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Rogério Ceni, um Homem Célebre pelo avesso

José Carlos Marques 13 de julho de 2017

Lançada em 1896, a obra Várias Histórias, de Machado de Assis, reúne alguns dos mais emblemáticos contos escritos em língua portuguesa ao longo do século XIX – como atestam “A Cartomante”, “Uns braços”, “A causa secreta” e “Um Homem Célebre”. Neste último, o genial escritor carioca retrata a vida de Pestana, um compositor que passou a vida tentando criar uma sonata clássica, buscando inspiração em músicos clássicos como Mozart e Beethoven. Entretanto, do piano do pobre Pestana só saíam composições ligeiras e brejeiras, aquelas músicas dançantes caracterizadas como polcas.

Pior do que só conseguir produzir músicas populares era o fato de as composições de Pestana fazerem sempre muito sucesso, a ponto de serem cantaroladas nas ruas do Rio de Janeiro e serem solicitadas a todo instante em diversos saraus e espetáculos musicais variados. Os títulos das composições, redefinidos quase que invariavelmente pelo editor do Pestana, também se tornavam populares pelo inusitado da forma, como eram os casos de “Não bula comigo, nhonhô”, “Candongas não fazem festa” e “Senhora dona, guarde o seu balaio”. Mas o que quer dizer cada um desses títulos, perguntava-lhe Pestana? “Não quer dizer nada, mas populariza-se logo”, refutava o editor.

O ex-goleiro e atual técnico Rogério Ceni, recém demitido do São Paulo FC, enquadra-se bem no quadro da ironia machadiana ilustrada na frustração musical do Pestana. Como goleiro, Ceni teve uma carreira brilhante e vitoriosa dentro de seu clube, ainda que seus maiores feitos não tenham sido embaixo das traves, mas sim como exímio cobrador de pênaltis e tiros livres. A despeito de algumas atuações memoráveis com as mãos – os são-paulinos hão sempre de evocar a final do Mundial de Clubes de 2005 contra o Liverpool –, é difícil considerar Ceni como um atleta excepcional em sua posição.

Excepcional era sua habilidade com pés, a ponto de eu sugerir marotamente a alguns amigos tricolores que Ceni deveria atuar no meio-campo são-paulino, e não com a camisa de número 1. Contemporaneamente a ele, por exemplo, e só para citar alguns casos, Marcos, Dida, Zetti, Taffarel e até Júlio César demonstraram maior qualidade como goleiro, construindo uma carreira mais sólida nas convocações e atuações pela Seleção Brasileira (Ceni, por exemplo, jamais firmou-se como titular do escrete).

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Ceni chegou a ser o coordenador pontual da seleção brasileira quando Dunga era o treinador. Participou da Copa América do Centenário em 2016. Foto: Lucas Figueiredo/Mowa Press.

Daí que, tal qual como Pestana, Ceni entrará para a história não como um dos maiores goleiros do futebol brasileiro, mas sim como um goleiro mais exímio no trato da bola com os pés. Perto de se aposentar da carreira de goleiro goleador e assumir a de treinador, Ceni impôs a si mesmo outra circunstância danosa e suicida: segundo ele próprio, não seria possível vê-lo a atuar com outra camisa que não a do São Paulo – clube do qual ele sonhava alcançar a presidência num futuro breve.

A presunção de Rogério ao assumir-se técnico de futebol assemelhou-se muito à do nosso Pestana, o compositor: inspirado pelos grandes nomes da atualidade, Ceni desejou logo treinar um dos principais clubes do país, no mesmo nível dos compositores clássicos que o Pestana pretendia imitar. Contudo, o repertório do goleiro goleador e agora técnico permitia-lhe, neste momento, pouco mais do que produzir algumas polcas populares. Daí o descompasso e a frustração irreversíveis.

Após Rogério ter feito juras de amor ao São Paulo, qual outro grande clube do futebol brasileiro terá coragem de contratá-lo depois te se ter tornado pública a ligação dele com o clube do Morumbi? Alguém consegue imaginá-lo à frente do Palmeiras ou do Corinthians, por exemplo?

Rogério Ceni paga assim o preço por ter almejado logo de cara cristalizar-se como compositor clássico, erudito. Espelhou-se em Mozart e Beethoven e mirou o sucesso de ambos, quando antes deveria ter optado começar por degraus mais baixos. Se tivesse iniciado sua carreira nas divisões de base do próprio São Paulo, é capaz que teria fortalecido alguns atributos importantíssimos para um técnico de futebol, como a liderança, a visão de jogo, a gestão de recursos humanos etc. Assim, ao atingir logo de cara um patamar altíssimo na carreira (algo que outros levariam ao menos uma década para obter a mesma colocação profissional), Ceni repetiu o mesmo erro de Dunga e Falcão, que logo cedo assumiram a Seleção Brasileira sem grandes experiências anteriores.

Ao final do conto de Machado e Assis, lemos que o Pestana acabaria por morrer de “bem com os homens e mal consigo mesmo”. O caso de Rogério Ceni parece ser o inverso: quase sempre solene e soberbo desde os tempos de jogador, o ex-goleiro goleador caminha para ficar de “mal com os homens e bem consigo mesmo”.

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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Rogério Ceni, um Homem Célebre pelo avesso. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 13, 2017.
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