No final dos anos 1970 eu comecei a ler Placar, revista com a qual meu pai me presenteava todas as semanas, e que me ensinava futebol, mas também algo sobre democracia, relações de classe, vida adulta, realidade brasileira. A direção era de Juca Kfouri, e gente como José Maria de Aquino e Marcelo Resende (sim, ele mesmo, que depois se tornaria apresentador de programas policiais na TV), além do próprio diretor de redação, nos oferecia textos bem escritos, editados com primor, enriquecendo a imprensa esportiva com análises técnicas precisas e que não desconsideravam a radicação social e histórica do esporte.

No primeiro número do qual me lembro, o pôster em página dupla que vinha encartado no meio do impresso era uma caricatura de Roberto Dinamite, arte que destacava o forte chute que lhe caracterizava. Campeão e artilheiro do Campeonato Nacional de 1974, pelo Vasco, ele seria o grande destaque do time campeão carioca de 1977, torneio que já acompanhei mais de perto. Desde dois anos antes ele frequentava a seleção brasileira, convocado por Osvaldo Brandão, depois de ter servido à versão amadora do time nacional, em 1971, no Pré-olímpico na Colômbia, e nos Jogos de Munique, em 1972, fazendo parte de uma equipe que contava também com Falcão e Dirceu. Zico, o grande ídolo do Flamengo, também esteve na competição pré-olímpica, destacando-se pelo gol decisivo contra a Argentina, na semifinal, vitória que garantiu a classificação para as Olimpíadas do ano seguinte. Para a surpresa geral, desta última competição o Galinho ficou fora da lista de convocados. Especula-se hoje se o corte não teria sido uma retaliação por ser ele primo de Cecília Coimbra, presa e torturada pela ditadura, em 1970.

Roberto Dinamite
Roberto Dinamite na seleção olímpica de 1972. Foto: Arquivo Nacional

Roberto e Zico tiveram carreiras que se desenvolveram em paralelo, e por pouco não jogaram juntos no Flamengo, quando em 1979 o centroavante voltava de uma aventura de três meses no Barcelona. Regressando ao Cruzmaltino, que não admitia o ídolo no rival, recomeçou a jornada da melhor maneira, marcando todos os tentos de uma vitória sobre o Corinthians, no Maracanã, por 5 x 2. Em 1976 ambos estiveram na seleção que disputou o Torneio do Bicentenário dos Estados Unidos da América, fazendo gols na partida final, que se somaram aos dois do igualmente jovem Gil, ponta-direita do Fluminense, para fulminar a Itália por 4 x 1. O da Azzurra, que saiu na frente, foi de Fabio Capello, que depois seria supercampeão pelo Milan, como treinador, entre 1991 e 1997. Se Roberto não chegou a vestir a camisa rubro-negra, Zico trajou a do Vasco na despedida do colega, em 1993. Levava o número 9 às costas, já que o 10 não podia ser vestida por outro que não o seu legítimo dono.

Roberto permaneceu muitos anos na seleção, ainda que de forma sazonal, e compôs a equipe que conquistou o terceiro lugar na Copa de 1978. Depois do começo claudicante de Zico, Reinaldo e Edinho no time titular, o Almirante Heleno Nunes, presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, a antecessora da CBF), teria exigido de Cláudio Coutinho a substituição do trio. Entraram Jorge Mendonça, Roberto e Rodrigues Neto. Deu certo, o time melhorou, e foi do centroavante o único tento da magra vitória sobre a Áustria, a primeira, depois de dois empates, na fase classificatória. Quanto à lateral-esquerda, o treinador inexplicavelmente improvisara o zagueiro Edinho, considerado por ele um “jogador moderno”, deixando no Brasil os especialistas Júnior, do Flamengo, Wladimir, do Corinthians, e Marinho Chagas, do Fluminense, mesmo clube em que atuava, em sua posição original, o defensor que começou o Mundial jogando pela esquerda. Zico depois voltou ao time e foi dele o passe para Roberto quase marcar contra a Argentinao gol que teria levado o Brasil à final.

O torneio no pais vizinho não foi a única Copa de Roberto, que foi chamado às pressas em 1982 para a reserva de Serginho, depois que Careca se lesionou, pouco antes da estreia dos brasileiros. Repetia o que acontecera quatro anos antes, quando Nunes, atacante do Flamengo, fora cortado também por lesão, às vésperas do embarque para Mar del Plata. Na Espanha, sem sequer ficar no banco (eram só cinco à época), viu a seleção crescer na competição até a derrota frente aos italianos. Viu também o titular de sua posição não jogar o que dele se esperava.

No final da carreira Roberto atuou na Portuguesa, de São Paulo, e no Campo Grande, em duas incursões felizes do, no entanto, eterno vascaíno. Por falar no time da Zona Norte do Rio de Janeiro, vale lembrar uma reportagem da Placar, de setembro de 1984, quando da morte da primeira esposa do jogador, Jurema, por complicações ao se preparar para uma sessão de hemodiálise. Ela foi fundamental na carreira dele, não só pelo apoio irrestrito, mas também porque atuava como sua procuradora nas difíceis renovações de contrato. Vítima intermitente de preconceito, era seis anos mais velha que Roberto, viúva e mãe, e dela se dizia ter sido responsável pelas lesões de Nunes e de Careca, contra os quais teria usado poderes sobrenaturais para que o marido fosse convocado para os Mundiais de 1978 e 1982. Roberto diz, no ótimo texto intitulado Jurema Dinamite, que “Às vezes, naqueles campos pequenos da Zona Norte, onde você escuta até passarinho, eu ouvia uma voz gritar na multidão: ‘Roberto, vê se larga essa mulher’. Aquilo doía”.  Como escreveram Roberto Benevides, Maria Helena Araújo e Tim Lopes, em um ambiente machista como o futebol brasileiro, é notável a força que ela mostrava.

Tudo isso me veio à memória quando li, há poucos dias, que Roberto enfrenta um câncer. Ele que fez gols em profusão (alguns maravilhosos, como a conclusão depois do lindo chapéu em Osmar, do Botafogo, em 1976), foi a duas Copas, reinventou-se como segundo atacante quando Romário despontou no Vasco, teve a coragem de enfrentar o que havia de pior na cartolagem do futebol, assume sem subterfúgios esse desafio (Susan Sontag escreveu que a doença não pode ser enfrentada por meio de metáforas). Quem foi tão amado como ele, pela torcida do Vasco, mas em especial por Jurema Crispim de Oliveira, a quem tanto igualmente amou, é capaz de muito. Grande Roberto.

 
 
 
 
 
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São Paulo, janeiro de 2022.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Roberto Dinamite, ontem e hoje. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 14, 2022.
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