretendia competir” (p. 55).

Vera era potencial arrebatadora de medalhas, acabou confirmada na seleção nacional e foi para o México. Lá fez uma campanha brilhante, conquistando ouro no salto, nas barras assimétricas, no solo e no individual geral, além de prata na trave e por equipe. No solo, conta resignada no documentário que, por um recálculo da arbitragem, termina empatada com a soviética Larissa Petrik, apesar de sua apresentação ter sido considerada perfeita e valorada em 9.900 pontos. No pódio ocupado territorialmente pela opositora, metáfora do que se passava com seu país e com a qual não concordava, disse que não expressou congratulações ou qualquer simpatia, virando a cabeça num gesto de indignação durante o hino russo, um movimento capturado pelas lentes televisivas e transmitido para todo o mundo.

Foto: Wikipédia

O ato teve consequências e provoca nova reviravolta. No retorno das Olimpíadas e num país controlado pelo poder soviético e pelos capangas do líder russo Leonid Brejnev, Caslavska é banida do esporte e impedida de atuar como técnica. Nem o casamento com Josef Odložil (vice-campeão olímpico dos 1500 m em Tóquio-64), realizado ainda na Cidade do México e sob tutela dos organizadores dos Jogos, funcionou como alívio. O ostracismo social vai durar uma década.

Em 1979, e por meio de uma negociação por petróleo entre os líderes da Tchecoslováquia e México, o nome de Vera aparece como moeda de barganha e ela é convidada a ser técnica nacional de ginástica no país latino. Narra no documentário que viveu alegrias, mas inúmeras frustrações naquelas terras. Lá sofreu violência de gênero por parte do marido, que também maltratou os filhos, o que a fez repensar o casamento e provocou seu retorno à terra natal.

A terceira reviravolta na trama de sua vida se daria pouco tempo depois. Juan Antonio Saramanch, então presidente do Comitê Olímpico Internacional, a convida para compor a União Europeia de Ginástica nos idos de 1985, mesmo sem a aprovação sumária do presidente da Tchecoslováquia, Gustav Husak, e a ex-atleta começa a resgatar parte de sua importância no esporte. As rápidas transformações dos anos 1980 e os ventos de mudança atingem o leste europeu e mesmo a União Soviética, e com a eleição do literato Vaclav Havel, Caslavska é empossada presidenta do Comitê Olímpico da Tchecoslováquia.

A vida esportiva parecia voltar aos trilhos, apesar dela estar agora em cargos burocráticos e de chefia. Já divorciada e vivendo com os filhos não imaginaria o que estaria por vir. Em agosto de 1993, numa discussão entre Josef e seu filho Martin, em frente a uma danceteria de Praga, o pai é empurrado, bate com a cabeça e fratura o crânio. Após alguns dias em coma, o ex-marido falece, e Martin é condenado a 4 anos de prisão. Essa última reviravolta na vida de Vera seria marcante: apesar do filho ser anistiado um ano depois de preso, ela desenvolve quadro depressivo e auto-isolamento.

Foto: Wikipédia

O filme-documentário talvez cumpra uma função importante, qual seja, trazer a público a peculiar história de uma ginasta que não se restringiu a ser apenas atleta. Com consciência política acerca da realidade de seu país, das minorias excluídas e maltratadas por governos poderosos, de sua responsabilidade como ginasta perante as novas gerações e como defensora dos direitos humanos, Vera sublinha a importância que uma/um esportista pode (e deve) ter perante a sociedade.

É fenomenal que este filme esteja disponível na plataforma do Youtube e, mais ainda, que mostre uma outra era na ginástica artística, na qual os corpos das atletas são de mulheres adultas e não os esquálidos, raquíticos e subdesenvolvidos corpos das ginastas atuais. Outros tempos e outros valores sociais e estéticos, sem dúvida.

A história de Vera não é muito conhecida, nem entre pesquisadoras/es do esporte ou da ginástica, que têm realizado investigações em anos recentes, nos quais temas da moda como treinamento precoce, meninas-prodígios e saltos com nomes extravagantes são mais atraentes. O documentário sobre sua história está disponível no som original (tcheco) e com legendas em inglês. Quem sabe alguma rede de streaming não o distribua em sua plataforma e em português. Isso, certamente, aumentará a circulação sobre a interessante trajetória esportiva dessa ginasta e de suas posturas políticas.

A quem se interessar:

Věra 68 (2012). Documentário de 90 min., dirigido por Olga Sommerova. 

PIPERNO, Fábio. A libélula loira da Primavera de Praga. In: ______. Jogada política no esporte. São Paulo: SESI-SP editora, 2016.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Reviravoltas na trama: ginástica, política e vida de Vera Caslavska. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 67, 2020.
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