Ao anunciar sua despedida do futebol, Ronaldo tentou mostrar que por detrás do “Fenômeno” existe um homem comum, com dores, que tem dificuldades de subir escadas e que sofre de um distúrbio de saúde. Uma das marcas da sociedade contemporânea é justamente a tensão entre seres ordinários – a massa – e singulares – os ídolos. Ronaldo parecia querer mostrar que fazia parte dos primeiros. Não faz. Sua entrevista e seu choro foi capa nos principais jornais do mundo. Inclusive no Olé, da Argentina, que se utilizou de uma frase significativa no país: “un viejo adversario despide a un amigo”. Frase dita por um político no funeral de Perón – um mito na Argentina – em 1974. O choro de Ronaldo é humano, mas sua carreira é excepcional, assim como foi a vida política de Perón no país vizinho.

A trajetória de Ronaldo rumo ao posto de herói começa, para os brasileiros, paradoxalmente, na França, em 1998, quando o atleta teria sucumbido na final às pressões nele depositadas. Na queda do ídolo, presenciamos sua humanização. Ao invés do Ronaldo, o fenômeno, descobrimos Ronaldo, o homem. Nesta inversão, abriu-se o caminho para a trajetória heróica de Ronaldo no país. O super-homem das histórias em quadrinhos, por exemplo, nos fascinou justamente por viver entre nós sob as falsas vestes do jornalista Clark Kent. Conforme análise de Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, Clark Kent é um tipo “aparentemente medroso, tímido, de medíocre inteligência, um pouco embaraçado e míope” e, por isso mesmo, através de um processo de identificação, qualquer um pode “nutrir secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade”. Paralelamente, é como se o problema sofrido por Ronaldo aproximasse o ídolo dos fãs, iniciando uma nova trajetória do candidato a herói da seleção.

Lance do jogo entre Corinthians x Flamengo no estadio do Pacaembu pela Libertadores em 2010. Foto: Marcos Alves/agência O Globo.

A narrativa clássica do herói fala de superação de obstáculos, redenção e glória. Até a Copa de 1998, a trajetória do atleta tinha sido iniciada como mito. Ronaldo era jovem, rico, eleito por duas vezes consecutivas o melhor do planeta, o atleta mais festejado pela mídia internacional. Até então não tínhamos presenciado fenômeno semelhante de narrativa mítica, iniciada de forma tão meteórica e espetacular, sem que o ídolo esportivo tivesse superado obstáculos e provações no caminho e nem ao menos tivesse conquistado um triunfo para dividir com a comunidade – no caso específico, com os brasileiros.

Desta forma, o fracasso na final da Copa de 1998, lançou as bases para uma nova narrativa. A trajetória iniciada como mito, ganhou um contorno mais humano. O “fenômeno” saiu de cena e deu lugar a um atleta com problemas físicos e uma “dívida” a pagar. A derrota denunciava o conteúdo humano que se encontrava embutido na figura do ídolo e destacava o duelo entre a fragilidade do homem e o peso da capa de herói.

Ronaldo na seleção brasileira. Por Baptistão Caricaturas.

Da final contra a França até a Copa de 2002, o atleta passou por inúmeras provações. Primeiro as contusões, depois os questionamentos de que “não era tudo aquilo que a mídia dizia ser”. Logo após a classificação para a Copa do Mundo de 2002, o anúncio de que o técnico Luís Felipe Scolari iria convocá-lo gerou questionamentos. Será que valeria a pena escalar um jogador que estava recuperando-se de séria lesão no joelho e ao mesmo tempo deixar de fora Romário, o “herói do tetra”, e que, apesar da idade avançada para a prática do futebol, vinha marcando gols nas partidas que disputava?

Após ter marcado os dois gols da vitória por 2 a 0 contra a Alemanha, Ronaldo tomou conta do noticiário e confirmou a hipótese de que sua saga seria contada tendo sempre como início a final contra a França, já que foi ali que ocorreu o processo de humanização do mito, fundamental para estreitar a identificação com os fãs. A conquista da Copa de 2002 foi narrada de forma mítica, como um emblema de provações superadas “espetacularmente” pelo atleta. Dotado de um talento excepcional que o torna singular, Ronaldo pautou a mídia durante este Mundial e “escreveu” sua história como herói da seleção.

Caricatura de Ronaldo na fachada do prédio Oberbaumbrücke em Berlim. Foto: Sérgio Settani Giglio

De 2002 em diante, Ronaldo passou por várias lesões, caiu e se levantou, até que em 2009 foi parar no Corinthians e passou a ter sua história narrada também como jogador de um clube no seu país. Foi campeão paulista e da Copa do Brasil no mesmo ano, fez atuações dignas de um fora de série, marcou gols excepcionais, mas depois vieram as lesões. A eliminação precoce do Corinthians da Libertadores precipitou sua despedida do futebol. O anúncio da despedida, em tom emocionado, encerra um capítulo em sua vida de ídolo futebolístico. Mas a tentativa de fazer parte do rol dos “ordinários” dificilmente será bem-sucedida. Ronaldo tem algo que não se explica e o diferencia e o singulariza dos mortais, incluindo aí seus colegas de profissão: um talento excepcional para a prática do futebol. Assim como Perón, humanizado por meio da morte – Deuses não morrem – Ronaldo terá que viver para sempre com o drama de ser dois: o homem e o mito.

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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Ronaldo e o fardo da idolatria. Ludopédio, São Paulo, v. 21, n. 1, 2011.
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