Como é de conhecimento geral, o futebol também é uma das principais manifestações culturais e uma das maiores paixões na Alemanha. Costuma-se apontar o futebol como a modalidade esportiva e de lazer mais querida na preferência dos alemães, seja para praticá-lo, seja para vivenciá-lo como torcedor. Desde os primórdios, quando supostamente teria chegado ao país em 1873 pelas mãos e pés de Konrad Koch (o “Charles Müller” de lá), um professor de línguas clássicas e de alemão que teria regressado da Grã-Bretanha à cidade de Braunschweig, o futebol se desenvolveu no país por décadas a fio, tornando-se muito popular. Estima-se que mais de 8% da população alemã pratique o futebol, o que equivale a 6,5 milhões de pessoas, que são associadas a um dos mais de 27 mil clubes. A Bundesliga – o Campeonato Alemão –, que aprendemos a acompanhar pela TV a cabo, foi fundada em 1963 e, atualmente, é um dos campeonatos mais fortes do continente europeu. Admiramos-nos com estádios lotados, seja em clássicos como o derby entre Borussia Dortmund e FC Schalke 04, seja em jogos de equipes de localidades menores e com menor torcida, como, por exemplo, Hoffenheim e Paderborn.

Assim como no Brasil, em que o futebol é tido como “paixão nacional”, o esporte bretão na Alemanha também possui um amplo alcance e sua relevância se expressa também em outras manifestações culturais, como na música e na literatura.

Lá, como cá, costuma-se encontrar “poesia” e “arte” no futebol, o que leva a uma espécie de “estetização” do esporte bretão. O escritor, ensaísta e crítico literário Helmut Böttiger, por exemplo, estabelece uma série de comparações a fim de atribuir ao futebol qualidades literárias e dramáticas, aludindo, para isso, a expoentes como o alemão Friedrich Schiller e o britânico William Shakespeare. Versos são comparados a jogadas, como as que o saudoso Mané Garrincha, o “anjo de pernas tortas”, e Stan Libuda, ex-jogador do FC Schalke 04, Borussia Dortmund e da seleção alemã nos anos 1960 e 1970, faziam ao driblar, habilmente, seus marcadores. Para Böttiger, em tom hiperbólico, um gol decisivo nos acréscimos de uma partida seria mais emocionante do que a cena de morte no desfecho de uma peça de Shakespeare. E os estádios de futebol seriam os locais por excelência em que destino e tragédia se fazem presentes.[I]

Assim como no Brasil, devido ao elevado significado cultural para a sociedade alemã, o futebol se faz presente também na literatura, mesmo que, às vezes, tenhamos a impressão de que ainda não seja numa intensidade e amplitude que seria de se esperar para tal fenômeno. Alguns romances se destacam, como, por exemplo, Der elfte Mann (1992; O 11º. jogador), de Erich Loest, e Wir werden Weltmeister! (2010; Seremos campeões mundiais!), de Herbert Friedmann, além de contos como “Der Betriebsrat” (1966; O conselheiro de empresa), de Max von der Grün, e “Der Sonntag, an dem ich Weltmeister wurde” (1994; O domingo em que me tornei campeão do mundo), de Friedrich Christian Delius. Também encontramos excelentes exemplos na lírica, como a coleção de poemas Am Ball ist immer der Erste (2006; Na bola é sempre o primeiro), de Wolfgang Bortlik, Die Wahrheit ist auf dem Platz. Fußballsonette (2006; A verdade está sempre no campo. Sonetos de futebol), de Ludwig Harig, e Schweini blutet – Deutschland tutet. WM-Gedichte (2014; Schweinsteiger sangra – a Alemanha faz. Poemas do Mundial), de Michael Augustin.

Recentemente, um expoente dessa galeria de craques alemães da literatura nos deixou: o artista plástico, escritor e poeta Ror Wolf (1932-2020). Autor de peças radiofônicas, romances, colagens e poemas, Ror Wolf nos deixou em 17 de fevereiro de 2020, aos 87 anos, vítima de um câncer, contra o qual lutava desde 2001. Nascido em 29 de junho de 1932, em Saalfeld, na região da Turíngia, Richard Georg Wolf, como era seu nome, emigrou aos 21 anos de idade, em julho de 1953, da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental, residindo, primeiramente, em Stuttgart e transferindo-se, posteriormente, para Frankfurt, onde estudou Literatura, Filosofia e Ciências Sociais com renomados professores, dentre eles, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Höllerer. Após se formar, em 1961, iniciou suas atividades como escritor e poeta, e também colaborou como redator de alguns periódicos e da Rádio Hesse, e assinava alguns de seus textos sob o pseudônimo de Raoul Tranchirer.[II] Após inúmeras mudanças, Ror Wolf fixou-se na cidade de Mainz, vizinha de Frankfurt, onde residiu nos últimos 30 anos (Figura 1).

Figura 1 – O escritor, poeta e artista plástico Ror Wolf (ao centro) recebendo o prêmio de peças de rádio Hörspielpreis der Kriegsblindenem, 1988. Foto: Wikipedia.

O que tornou Ror Wolf muito conhecido no universo literário alemão foram suas colagens radiofônicas sobre futebol elaboradas nos anos 1960 e 1970, principalmente produzidas pela Rádio Hesse, como “Schwierigkeiten beim Umschalten” (Dificuldades em mudar de estação), “Merkwürdige Entscheidung” (Decisão notável) e “Der Ball ist rund” (A bola é redonda).[III] Para o jornalista André Hatting, através de suas colagens radiofônicas, o poeta teria tornado o futebol uma “arte sonora” (Hörkunst): “No início dos anos 1970, ele surge com um aparelho gravador no universo dos jogadores, coleciona vozes e opiniões de especialistas à beira do gramado e deles diante do microfone”.[IV]

O grande “fabricante da realidade” (Wirklichkeitsfabrikant), como o jornalista Hilmar Klute o designou, Ror Wolf era um “mestre de cerimônias de um espetáculo literário de catástrofe” (Zeremonienmeister eines literarischen Katastrophen-Spetakels).[V] Em suas obras, o mundo surge envolto, ao mesmo tempo, por um tom de humor e de grotesco. O próprio escritor designava a sua atividade poética como “fábrica de realidade” (Wirklichkeitsfabrik), que também se aplica a suas peças radiofônicas de futebol, que unem comentários esportivos ao desenrolar das partidas, segundo o procedimento estético de colagem. A associação de fragmentos de comentários sobre uma partida com trechos de entrevistas através do principio da colagem e da técnica de compilação dos mais diversos materiais produzia determinados efeitos, como humor e sarcasmo.

Como aponta Alexander Wasner, Ror Wolf era “poeta do futebol e defensor veemente da poesia rimada”,[VI] sua máxima, como certa vez a formulou, orientava seu trabalho artístico e poético: “O mundo não é futebol, mas no futebol há uma porção de mundo”.[VII]

A título de exemplo da produção literária de Ror Wolf, apresentarei a seguir alguns textos publicados pelo autor na obra Das nächste Spiel ist immer das schwerste (1982; O próximo jogo é sempre o mais difícil), cuja segunda edição, publicada em 2008 (Figura 2), tive o prazer de receber das mãos de Ror Wolf, com um autógrafo datado de 16 de setembro de 2017, quando o escritor me recebeu em sua casa, em Mainz, no complexo do Kupferbergterrasse, um dos pontos turísticos da cidade, para uma conversa sobre futebol e literatura. Aliás, o título dessa obra é uma frase atribuída ao famoso treinador da seleção alemã, Sepp Herberger, campeão mundial de 1954.

Figura 2 – A segunda edição da obra “O próximo jogo é sempre o mais difícil” (2008). Foto: Reprodução.

Uma das marcas da poesia de Ror Wolf, além da rima, é também a composição verbo-visual, conforme atesta a seguinte passagem de uma de suas famosas colagens radiofônicas, “Merkwürdige Entscheidung” (Decisão notável), em que o protesto contra a arbitragem é o tema:[VIII]

Quatro locutores do estádio

… árbitro desta partida é o senhor Ohmsen de … o jogo é conduzido pelo árbitro Gabor … o jogo está sob a direção do senhor árbitro Aldinger, de Waiblingen … árbitro do jogo é o senhor Hau, de Hallgarten. Desejamos ao jogo um andamento com fair-play…

Por volta de 25.000 torcedores

Ladrão Ladrão Ladrão Ladrão Ladrão Ladrão Ladrão

Ladrão Ladrão Ladrão Ladrão

Ladrão Ladrão Ladrão

Ladrão Ladrão

Conforme pode ser constatado, quatro trechos de transmissões esportivas com referência a árbitros são coladas em sequência e, ironicamente, o que se produz, não representa o desejo dos locutores de um jogo com fair-play, mas sim uma arquibancada lotada que, furiosa, xinga, cada vez mais intensamente, o juiz da partida. Aqui, os trechos de gravação são transcritos e visualmente diferenciados.

Como segundo exemplo da produção literária de Ror Wolf sobre futebol, elegemos um poema extraído de “Dreizehn WM-Moritaten 1930-1986” (Treze Moritaten[IX] das Copas do Mundo 1930-1986), especificamente aquele que se refere ao Mundial de 1950 e ao Maracanazo, que, aliás, completará 70 anos no dia 16 de julho de 2020:

Mil e novecentos e cinquenta

 

Pela primeira vez nesses vinte anos,

já brilha lindamente a ponta do Pão de Açúcar

no calor úmido do Rio de Janeiro,

chega a Inglaterra atravessando o mar.

 

Chegaram para mostrar ao mundo,

o que é futebol; por exemplo, Billy Wright:

ele era, talvez, de seu tempo o melhor,

de Wolverhampton; mas o que segue é silêncio.

 

Foi um momento bem danado e difícil

para a Grã Bretanha e para ele.

Ele jantou mais tarde no palácio da rainha.

Mas isso ocorreu tempos depois.

 

No Rio, se estava flácido e torcido.

Mesmo Stanley Matthews não pôde mais salvar.

Os bretões foram silenciosos para suas camas.

Sua fama foi pelo ar quente devorada.

 

E sorridente saindo das florestas selvagens,

pairando sobre pés macios, extasiante, Ademir,

macio como no sono, um gentil animal moreno

farfalhando e completamente dedicado ao jogo

 

Bigode zumbindo alegre nos flancos

Friaça fazendo mágica, Chico suavemente andando,

e voando como em uma noite amena,

vê-se o Brasil escorregar,

 

em um arco, sem fôlego,

leve através do ar nos raios do sol da tarde,

bem despreocupado – e de repente como uma pedra

caiu, gélido empurrado para baixo.

 

Os deuses extintos, esmagados, moídos.

De pesar pressionam-se as cabeças no gramado.

O luto esparramou-se pelas ruas do Rio,

no vento e na dor na fumaça nas dores.

 

Está muito silêncio. Só se houve a pancada

Ao cair da bola pesada.[X]

Infelizmente, a tradução instrumental deste poema acabou destruindo todo o ritmo e as rimas dos versos no original. Composto de 34 versos em rimas interpoladas abba-cddc, distribuídos em oito quadras e um dístico final, o poema pauta-se por alguns estereótipos em relação à paisagem e à natureza tropical. Em seus versos, não faltam o Pão de Açúcar e as “florestas selvagens”, o clima é úmido sob o sol radiante. Nesse cenário, chegam os ingleses, pela primeira vez, disputando uma Copa do Mundo. O eu lírico inicia com uma expectativa sobre os britânicos, “inventores do futebol”, mas que, mesmo com jogadores como Billy Wright e Stanley Matthews, não conseguem impor seu jogo e são desclassificados em memorável partida disputada em Belo Horizonte, no Estádio Independência, numa derrota por 1 a 0 para a seleção dos Estados Unidos.

O poema parece ter duas fases: a primeira, em que o foco recai sobre a seleção inglesa; a segunda, em que surge a seleção brasileira, sorrateira e envolvente, saindo da floresta, e seus jogadores – Ademir, Bigode, Friaça e Chico – aparecem aos olhos do eu lírico como entes da natureza. Todavia, em um revés, vem a queda. Não há qualquer menção à seleção uruguaia, apenas o fracasso das duas seleções: a inglesa e a brasileira. E o que resta, ao final, são o silêncio, o luto e a dor, com os “deuses extintos, esmagados, moídos”.  

Ao longo de sua carreira, Ror Wolf recebeu inúmeros prêmios, com destaque para o Prêmio de Literatura de Bremen (1982), o Grande Prêmio de Literatura da Academia Bávara de Belas Artes (2003), o prêmio Peça Radiofônica do Ano (2006; 2007), o Prêmio Friedrich Hölderlin (2008), o Prêmio em Memória de Schiller (2016) e o Prêmio Rainer Malkowski (2018).[XI] Sem dúvida, esse expoente da Literatura Alemã fez escola para algumas gerações de escritores, poetas e artistas, e permanecerá sendo uma referência para aqueles que, futuramente, se aventurarem a adotar o futebol como tema de seus trabalhos literários e artísticos.

Notas

[I] Böttiger, Helmut. Kein Mann, Kein Schuß, Kein Tor. Das Drama des deutschen Fußballs. München: C. H. Beck, 1993, p. 12.

[II] Klute, Hilmar. Dann fällt der Regen nieder. Zum Tod von Ror Wolf. Süddeutsche Zeitung. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020.

[III] Wasner, Alexander. Der Schriftsteller Ror Wolf ist gestorben. Südwestrundfunk. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020.

[IV] Hatting, André. Ein genialer Außenseiter. Deutschlandradio. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020. No original: Anfang der 1970er-Jahre taucht er mit Aufnahmegerät in den Kosmos der Kicker, sammelt Stimmen und Stimmungen von Experten am Spielfeldrand und denen vor dem Mikrofon. (todas as traduções do alemão são de minha autoria).

[V] Klute, Hilmar. Dann fällt der Regen nieder. Zum Tod von Ror Wolf. Süddeutsche Zeitung. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020.

[VI] Wasner, Alexander. Der Schriftsteller Ror Wolf ist gestorben. Südwestrundfunk. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020.

[VII] No original: „Die Welt ist nicht Fußball, aber im Fussball steckt eine Menge Welt“. Ror Wolf, citado por Wasner, Alexander. Der Schriftsteller Ror Wolf ist gestorben. Südwestrundfunk. 18 fev. 2020. Acesso em: 21 mar. 2020.

[VIII] Wolf, Ror. Merkwürdige Entscheidung. In: Wolf, Ror. Das nächste Spiel ist immer das schwerste. Frankfurt a.M.: Schöffling & Co., 2008, p. 120. No original:

Figura 3 – Excerto extraído do livro. Foto: Reprodução.

[IX] Termo de difícil tradução, oriundo de Mordtat que significa assassínio. Esse termo ficou famoso com a canção “Moritat von Mackie Messer”, da Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertolt Brecht.

[X] Wolf, Ror. Neunzehnhundertfünfzig. In: Wolf, Ror. Das nächste Spiel ist immer das schwerste. Frankfurt a.M.: Schöffling & Co., 2008, p. 14. No original:

Zum ersten Mal in diesen zwanzig Jahren,

schon schimmert schön des Zuckerhutes Spitze

in Rio de Janeiros feuchter Hitze,

kommt übers Meer auch England angefahren,

 

Man war gekommen, um der Welt zu zeigen,

was Fußball ist; zum Beispiel Billy Wright:

er war vielleicht der Beste seinerzeit,

aus Wolverhampton; doch was folgt ist Schweigen.

 

Es wahr ein ganz verdammt und zugenähter

Moment für Großbritannien und für ihn.

Er speiste später im Palast der Queen.

Doch das war wirklich eine Weile später.

 

In Rio war man schlaff und ausgewrungen.

Selbst Stanley Matthews konnte nichts mehr retten.

Die Briten gingen schweigend in die Betten.

Ihr Ruhm war von der heißen Luft verschlungen.

 

Und lächlend aus den wilden Wäldern schwebend

Auf weichen Füßen, rauschend, Ademir,

zart wie im Schlaf, ein braunes sanftes Tier,

und raschelnd und dem Spiel ganz hingegeben

 

Bigode glücklich schwirrend auf den Seiten

Friaça zaubernd Chico wandelnd sacht,

und fliegend wir in einer milden Nacht

sieht man Brasilien vorübergleiten,

 

in einem Bogen, einem atemlosen,

leicht durch die Luft im Abendsonnenschein,

ganz unbesorgt – und plötzlich wie ein Stein

herabgestürzt, eiskalt hinabgestoßen.

 

Die Götter ausgelöscht, zerstampft, zermahlen.

Vor Gram drückt man die Köpfe in den Rasen.

Die Trauer goß sich aus auf Rios Straßen,

in Wind und Weh in Schmerz in Qualm  in Qualen.

 

Es ist sehr still. Man hört nur noch das Prallen

des schweren Balles beim Herunterfallen.

[XI] Schöffling & Co. (Editora) – Ror Wolf. Acesso em: 21 mar. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Ror Wolf, in memoriam. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 61, 2020.
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