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Roma e Cruz Azul – o cinema e as memórias futebolísticas

Marco Antunes de Lima 10 de janeiro de 2019

Roma é o último filme do diretor mexicano Alfonso Cuarón (de Gravidade e E Sua Mãe Também), lançado em 2018 e distribuído internacionalmente pela rede de streaming Netflix. Este que vos escreve, apesar de assistir muitos filmes, não é um especialista em cinema e quando viu pela primeira vez o cartaz do filme ficou imaginando que se tratava de algum filme sobre a cidade de Roma e achou estranho que o poster do filme apresentar algumas pessoas abraçadas em uma praia. A primeira coisa que fiz, antes até de ler a sinopse (já havia lido elogios ao filme), foi saber porquê a película tinha esse nome. Descobri, rapidamente, que Roma é o nome de um bairro na Cidade do México onde se passa a maior parte do enredo do filme.

Assisti Roma poucos dias depois e fiquei maravilhado com a história. Como disse, não sou especialista em cinema, mas acho que a película merece em muito os prêmios que já recebeu (Leão de Ouro de Veneza e Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro entre outros) e penso que deva ganhar o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira e talvez o prêmio de Oscar de Melhor Direção. Obra prima, comovente, Roma se centra na história de Cleo, uma empregada doméstica mexicana (de origem Mixteca) que vive e trabalha em uma casa de uma família de classe média alta no bairro de Roma, na Cidade do México. A película se passa entre o ano de 1970 e 1971. Roma retrata com maestria as desigualdades e dramas privados e públicos do México no início dos anos 70, e que, de alguma forma, ainda perduram até hoje, e que vão muito além de um bairro de classe média do Distrito Federal Mexicano, mas retratam um sistema que perdura até hoje em dia em toda a América Latina.

Mas o que Roma tem a ver com futebol? Afinal, este site é sobre futebol, não? Assim como você, leitor deste texto, eu sou um apaixonado por futebol, e não só pelo meu time de coração especificamente, mas pelo jogo em si e suas histórias. E quando assisto qualquer filme ou série, ou quando leio algum livro, sempre procuro elementos do futebol dentro deles. E, ao assistir o maravilhoso Roma, não foi diferente. Para a minha esposa, que assistia comigo à película, os momentos em que apareciam alguma referência ao futebol no filme passavam despercebidos (porque não eram chaves para o enredo), mas eu sempre parava e fazia um comentário sobre o assunto, talvez querendo se vangloriar do meu exíguo conhecimento futebolístico para ela.

A maioria dos comentários feitos foi sobre o Cruz Azul, famoso time mexicano que já disputou final de Taça Libertadores da América e que já enfrentou, por diversas vezes, clubes brasileiros. O conhecido símbolo desse time mexicano aparece por pelo menos três vezes no filme, em caminhões, pintados em muros e em uma camiseta de uma das crianças do filme. Como conhecedor básico do futebol já sabia algumas coisas sobre o Cruz Azul, mas o cinema e a literatura, para um apaixonado por futebol como eu, e aposto como você leitor, sempre nos instiga a conhecer mais sobre aquilo que está sendo visto na tela. Perguntei-me por que tantas referências ao Cruz Azul nesse filme sobre a vida cotidiana mexicana no início dos anos 70. E fui atrás da informação. Conhecer por que o Cruz Azul?

Foto: Twitter Alfonso Cuaron – @alfonsocuaron

O à época Deportivo Cruz Azul foi fundado em 22 de Março de 1927 pelos trabalhadores da fábrica de Cimento tipo Portland Cruz Azul, localizada na cidade de Jasso, no Estado de Hidalgo. O clube, amador, foi fundado com a intenção da prática esportiva dos trabalhadores tão comum nas primeiras décadas do século XX. Era um clube de fábrica, como o Bangu, do Rio de Janeiro, e o Juventus, de São Paulo. Em 1931/1932 a empresa de cimentos se transformou em uma Cooperativa com quase duzentos trabalhadores entre seus sócios; fato esse uma marca da Revolução Mexicana de 1910. O Clube desportivo continuou com as suas práticas amadoras, sendo a principal dela o futebol. O clube era a seção esportiva da Cooperativa.

No início dos anos 60 a direção da Cooperativa decidiu transformar o departamento de futebol, ainda amador, em profissional. A primeira temporada do Cruz Azul como equipe profissional se deu em 1960/1961, na segunda divisão do futebol mexicano. O clube quando amador já havia disputado partidas contra os diversos plantéis profissionais mexicanos. Na temporada de 1963/1964 o Cruz Azul se sagrou campeão da segunda divisão e ascendeu à primeira divisão mexicana, estreando já no mesmo ano de 1964.

Após quatro anos disputando a primeira divisão o Cruz Azul conseguiu vencer o seu primeiro título da Liga, da temporada 1968/1969, já sob o comando do técnico Raúl Cardenás, ex-jogador mexicano de três Copas do Mundo e que seria também o técnico da seleção mexicana na mais famosa Copa jogada por lá, à de 1970. A partir desse título, de 1969, se inicia a era de ouro do futebol “cementero”. O próximo título da liga do Cruz Azul seria o do Torneio México 70, que ocorreu durante todo o ano de 1970 e foi organizado em homenagem ao campeonato mundial de futebol que, como sabemos, ocorreu no mesmo ano no México, onde a seleção brasileira conquistou o tricampeonato. É nesse momento da história, logo após o Torneio México 70, que se desenvolve o filme Roma, de Alfonso Cuarón. Quando vemos uma das crianças da casa usando a camiseta do Cruz Azul, vive-se ali um momento logo após o título cruz-azulino.

Durante toda a década de 70 até o início da década de 80 o Cruz Azul passou a viver o seu auge futebolístico, como dito, a sua Era de Ouro. Conquistou nesse período sete dos seus oito títulos nacionais mexicanos, por uma vez a Copa México e por três vezes a Copa dos Campeões da Concacaf. Na imprensa especializada foi considerado o clube da década no México e ganhou o apelido de “La Maquina”, em referência ao mesmo apelido dado à equipe do River Plate, da Argentina, nos anos 40 do século XX. Passada essa década de ouro, o Cruz Azul não foi mais o mesmo, tendo conquistado apenas mais um título nacional e chegado em uma oportunidade à final da Taça Libertadores da América (2003), porém conquistou por mais três vezes a Copa dos Campeões da Concacaf. Entretanto a década de 70 foi essencial para a história dos cementeros; eles passaram de um time pequenino de uma pequena cidade para um time da capital federal (se mudaram para a Cidade do México em 1971) e conquistaram o posto de terceira maior torcida da nação mexicana, ficando apenas atrás do Chivas Guadalajara e do América (o maior rival do Cruz Azul).

Voltemos à película de Alfonso Cuarón. A intenção do renomado diretor, como ele mesmo deixou claro, era muito mais do que relatar a história de uma jovem empregada doméstica, mas sim o filme é, ficcionalmente, uma autobiografia do próprio Cuarón. O diretor, através da história de Cleo, retratou o mundo de sua infância no México dos anos 70. Cuarón é nascido em 1971 e, coincidentemente, viveu no mesmo bairro em que se passa a película, Roma, na região central da capital mexicana. E além do mais, a casa da família para qual Cleo trabalha está localizada na mesma rua em que Alfonso Cuarón viveu quando criança. O diretor, no final do filme, o dedica a Libo, a empregada doméstica que trabalhava em sua casa durante a sua infância e adolescência.

Basicamente a película é uma homenagem e um retrato da vida das empregadas domésticas mexicanas, e porque não latinas, e também um retrato do México do início dos anos 70, período da infância do diretor. Mas, apesar de não ser destaque o futebol também é homenageado no filme, através, claro, do Cruz Azul. Cuarón reviveu suas memórias de infância e o Cruz Azul, com sua vencedora e poderosa equipe durante toda a década está lá, ou na camisa de uma das personagens ou na propaganda dos “Cementos Cruz Azul”. É a memória afetiva futebolística que nos atinge, e que não foi diferente com Cuarón. O próprio diretor em um tweet na rede social disse que “Es imposible retratar el México de los 70s sin incluir la presencia de Cruz Azul; sus camiones, sus bardas y sus muchos campeonatosi.

 

Além do mais, fica claro que Cuarón talvez seja torcedor do Cruz Azul, paixão essa concebida no início da década de 70, quando em outro tweet, logo antes da final que o Cruz Azul jogaria contra o rival América pelo Torneo Apertura 2018 (o América sagrou-se campeão ao vencer por 2 a 0 a partida) o diretor declara sua torcida aos cementeros: “Hoy, como en 1971 el ⁦@Cruz_Azul_FC⁩ va a ser el campeón de México, ¡Mucha suerte cementeros!ii.

 

Um filme pode não ser sobre futebol, como a maioria o são, mas para eu e você leitor, amante do jogo, pequenas referências futebolísticas têm um poder tremendo. Elas nos fazem ir atrás da história, dos fatos, nos fazem tentar desvendar por que essas referências estão lá. É a afetividade que temos com o futebol que nos faz conhecer e aprofundar as memórias do jogo.

Que Roma ganhe o Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, que o México e a América Latina possam superar seus diversos problemas representados no filme (o machismo, a desigualdade social, a violência) e que o Cruz Azul possa voltar a ser o grande time que foi.


iTweet de @alfonsocuaron em 8 de dezembro de 2018 – https://twitter.com/alfonsocuaron/status/1071565903643340800

iiTweet de @alfonsocuaron em 16 de dezembro de 2018 – https://twitter.com/alfonsocuaron/status/1074447714128154624

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Marco Antunes de Lima

Graduado em História pela USP e editor do Ludopédio.

Como citar

LIMA, Marco Antunes de. Roma e Cruz Azul – o cinema e as memórias futebolísticas. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 8, 2019.
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