Há vinte e dois anos, Pelé, o maior de todos, colocou-se para colaborar com as categorias de base do Santos Futebol Clube, ministrando algumas sessões de treinamento e passando orientações específicas para os meninos em formação. Considerando a força simbólica do grande astro e sua longa relação com a Vila Belmiro, o ato se viu revestido de grande repercussão, em especial se considerarmos o quanto a criação de novos jogadores é marca do time da Baixada. Entre os Meninos da Vila do final dos anos 1970, em que se destacavam o veloz Juary e o estilista Pita, e a geração de Neymar e Paulo Henrique Ganso, destaca-se o grupo campeão brasileiro em 2002 e 2004, com Diego e Robinho à frente. É com este último, então um projeto de craque aos quinze anos, que Pelé, fazendo-se treinador, interage em uma reportagem que ganhou as telas numa manhã de domingo na virada do milênio.

Dois anos depois daquele encontro, Robinho ainda não tinha sequer alcançado a maioridade legal quando foi decisivo na segunda partida final do Campeonato Brasileiro de 2002, contra o bom e vencedor Corinthians, treinado por Carlos Alberto Parreira. Logo no início do jogo, o camisa 10, Diego, lesionado, teve que ser substituído, cabendo o protagonismo àquele que levava o número 7 às costas. Não houve decepção: depois de uma série inacreditável de pedaladas frente ao experiente lateral-direito Rogério, sofreu o pênalti que ele mesmo cobraria, deslocando o goleiro Doni. Que confiança, que frieza.

No ano seguinte fui com amigos ao Estádio Orlando Scarpelli, em Florianópolis, para assistir ao duelo do Figueirense, que estreava na Séria A do Campeonato Brasileiro, contra o Santos, de Diego e Robinho. O jogo foi truncado na fria tarde de agosto, e a vitória do Figueira veio dos pés de Triguinho, lateral-esquerdo que anos depois atuaria pelo próprio Peixe. Diego foi bem marcado pelos volantes adversários, e Robinho, castigado pelo técnico Emerson Leão, permaneceu no banco de suplentes. Uma pena.

Em muitas entrevistas ao longo da vida, Leão destacou que Robinho se apresentava ao telefone como aquele que viria a ser o melhor do mundo. Ao contrário de Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho, Romário e Kaká, não chegou lá, ainda que tenha tido uma carreira de sucesso. Atuando em grandes ou em pelo menos boas equipes, o atacante nunca foi um finalizador exemplar, mas foi útil nas camisas que defendeu, o que inclui as três passagens pelo Santos. Na seleção teve momentos de brilho, compondo o grupo em duas Copas do Mundo, a de 2006, em que ficou na reserva, e a seguinte, quando marcou o gol contra o selecionado holandês, pelas quartas-de-final do torneio disputado na África do Sul. Os brasileiros acabaram derrotados pelo time dos Países Baixos, que enfrentaria a Espanha na final, mas também pelos próprios nervos, descontrolados pela soberba de vários jogadores e membros da comissão técnica.

A conclusão da carreira de Robinho foi melancólica. Mais que isso, motivada por um crime. Como se sabe, ele foi condenado em última instância pela participação em um estupro coletivo ocorrido em Milão, em 2013. As provas são contundentes: ligações telefônicas interceptadas em que se congratula com um amigo ao comentar o que teriam, ele e outros, feito no episódio. Confiante na absolvição durante o processo, o jogador em algum momento atribuiu “às feministas” a pressão que o levava à acusação. De fato, por aqui foi o posicionamento de parte da torcida e da sociedade em geral que fez com que o Santos recuasse na contratação do jogador para um período que seria, provavelmente, o último de sua carreira. Combinando com a sensação de que o que cometeu não foi crime, seus advogados levaram à Corte Suprema da Itália a suposta má reputação da moça que foi estuprada. O argumento foi imediatamente rechaçado pelos juízes do caso e a sentença de nove anos de prisão foi confirmada. Estando no Brasil e sendo brasileiro, são diminutas as chances de que cumpra a sentença, ou ao menos parte dela.

Segundo se lê na imprensa, Robinho estaria inconformado com a condenação. Sua indignação com o resultado, assim como com as ações de grupos feministas (e não só deles), é inaceitável. Ao mesmo tempo, é possível entender sua posição (mas não a justificar): sim, há uma face da cultura contemporânea que tem no estupro seu desiderato, que considera o corpo feminino domínio público ou, ainda pior, objeto a ser saqueado, destruído. É como se a mulher fosse um ser humano sem desejo, o que é, por princípio, impossível. Em um meio tão machista como o futebol – e, portanto, tão cômodo para nós, homens – essa cultura encontra solo fértil para prosperar, para tornar-se uma “segunda natureza”. Mas não precisa ser assim.

Volto a Pelé, o maior de todos. Ao longo de suas mais de oito décadas de vida, também foi um arauto do machismo, o que soube reconhecer no longo depoimento que deu no documentário que leva o seu nome, aquele dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas. Não sei, mas talvez o Rei, em paralelo à autorreflexão, tenha escutado sua filha, Kely Cristina, documentarista que tem trabalhado em projetos sobre equidade no esporte. O grande astro sempre foi de escutar a outras pessoas, e não apenas a si mesmo. Foi assim com Pepe e Zito, no Santos, terá sido assim com a filha, quem sabe. Aprendamos com ele, escutemos as mulheres. Viva o Rei.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Robinho, a cultura do estupro, Pelé. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 28, 2022.
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