133.40

A cena do boxe: o ritual de humilhação (parte VII)

José Paulo Florenzano 16 de julho de 2020

No verão de 1966, o principal responsável pela revolução política na cultura esportiva dos Estados Unidos encontrava-se em Londres para a defesa do título dos pesos pesados. A sua estadia na capital inglesa coincidia com a final da Copa do Mundo. Uma hora antes do início da partida, Muhammad Ali ingressou no estádio de Wembley sob os “aplausos dos torcedores”.[1] Instalado na tribuna de imprensa, acompanhou o confronto entre Inglaterra e Alemanha, dois selecionados compostos exclusivamente por atletas brancos. Certamente o detalhe não lhe passou despercebido, em especial a ausência do principal nome da competição, Pelé, designado nas páginas do New York Times pela expressão “The King of Soccer”.[2]

Em meados de 1966, Pelé e Ali viviam momentos distintos em suas respectivas carreiras. Enquanto o primeiro via abalado o reinado que a duras penas havia construído, em virtude da campanha decepcionante do selecionado brasileiro; o segundo desfrutava a condição de campeão mundial dos pesos pesados. De fato, pouco depois do encerramento da Copa da Inglaterra, no dia 6 de agosto, o boxeador não teve maiores dificuldades para manter a coroa, derrotando por nocaute o adversário Brian London no terceiro round. Na verdade, a principal ameaça ao título de “Rei do Mundo” provinha de forças externas às quatro cordas do ringue.

Muhammad Ali acerta soco em Brian London em 6 de agosto de 1966. Foto: Wikipedia.

No início de 1966, em meio à escalada do conflito na Indochina, os jornais começaram a noticiar a decisão do Exército de convocar Muhammad Ali para lutar no Vietnã. Com efeito, de um contingente de cerca de vinte mil soldados nos primeiros anos da década de sessenta, os Estados Unidos saltaram em um curto período de tempo, entre 1964 e 1968, para um efetivo que girava ao redor de meio milhão. Conforme a crítica mordaz de Marshall Sahlins, investidos no papel de “curandeiros do mundo”, os Estados Unidos buscavam, então, exorcizar os espíritos maléficos encarnados pelo comunismo. Mas a defesa da “liberdade”, salientava o antropólogo, ocorria em nome de um regime ditatorial instalado em Saigon, sem qualquer compromisso com os princípios democráticos.[3]  Pior ainda: ao recorrem à violência, à tortura e ao massacre, isto é, às “técnicas de sangria rituais” aplicadas ao “corpo doente” do Vietnã, os Estados Unidos cobriam-se de sangue e os “curandeiros” se metamorfoseavam em “forças tenebrosas”.[4]

Ora, o campeão mundial dos pesos pesados não tinha a menor intenção de se envolver no que Marshall Sahlins denominava de destruição da consciência moral na guerra em curso na Indochina. De fato, quando os repórteres acorreram à residência de Muhammad Ali em Chicago para registrar sua reação à convocação do Exército, foram surpreendidos com um comentário destinado a se transformar em uma das maiores polêmicas da sociedade estadunidense no período em tela: “Cara, eu não tenho nada contra os vietcongs”, isto é, os guerrilheiros comunistas da Frente Nacional de Libertação.[5] As “forças do mal” contra as quais Muhammad Ali se debatia atuavam no plano doméstico e possuíam como alvo principal o “povo” com o qual ele se identificava.

O episódio da convocação militar, no entanto, continha uma reviravolta surpreendente para os observadores mais atentos, pois, apenas dois anos antes, o Exército havia esnobado Muhammad Ali, expondo-o publicamente a um ritual de humilhação. Por duas vezes, em 1964, ele tinha sido “reprovado” nos exames da instituição militar aplicados com o propósito de aferir a sua capacidade mental. De acordo com os resultados das provas, ele fora classificado na categoria 1-Y, isto é, nível de inteligência considerado insuficiente para o recrutamento. Embora houvesse se “esforçado ao máximo”, ressaltavam os responsáveis pela elaboração do “exame mental”, Muhammad Ali infelizmente “falhara” em se qualificar como potencial soldado.[6] No Congresso Nacional, William H. Ayres, senador de Ohio pelo Partido Republicano, não se conformava com a inaptidão demonstrada pelo boxeador negro:

William Hanes Ayres, político estadunidense pelo Partido Republicano, em 1955. Foto: Wikipedia.

Se eu tivesse sido reprovado em matemática, ainda assim poderia descascar batatas nos dois primeiros meses de meu serviço militar – o que fiz. Qualquer um que possa dar um soco como Cassius Clay deve ser capaz de jogar uma faca em torno de uma batata. [7]

A imprensa, por sua vez, revisitava a escola na qual Muhammad Ali se formara em Louisville para esmiuçar melhor o caso, buscar a comprovação do déficit cognitivo do campeão mundial dos pesos pesados. Sem muito esforço, constataram que ele tinha sido um “aprendiz lento”. Edward S. Wilson, diretor da instituição de ensino médio, chegava mesmo a caracterizá-lo como um “estudante limítrofe”.[8] O histórico recuperado pelos juízes da normalidade encerrava uma mensagem inequívoca a respeito do contra discurso de Muhammad Ali: não convinha levá-lo a sério, escutar a voz da desrazão acerca das relações raciais ou sobre a maneira como os negros eram discriminados no país.

Com efeito, o estardalhaço criado em torno do episódio da dupla reprovação de Muhammad Ali no exame mental do Exército não era inocente, muito pelo contrário, objetivava atingir com uma espécie de knockout retórico a imagem pública do Atleta de Alá. De fato, na ordem do discurso racial, tornava-se imperativo desqualificar a fala de um pugilista negro cuja conversão religiosa colocava em questão o poder de narrar a nação e de naturalizar o racismo exercido pelos grupos hegemônicos na sociedade estadunidense.[9]    

A investida do establishment, contudo, não foi suficiente para levar Muhammad Ali à lona. Ele manteve intacta a autoridade moral conquistada dentro e fora do ringue, como campeão mundial dos pesos pesados e como crítico implacável da discriminação racial. Sendo assim, os estrategistas do Exército mudaram de tática. Dois anos depois de submetê-lo a um ritual de humilhação, decidiram rever o critério de avaliação que o dispensara à época como inelegível, reclassificando-o agora na categoria 1-A que o tornava apto ao serviço militar. Tinha início, assim, a luta mais desafiadora de toda a carreira de Muhammad Ali, travada contra o governo dos Estados Unidos, combate que até então nenhum atleta, de qualquer modalidade, havia ousado enfrentar.


Notas

[1] Cf. “Cassius Clay chegou cedo a Wembley e deu autógrafos aos jornalistas na tribuna”, Jornal do Brasil, 1 de agosto de 1966.

[2] Cf. “Santos of Brazil tops Benfica, 4-0”, The New York Times, 22 de agosto de 1966.

[3] Cf. Sahlins, Marshall. A destruição da consciência moral no Vietnã. In: Cultura na prática. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, p. 265.

[4] Sahlins, Marshall, op. cit., p. 266.

[5] Sobre a polêmica declaração de Muhammad Ali, ver Roberts, Randy. The wide world of Muhammad Ali: the politics and ecnonomics of televised boxing. In: Muhammad Ali: the People`s Champ. Edited by Elliot J. Gorn. Chicago: University of Illinois Press, 1997, p.44. Cf. “The Wind that Blew in Chicago”, by William Barry Furlong, Sports Illustrated, March 7, 1966 – Volume 24, N° 10.

[6] Cf. “Second Draft Test was Failed by Clay”, The New York Times, 8 de maio de 1964.

[7] Cf. “Cassius Clay Rejected by Army”, The New York Times, 21 de março de 1964.

[8] Cf. “Young Cassius had I.Q. of 78, 10 Points Below School`s Par”, The New York Times, 21 de março de 1964. No entanto, na seção Scorecard, da revista Sports Illustrated, Willie Mays, atleta afro-americano do San Francisco Giants, equipe de beisebol, via com desconfiança a reprovação de Muhammad Ali: “Você ganha mais dinheiro fora do Exército”. Sports Illustrated, April 27, 1964 – Volume 20. N° 17.

[9] A respeito do mecanismo que, na produção do discurso, designa o que se pode dizer, quem tem o direito de dizer e em quais circunstâncias, ver Foucault, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo, Edições Loyola, 1996, p. 19. Sobre o poder de narrar a nação, ver Said, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 13.

Seja um dos 15 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A cena do boxe: o ritual de humilhação (parte VII). Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 40, 2020.
Leia também:
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza
  • 178.14

    Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte

    José Paulo Florenzano
  • 178.8

    Grandes carreiras, pequenas ideias: declarações mais que infelizes contra Vini Jr. e Aranha

    Alexandre Fernandez Vaz