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Richarlyson, um transgressor da bola

Maurício Rodrigues Pinto 20 de abril de 2018

Reconhecer a diversidade das masculinidades não é suficiente. É preciso também reconhecer as relações entre os diferentes tipos de masculinidade: relações de aliança, dominação e subordinação. Essas relações são construídas através de práticas que excluem e incluem, que intimidam, exploram e assim por diante. Há uma política de gêneros dentro das masculinidades. […] Ao reconhecer diferentes tipos de masculinidade, então, não devemos usá-las como categorias fixas. […] É essencial reconhecer o dinamismo das relações nas quais o gênero é constituído (CONNELL, 1995, p. 37-38, tradução minha).

 

Para inaugurar esta coluna, na qual pretendo tratar principalmente de discussões que tenham relação com as masculinidades no futebol e nos esportes, decidi abordar a trajetória de Richarlyson, atleta que ao longo da sua trajetória desafiou as masculinidades hegemônicas[1] que são valorizados pelo campo futebolístico brasileiro. É importante considerar que o futebol no Brasil representa um importante reduto masculino (cisgênero e heterossexual), sendo recorrente a exaltação do boleiro que fora de campo é reconhecido como “pegador”, assumidamente “mulherengo” ou, então, daquele jogador de perfil mais discreto, bem casado, com filhos e que valoriza a família.

É importante ressaltar que apesar do jogador ser heterossexual, a sua carreira acabou sendo marcada pelo permanente questionamento à sua sexualidade e pela homofobia, o que acabou contribuindo para muitas das manifestações hostis e até mesmo violentas que o jogador sofreu. Por homofobia, utilizo a definição do sociólogo Daniel Welzer-Lang:

[A homofobia é] a discriminação contra as pessoas que mostram, ou a quem se atribui, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero. A homofobia engessa as fronteiras do gênero. […] [São associados] aos homossexuais os homens que apresentam sinais de feminilidade (voz, roupas, jeito corporal). Os homens que não mostram sinais redundantes de virilidade são associados às mulheres e/ou a seus equivalentes simbólicos: os homossexuais. […] A dominação masculina produz homofobia para que, com ameaças, os homens se calquem sobre os esquemas ditos normais da virilidade. (WELZER-LANG, 2001, p.465)

Mesmo diante dos riscos de ter a sua performance e credibilidade como atleta questionada, Richarlyson pode ser considerado um transgressor do futebol brasileiro, ao expor, em diferentes situações, uma imagem pública de si que destoa das masculinidades hegemônicas, especialmente àquelas associadas a um jogador de futebol no Brasil (por exemplo, permitindo-se mostrar como um homem vaidoso e preocupado com a aparência ou, então, participando de um programa televisivo de dança) e também por se colocar como um interlocutor do debate sobre o preconceito e a homofobia no futebol.

A carreira de Richarlyson começa a ganhar visibilidade, quando o jogador, aos 22 anos, foi contratado pelo São Paulo, em junho de 2005, após uma disputa nos bastidores com o arquirrival local, Palmeiras. O jogador, que era vinculado ao Santo André (SP), negociou inicialmente a sua transferência com o Alviverde, mas optou, no fim, por aceitar a proposta feita pelo São Paulo e fechou contrato com a equipe tricolor, gerando descontentamento e irritação entre os dirigentes palmeirenses.

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Richarlyson no São Paulo. Foto: Léo Pinheiro (CC BY-SA 3.0).

O primeiro gol de Richarlyson pelo São Paulo aconteceu justamente em uma partida contra o Palmeiras, em novembro de 2005. Mais do que o gol ou o próprio placar final da partida válida pelo Campeonato Brasileiro – vitória de virada do Palmeiras por dois a um –, o jogo ficou marcado pela dança que Richarlyson fez ao comemorar seu gol. Junto a outros jogadores do São Paulo, ele reproduziu passos de funk, rebolando com as mãos nos joelhos (ALMEIDA; DERÓS; VON MÜHLEN, 2008, p. 2). A dança de Richarlyson não só foi alvo de ridicularizações e piadas por parte de setores da imprensa esportiva e de torcidas adversárias à época, como também foi muito mal recebida por torcedores e dirigentes do São Paulo. Via-se ali algo que poderia reforçar ainda mais um estigma que havia sido atribuído ao time pelos adversários: o “bambi”[2].

Na década de 2000, o “bambi”, “apelido” de conotação homofóbica e machista, se popularizou e passou a ser cada vez mais usado por torcedores de clubes rivais para provocar e ofender o São Paulo e a sua torcida. A identificação com este símbolo foi recebida com grande hostilidade pela torcida do São Paulo e o fato de um jogador do time ter a sua masculinidade questionada naquele contexto, contribuiu para que torcedores do São Paulo adotassem uma postura hostil em relação a Richarlyson. Mesmo sendo um jogador voluntarioso e que exercia diferentes funções em campo (especialmente atuando como volante e também na lateral-esquerda), considerado, por colegas de time e técnicos, um atleta exemplar e disciplinado e tendo atuações destacadas nos títulos conquistados pelo São Paulo durante o período em que atuou no clube (entre 2005 e 2011) – dentre eles um Mundial Interclubes (2005) e o tricampeonato brasileiro (2006, 2007 e 2008) –, por muito tempo Richarlyson foi o único jogador do time a não ter o seu nome aplaudido – principalmente por parte de uma das principais torcidas organizadas do time, a Independente – no momento da divulgação da escalação da equipe pelo alto-falante do Morumbi, estádio em que o São Paulo sedia os seus jogos. Além disso, os erros de Richarlyson eram muito mais visados e as vaias e críticas à atuação do jogador eram constantes[3].

Um episódio em especial contribuiu para que aumentassem os questionamentos à sexualidade de Richarlyson, da mesma forma em relação à homofobia dirigida ao jogador. Em junho de 2007, o jornal Agora São Paulo[4] divulgou um boato de que jogador de um grande time de futebol paulista iria “sair do armário”, assumindo publicamente a sua homossexualidade em rede nacional, em um programa televisivo de grande audiência. Tal fato não se concretizou, mas o assunto repercutiu na mídia esportiva. Em uma das mesas redondas televisivas que discutia os acontecimentos envolvendo os principais clubes paulistas, um dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, convidado pelo programa, ao ser questionado pelo apresentador Milton Neves se esse jogador gay atuaria no alviverde, respondeu prontamente: “O Richarlyson quase foi do Palmeiras…”. A “revelação da homossexualidade” de Richarlyson provocou risos dos jornalistas e comentaristas participantes do programa[5].

Provavelmente preocupado com a repercussão negativa que tal declaração trazia para a sua imagem, Richarlyson entrou com uma queixa-crime contra José Cyrillo por injúria. No futebol mundial, a maior parte dos jogadores que tiveram a iniciativa de assumir publicamente sua homossexualidade, o fizeram apenas ao final de suas carreiras, justamente por temerem as pressões e represálias de patrocinadores, da mídia, de colegas de clube, comissões técnicas e torcedores[6]. De acordo com Louro (2000), verifica-se a existência de um cenário pouco acolhedor para que um/a atleta de grande visibilidade venha a declarar publicamente sexualidade destoante da matriz binária e heteronormativa, havendo o temor de passar a ser visto/a como uma “fraude” perante o público:

Quando uma figura de destaque assume, publicamente, sua condição de gay ou de lésbica também é frequente que seja vista como protagonizando uma fraude; como se esse sujeito tivesse induzido os demais a um erro, a um engano. A admissão de uma nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a “essência” do sujeito. Pela centralidade que a sexualidade adquiriu nas modernas sociedades ocidentais, parece ser difícil entendê-la como tendo as propriedades de fluidez e inconstância. Frequentemente nos apresentamos (ou nos representamos) a partir de nossa identidade de gênero e de nossa identidade sexual. Essa parece ser, usualmente, a referência mais “segura” sobre os indivíduos (LOURO, 2000, p. 14).

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Richarlyson durante treinamento no Atlético-MG. Foto: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro (CC BY-NC 2.0).

O caso foi julgado em primeira instância pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, que decidiu pelo seu arquivamento. Na sentença, o juiz desqualifica a denúncia feita pelo jogador e seus advogados, reafirmando a ideia de que futebol é um jogo “pra machos” e que ofensas homofóbicas entre boleiros deveriam ser resolvidas dentro do campo, contexto onde tais violências e xingamentos, de acordo com a sua visão, podem ser manifestados, sem prejuízo da imagem pública. Além disso, o juiz manifestou explicitamente posicionamento contrário à participação de homossexuais no esporte, sugerindo que, se mesmo assim eles quisessem jogar futebol, deveriam criar uma federação própria em que pudessem competir entre si [7]:

A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir. […] Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante. Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual. Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

– Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final;

– Se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados… Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num “TÈTE-À TÈTE”. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro. […] Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. […] Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida… Quem se recorda da “COPA DO MUNDO DE 1970”, quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual. […] Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira jogar contra si. […] O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal… Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio, por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube. […] É assim que eu penso… e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! Rejeito a presente Queixa-Crime.(grifos do autor) [8]

Vê-se na sentença uma reiteração da norma, dessa vez por parte de uma autoridade legal, de que o futebol é reduto do homem cisgênero e heterossexual, demonstrando também como um regime de poder é instalado e reafirmado por diferentes saberes e discursos, reverberando também em lugares que extrapolam o próprio campo futebolístico e proscrevendo as pessoas que não se adequam à masculinidade hegemônica (FOUCAULT, 1988).

Após o arquivamento do caso, Richarlyson participou de uma reportagem feita pelo programa Fantástico. Na ocasião, ele junto aos seus advogados, entraram com uma representação contra o juiz Maximiano e também com um recurso contra o arquivamento da queixa. Na entrevista, Richarlyson posicionou-se sobre a sentença do juiz e a homofobia no futebol:

De certa forma, sim [em resposta à questão se ficou indignado com a sentença do juiz Maximiano]. É difícil eu entrar nessa questão, porque eu não sou formado em Direito, não tenho como avaliar essa questão. Mas não foi só um desrespeito a mim, foi um desrespeito ao Brasil.

[Em seguida, respondendo a pergunta se seria incompatível um homossexual jogar futebol no Brasil] Nada a ver. É importante ele (homossexual) fazer o seu trabalho dentro de campo e bem feito.[9]

Na mesma reportagem, que pretensamente fazia uma defesa de Richarlyson, mais uma vez, ele teve a sua sexualidade questionada, colocada em dúvida, ao ser questionado se era homossexual. Diante da resposta negativa do jogador, o repórter insiste e pergunta se ele se assumiria publicamente caso fosse homossexual. Richarlyson assim respondeu: “Com certeza, não teria problema nenhum. Até porque, a minha família, como eu disse, é uma base maravilhosa, extraordinária e eu acho que isso não seria nenhum obstáculo pra eles, e eu seguiria a minha vida normalmente”.

Anos depois, Richarlyson se viu envolvido em outro episódio que gerou fortes reações homofóbicas. Em 2011, foi cogitada novamente a contratação de Richarlyson pelo Palmeiras – que na época, atuava pelo Atlético Mineiro –, a pedido do então técnico do time, Luis Felipe Scolari. A imprensa chegou a dar o negócio como praticamente acertado entre os clubes, com a diretoria do Palmeiras chegando a um acerto salarial com o jogador. No entanto, a notícia da negociação foi muito mal recebida por alguns palmeirenses, que fizeram pressão para que a contratação não acontecesse. Integrantes de uma torcida organizada do Palmeiras, a Mancha Alviverde, promoveram um protesto em frente ao Centro de Treinamento do time e interpelaram representantes da diretoria palmeirense. Chamou a atenção uma faixa levada e estendida pelos torcedores participantes do protesto, que dizia explicitamente: “A homofobia veste verde[10]. De acordo com o antropólogo Miguel Vale de Almeida, a homofobia é um recurso performativo usado para a preservação do ideal da masculinidade hegemônica, tendo também a função de delimitar e “exorcizar o perigo homossexual”, o que acaba expondo a falta de concretude dessa masculinidade reverenciada.

Richarlyson seguiu no Atlético Mineiro e a diretoria palmeirense da época alegou que tudo não passou de boato divulgado pela imprensa, que em nenhum momento negociou ou mostrou interesse pelo jogador. Mas é inegável que a notícia da possível ida de Richarlyson para o Palmeiras foi muito mal recebida por parte dos torcedores e mesmo dentro da diretoria do clube, e que houve pressão para que a negociação não se concretizasse.

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Richarlyson em coletiva de imprensa no Atlético-MG. Foto: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro (CC BY-NC 2.0).

Outro aspecto interessante sobre a carreira de Richarlyson foi o fato de que sempre atraiu atenção da mídia, em especial no acompanhamento e na exposição de aspectos da sua intimidade, destoantes do estereótipo do “boleiro”. A abordagem, em geral, tinha algo de caricato e que visava deliberadamente exacerbar a imagem de um personagem que não se adequava ao padrão esperado do jogador “macho” e viril. De acordo com Foucault (1988), essa exposição da intimidade do jogador faz parte de uma “polícia dos enunciados”, que além de reafirmar e naturalizar uma norma, tem a função de controle e classificação de subjetividades que se desviam do padrão. Tal controle e normalização do sexo e das sexualidades desviantes acontece também pela incitação da fala e pela sua colocação em discurso (FOUCAULT, 1988, p. 22).

Um exemplo disso ocorreu no final de 2009, quando ainda atuava pelo São Paulo. Após o encerramento da temporada do futebol no Brasil, Richarlyson foi pauta de uma reportagem do noticiário esportivo “Globo Esporte”[11] por ter colocado um aplique, deixando os seus cabelos compridos, em estilo semelhante ao do jogador brasileiro Ronaldinho Gaúcho. A repercussão à reportagem e à imagem veiculada fez com que o jogador virasse alvo de ofensas e ameaças veiculadas principalmente em redes sociais. Apesar de se dizer bastante satisfeito com o novo visual e ter contado com a aprovação da mãe, já na reapresentação ao time tricolor, em janeiro de 2010, o jogador apareceu sem o aplique, voltando a adotar cabelos curtos. Segundo o empresário do jogador, Richarlyson não manteve o cabelo comprido porque já sabia qual era “a norma de conduta que o jogador deve adotar dentro do clube. Não é uma regra, mas é o que deve ser feito”[12].

Paulista 2007 - Sao Paulo x Palmeiras - Na foto, Wendel (Palmeiras) e Richarlyson (Sao Paulo) durante a partida disputada no estadio do Morumbi, zona sul de Sao Paulo - Foto: Photocamera
Paulista 2007 – São Paulo x Palmeiras – Na foto, Wendel (Palmeiras) e Richarlyson (Sao Paulo) durante a partida disputada no estádio do Morumbi. Foto: Photocamera.

Já no início de 2015, após ter anunciado que encerraria a carreira ao final o ano anterior, o mesmo programa apresentou uma reportagem que mostrava a participação de Richarlyson em um torneio amador de vôlei, no interior de São Paulo. O intuito, a princípio, seria o de saber se o jogador seguiria a carreira de futebolista e o porquê do jogador estar participando de um torneio de outra modalidade esportiva.

Na análise desse caso, é importante considerar, a imagem que o vôlei tem em comparação com o futebol. De acordo com Luiza Aguiar dos Anjos, no Brasil “existe uma definição do futebol enquanto referencial do esporte de homem e de massa, na qual se legitimam valores associados à masculinidade hegemônica” (ANJOS, 2015, p.22), o que faz com que para parte do público, o vôlei seja “considerado uma atividade de mulheres, e, ao praticá-lo, um homem tem, automaticamente, suspeitas levantadas sobre a sexualidade”. (ANJOS, 2015, p.21).

A abordagem realizada pela equipe de reportagem, de tom explicitamente sensacionalista, pouco tratou da atuação de Richarlyson como jogador de vôlei, dando maior destaque à tentativa de fazê-lo “abrir o jogo”. Diante da recusa do jogador em dar entrevista, a reportagem iniciou uma perseguição ao jogador, já fora do ginásio, expondo momentos da sua intimidade na companhia de amigos. Diante de mais uma abordagem da reportagem, após a saída de um restaurante, Richarlyson, visivelmente contrariado, saiu com seu carro sem dar qualquer tipo de resposta. Tudo isso sendo registrado pelas câmeras e, depois, transmitido para um programa de grande audiência[13].

Por mais qualificado que Richarlyson se mostrasse como jogador, tendo a sua capacidade e comprometimento constantemente elogiados por colegas e técnicos ao longo da sua carreira, o fato de ser visto como possuidor de uma masculinidade distinta dos seus pares, não adequada ao padrão hegemônico reverenciado, contribuiu para que ele fosse mais exposto a estigmas e retaliações e tivesse a sua competência como futebolista mais questionada.

Em maio de 2017, depois de um período de inatividade, Richarlyson foi contratado e apresentado pelo Guarani, tradicional clube da cidade de Campinas (SP). Na sua apresentação, houve um protesto por parte de um pequeno grupo de torcedores, que atiraram bombas na direção do local em que estava sendo realizada a coletiva de imprensa, em repúdio à contratação do jogador.

Já na fase final da carreira, Richarlyson fala mais abertamente e de forma mais esclarecida sobre a homofobia que viveu ao longo da sua trajetória como jogador de futebol profissional e adota tom mais crítico à heteronormatividade e à cultura machista que rechaçam a participação de gays no futebol profissional, além de estigmatizarem e oprimirem pessoas LGBT na sociedade como um todo:

Hoje, infelizmente, a grande maioria dos apaixonados pelo futebol são homens. […] Os homens tiram o dinheiro de casa para ir assistir ao jogo e pra eles é uma afronta. Por que o futebol é o que? É porrada, é voadora… Então, eles acham que um gay não pode jogar futebol, porque senão ele vai virar a bunda pra bola. Eu acho que esse é o pensamento. É engraçado, mas deve ser isso. Acha que no vestiário vai ficar olhando pro cara, desrespeitar o cara e não existe isso! Porque em qualquer outra profissão, seja o cara gay ou hétero, ele é respeitador. Academia, por exemplo, tem um vestiário. O cara gay é respeitado, vai tomar banho junto. Nem por isso um cara vai malhar e dizer: “Sai daqui, veado!”. E por que no futebol tem isso? Eu também queria entender.  Quando uma pessoa se apresenta pra você e ela é heterossexual, ela não vira e diz: “Sou fulano e sou heterossexual”. […] Por que quando o cara fala que é homossexual, já vira uma coisa banalizada? A pessoa vai se apresentar e tem de dizer: “Oi, eu sou fulano e eu sou homossexual”. Você tem que saber respeitar a pessoa e isso é o mais importante[14].

A violência e a hostilidade dirigidas direta e indiretamente à figura de Richarlyson, ao longo de sua carreira, ajudam a compreender a dificuldade de se romper a norma regulatória da masculinidade hegemônica que talvez se constitua no maior tabu do futebol brasileiro, assim como a sua reiteração não vem de um único lugar, mas é realizada por múltiplos atores no decorrer do tempo.

Por outro lado, a visibilidade obtida pelo jogador e a resistência, mesmo diante de tantas dificuldades e questionamentos, possibilita reconhecer que a sua trajetória é marcada também por recusas em se conformar a um padrão normativo dos boleiros. Richarlyson pode ser considerado um transgressor da bola, porque enfrentou tais preconceitos, para poder exercer plenamente a atividade que sempre quis desempenhar, além de mostrar que o futebol não precisa (e nem deve) ser reduto para restritas expressões de masculinidade.

 

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA, Miguel. Vale. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século Edições, 2000.

ALMEIDA, T. R.; DERÓS, C. C.; VON MÜHLEN, J. “A ofensa, o juiz e a sentença: gênero e sexualidade em jogo no futebol brasileiro”. In: Anais Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. Florianópolis: UFSC, 2008. Acesso em 10/07/2017.

ANJOS, Luiza Aguiar dos. “ ‘Vôlei masculino é pra homem’: Representações do homossexual e do torcedor a partir de um episódio de homofobia”. In: Revista Movimento, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 11-24, janeiro-março. de 2015. Acesso em 11/04/2018.

CONNELL, R. W. Masculinities: knowledge, power and social change. Berkeley/Los Angeles: University of Califórnia Press, 1995.

______., MESSERSCHIMIDT, J. W. “Masculinidade hegemônica: repensando o conceito”. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n.1, p. 241-282, janeiro-abril/2013. Acesso em 20/06/2017.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da sexualidade”. In: LOURO, Guacira. Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 7-34.

WELZER-LANG, Daniel. “A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia”. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.9, n.2, pp.460-482, 2001.

 

[1] Por masculinidades hegemônicas, utilizo a definição elaborada por Connell e Messerschimdt: “Masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero. Ademais, eles se articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem isso, contribuem para a hegemonia na ordem de gênero societal” (2013, p. 253).

[2] “Bambi” é um termo que faz referência ao cervo que dá nome a um filme produzido pelos estúdios Disney, na década de 1940. Atribui-se ao ex-jogador corinthiano Vampeta, a popularização do termo, no início da década de 2000. Durante uma coletiva de imprensa, o jogador revelou o “apelido” que usava para provocar os seus amigos que, à época, jogavam pelo São Paulo: “O Corinthians tem o gambá, o Santos tem a baleia, o Palmeiras tem o porco e o São Paulo precisava adotar um animal de estimação. Essa história do bambi já existia e eu só acordei o gigante adormecido”. Fala extraída da matéria “Ídolo no Corinthians, Vampeta explica o apelido de ‘bambi’ que deu para o São Paulo”. Disponível em: http://torcedores.com/noticias/2016/11/idolo-no-corinthians-vampeta-explica-o-apelido-de-bambi-que-deu-para-o-sao-paulo. Acesso em 02/05/2017.

[3] No final de 2015, Richarlyson comentou sobre a perseguição que sofreu por parte de setores da torcida são paulina no período em que defendeu o clube: “Eu sempre fui tranquilo quanto a isso. Claro que quando você tem apoio da torcida você fica bem, mas quando não tem você trabalha do mesmo jeito. O importante é estar bem com você mesmo. É engraçado, não gritavam meu nome e eu cheguei à Seleção Brasileira. Tinha algo errado nisso. Eu nunca liguei e nunca vou ligar”. Acesso em 01/04/2016. Sobre o fato de parte da torcida do São Paulo não cantar o nome do jogador antes do início das partidas ver aqui. Acesso em 01/04/2016.

[4] O Agora São Paulo é um jornal popular que circula no estado de São Paulo, lançado em 1999. O Agora pertence ao Grupo Folha e é considerado o líder de vendas no estado de São Paulo, no seu segmento.

[5] O programa em questão foi o “Debate Bola” e era exibido pela Rede Record.  Há um vídeo que mostra a passagem do programa em que o dirigente palmeirense afirma que Richarlyson quase havia sido contratado pelo Palmeiras. Acesso em 17/10/2017.

[6] Dentre os jogadores profissionais que declararam publicamente a sua homossexualidade, é possível destacar o ex-jogador da Seleção da Alemanha, Thomas Hitzlsperger (que o fez depois de terminada a carreira), e do estadunidense Robbie Rogers, que chegou a abandonar a carreira, mas meses depois reviu a sua posição e aceitou o convite para atuar no LA Galaxy, da Major League Soccer (EUA). Antes deles, o jogador inglês Justin Fashanu, com passagens por grandes times ingleses, foi o primeiro atleta a declarar publicamente a sua homossexualidade, em 1990, quando ainda atuava profissionalmente. Anos depois o atleta cometeu suicídio, após acusação (posteriormente arquivada) de ter abusado de um jovem de 17 anos nos Estados Unidos. Na carta de despedida, dizia: “Me dei conta de que eu havia sido condenado. Não quero mais ser uma vergonha para meus amigos e minha família. […] Espero que Jesus me dê boas vindas e que finalmente eu encontre a paz”.

[7] Posteriormente, os advogados de Richarlyson entraram com recurso contra o arquivamento do caso e o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho foi punido com a pena de censura pelo uso de linguagem inapropriada, em processo administrativo disciplinar aberto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2008. Acesso em 10/03/2016.

[8] O texto integral da sentença proferida pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho está disponível aqui. Acesso em 10/03/2016.

[9] O vídeo da reportagem feita pelo programa Fantástico está disponível no site YouTube. Acesso em 10/04/2018.

[10] Sobre o assunto que foi amplamente noticiado na mídia é possível encontrar maiores informações em UOL. Acesso em 03/04/2016;

Torcida do Palmeiras apimenta polêmica com faixa: ‘A Homofobia veste verde’. Acesso em 02/04/2016.

[11] O vídeo com a reportagem feita na ocasião está disponível no site de vídeos YouTube. Acesso em 11/04/2018.

[12] A declaração completa dada pelo empresário do jogador, Julio Fressato, está disponível em R7. Acesso em 09/07/2017.

[13] A reportagem foi veiculada na edição de São Paulo do programa Globo Esporte, do dia 23/01/2015, e posteriormente publicada pelo site Globoesporte.com dom o título “No interior paulista, Richarlyson estreia no vôlei e foge das câmeras”.  Acesso em 02/03/2017.

[14] Trecho de entrevista concedida por Richarlyson ao “Programa do Porchat”, transmitido pela Rede Record. Acesso em 15/07/2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. Richarlyson, um transgressor da bola. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 20, 2018.
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