103.21

Rivalidades esportivas

Wagner Xavier de Camargo 21 de janeiro de 2018

Muitos de nós, particularmente no Brasil, envolvemo-nos em torcer por futebol e, mesmo sem participar de grupos e torcidas organizadas, ardemos de raiva quando nosso time perde, vestimos a camisa do clube e permanecemos com a ela mediante promessas, odiamos nosso vizinho como se não quiséssemos que ele continuasse vivo, particularmente quando ele torce pelo rival. No fundo, as rivalidades que criamos são tão tolas que, passado o jogo ou o momento de defesa daquele time, brasão ou jogadores, caímos em si e quase nos sentimos ridículos por todo o estardalhaço, pela hiperbolismo muitas vezes desnecessário. Bem, pelo menos uma parte das pessoas chega a essa conclusão!

Pois nesses últimos tempos, tenho visto alguns filmes que me fizeram relembrar algo dessa rivalidade, porém entre atletas, no universo dos esportes. Penso que a indústria cinematográfica, principalmente a de Hollywood que foca no potencial comercial de “histórias reais”, tem sabido aproveitá-las bem. O último filme que assisti foi “Borg VS McEnroe” (2017) sobre a rivalidade estabelecida entre dois jogadores de tênis, na disputa pelo título de Wimbledon de 1980.

Björn Borg era um tenista sueco extremamente bem sucedido e naquele ano tentava sua quinta vitória no torneio. Supostamente nada o tiraria do foco, visto que era mentalmente treinado para isso. Mas, em ascensão meteórica na carreira estava o estadunidense John McEnroe, de apenas 20 anos, que havia decidido ganhar seu primeiro título num torneio de grande importância como aquele. Ao final de uma verdadeira batalha de bolas e egos, Borg vence e McEnroe é vice (será consagrado campeão de Wimbledon no ano seguinte) e se tornam amigos. O filme conseguiu traduzir a eletrizante atmosfera das jogadas entre ambos na final, a partir do quarto set, o do desempate. Talvez um dos tie-breaks mais longos da história do tênis: terminou com 18 a 16 para Borg e um quinto set o sagrou campeão.

 

 

Outra produção relativamente recente foi “Rush” (2013), que no Brasil teve agregado um subtítulo “no limite da emoção”. Seu enredo centrou-se na rivalidade entre James Hunt e Nikki Lauda, dois pilotos de Fórmula 1 que disputaram ponto a ponto o título o mundial da modalidade no ano de 1976. Curiosamente até o meio da temporada Lauda liderava com 52 pontos e Hunt possuía apenas 28. Em que pese o acidente que desfigurou Lauda ter ocorrido nesse ano (e acabou tirando-o, consequentemente, de dois Grand Prix), Hunt teve uma excepcional performance em seis corridas seguidas, o que o levou ao título mundial. As reviravoltas dramáticas no campeonato, o acidente, as incertezas de participação de Lauda, as imprudências de Hunt fora das pistas e as chuvas protagonizaram momentos de tensões, que o filme bem reproduziu.

Possivelmente não foram as primeiras vezes que o cinema se apropriou de uma história de rivalidade no mundo esportivo para ficcionalizá-la e nem será a última. Dois bons documentários sobre rivalidades esportivas de mulheres atletas são produções contemporâneas: “Stella Walsh – a documentary” (2014), no qual em meio a resgatar a vida da polonesa-americana Stella Walsh mostra a rivalidade com a corredora Hellen Stephens, particularmente nos Jogos Olímpicos de Verão, em Berlim-1936; e outro, disponível no serviço de streaming, “Althea” (2015), que conta a dura trajetória de Althea Gibson, uma atleta afrodescendente pobre no tênis elitista norte-americano dos anos 1950, e a rivalidade com Louise Brough/Darlene Hard.[1]

 

 

Uma história em particular que me mobilizou na infância foi a rivalidade entre Ayrton Senna e o francês Alan Proust nos idos dos anos 1990. Nas manhãs de domingo em que havia corridas de Fórmula 1, todos nós, crianças e adultos, ficávamos tensos e esperávamos a transmissão da disputa muitas vezes sem sequer comer algo. Cada volta mais rápida de Senna, uma parada nos boxes, uma tempestade que atingia o autódromo ou outra situação qualquer era fator de liberação descompensada de adrenalina. Um documentário de longa duração foi produzido em 2010 por Asif Kapadia e se tornou um dos sucessos de bilheteria do gênero em vários países onde foi exibido.

 

 

No mundo do atletismo em que vivi durante alguns anos como atleta-guia (aquele que acompanha corredores cegos), já conhecíamos e falávamos muito sobre as clássicas rivalidades do passado na modalidade, em Olimpíadas ou Mundiais. Para nós, a briga pelo melhor tempo entre Ben Johnson e Carl Lewis nas provas de velocidade, em meio às polêmicas de doping, coroou uma era.

Eu presenciei, particularmente, uma rivalidade interessante no atletismo adaptado. As atletas Ádria Rocha Santos e Purificación Santamarta, ambas com deficiência visual, em muitos momentos dos Jogos Olímpicos de Atlanta-1996, Sydney-2000 e Atenas-2004 protagonizaram confrontos emocionantes nas provas rápidas de pista (100, 200 e 400 metros) do atletismo. Ora uma, ora outra, ambas se alternavam nos primeiros lugares do pódio, e tiveram carreiras coroadas de medalhas de ouro e prata. Sobre a espanhola, contudo, pesou uma acusação de conduta antidesportiva em 2000, visto que, como há um cordão de ligação entre as mãos de corredores e guias, suspeitou-se fortemente de que Santamarta teria sido alavancada na corrida pelo seu então guia, um atleta espanhol de físico avantajado, que era naquele momento, coincidentemente, seu marido.

Essa última rivalidade esportiva não está registrada, assim como muitos outros eventos e disputas entre indivíduos e equipes no esporte praticado por pessoas com deficiência. Talvez histórias relativas a essas pessoas no esporte não sejam vendáveis pela indústria cinematográfica. Ou melhor, corrigindo: talvez sejam sim, porém a partir do espectro da pena e da compaixão, como já assistimos em “Escrito nas Estrelas” (2002) e “Como eu era antes de você” (2016). Rivalidades esportivas nessa seara estão, portanto, ainda para serem escritas e filmadas!

[1] Sobre essas histórias de vida também escrevi algumas reflexões em textos passados: “O Dia em que conheci Stella Walsh” (http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/o-dia-em-que-conheci-stella-walsh/) e “Althea Gibson e a questão racial no esporte” (http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/althea-gibson-e-questao-racial-no-esporte/).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Rivalidades esportivas. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 21, 2018.
Leia também:
  • 162.18

    Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade

    Wagner Xavier de Camargo
  • 162.3

    Deserotizando o futebol, aniquilando desejos: o Catar em tempos de Copa

    Wagner Xavier de Camargo
  • 161.20

    Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico

    Wagner Xavier de Camargo