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Ruud Gullit – Notas sobre genialidade e militância

No final do triste ano de 2020, devido as milhares de mortes pela Pandemia de Sars-CoV-2, causador do COVID-19, no dia 20 de dezembro em partida válida pelo campeonato Brasileiro de Futebol, Flamengo x Bahia, surgiu uma acusação de racismo por parte do jogador Gerson do Flamengo. Segundo o jogador, ele que foi chamado de negro (em contexto que a palavra negro denotava conteúdo racista) por Ramirez do Bahia. Além disto, teve nesta mesma noite uma fala infeliz do então técnico do Bahia, Mano Menezes, que após ouvir de Gerson a reclamação rebateu com “Agora virou malandragem?”.[1] Esse caso tomou grandes proporções, como os casos de racismo merecem, não entraremos aqui nos pormenores destes acontecimentos, isto é assunto para um outro texto. Talvez naquele momento, os jogadores de ambas as equipes deveriam ter seguido o exemplo dos atletas do Paris Saint Germain-FRA, que deixaram o campo após uma ofensa racista proferida pelo quarto arbitro Sebastian Colţescu a Pierre Webó, membro da comissão técnica do Istanbul Basaksehir-TUR. No dia 08/12/2020 em partida válida pela fase de grupos da Liga dos Campeões da Europa.[2]
Gullit
Essa ilustração faz parte da Série Grandes jogadores que não ganharam uma Copa do Mundo

Se hoje os jogadores negros podem (ainda que alguns atletas não o façam por motivos diversos como pressão de patrocinador, das ligas, acreditarem que não existe racismo, ideologia etc.) levantar suas vozes contra os racistas e seus atos é consequência de uma luta histórica. E neste texto aponto alguns trechos da trajetória de Ruud Gullit, que contribuiu para que essas vozes fossem ouvidas. Conseguiu ao longo de sua trajetória lutar contra o racismo e ser um dos gênios do futebol mundial.

Rudi Dil, conhecido como Ruud Gullit, foi um jogador de futebol que teve o auge de sua carreira no final da década de 80 e início dos anos 90. Iniciou sua jornada na Holanda, passando por clubes como Haarlem, Feyenoord e PSV Eindhoven, no Feyenoord jogou com o lendário Johan Cruyff,[3] sendo campeões holandeses na temporada 83/84 e tirando o clube da fila de títulos que estava por volta de 10 anos.

Em 1987 foi comprado pelo Milan da Itália, e lá fez parte de uma equipe que pode ser incluída entre as melhores de todos os tempos (entres clubes europeus e do mundo) junto a nomes como Franco Baresi, Paolo Maldini, Rijkaard e Marco van Basten. Até a temporada 90/91 conquistaram diversas taças como bicampeonato da Liga dos Campeões da Europa (88/89 e 89/90) e Campeonato Italiano 88, neste último foram campeões contra o Napoli de Careca e Maradona.[4]

Com uma passagem breve pela Sampdoria-ITA (94) e encerrando a carreira como jogador e iniciando como técnico no Chelsea-ING (95-98), o clube ainda não era a potência futebolística como na atualidade, sendo o primeiro técnico estrangeiro a conquistar a Copa da Inglaterra.[5]

Não foi astro apenas em sua passagem por clubes, pela seleção holandesa seus feitos não foram menores. Foi o capitão da formação campeã da Europa em 1988, único título de expressão da tradicional seleção. No ano de 1987 ganhou o prêmio bola de ouro da revista France Football.[6] Segundo estatísticas disponíveis no site “o Gol” fez ao longo da carreira 235 gols em 638 jogos, dentre estes 66 jogos e 17 gols.[7]

Gullit Euro 88
Gullit ergue o troféu da Euro 88. Foto: Reprodução Twitter

No início de carreira na Holanda, Gullit usava o cabelo dread que para nós negros já se configura em ato de afirmação identitária e para a sociedade talvez um ato de “rebeldia”. Seus cabelos dreadlocks foram destacados em uma música dedicada a ele em 1987, mesmo ano em que foi bola de ouro: “Capitão Dread” [8] da banda holandesa Revelention Time. Em tradução livre a música tem trechos como “Capitão dread elegante em total controle / Ele corre como um raio / É o primeiro capitão negro da seleção”.

Mas não termina aqui sua ligação com a música, fã de Reggae também arriscou participar de algumas canções. Com esta mesma banda gravou algumas faixas, entre elas e talvez a mais marcante “South Africa”, uma música anti-apartheid [9] que entre os trechos, em tradução livre, temos “A África deve ser livre / deve se afastar / o mundo deve ser livre / afaste-se”. Apresentou-se ao vivo em um show em Milão-ITA, cantando os versos de South Africa vestido com uma camiseta estampada “Stop Apartheid” ainda em 1987.[10]

Gullit
Gullit em show antiapartheid. Foto: Reprodução

A apresentação citada acima foi mais uma ação do Tulipa Negra – forma como era chamado pelos torcedores – que caminhava para consolidar-se além de grande atleta, um ativista anti-apartheid e antirracista. Demonstrando que um jogador de alto nível pode conciliar sua trajetória esportiva com militância política, sem que uma ultrapasse os limites da outra e sim em uma relação conjunta, dual e dialética, como na vida de maneira geral.

No ano de 1987 foi ganhador do prêmio do Bola de Ouro, na cerimônia de premiação foi proibido pela revista France Football (organizadora da premiação) de realizar um discurso que denunciava a prisão de Nelson Mandela, na África do Sul em decorrência das políticas e leis separatistas do apartheid. Todavia, assim como nos gramados se livrava dos marcadores usou sua voz, ao receber a premiação, para fazer a dedicação a Mandela e entregou a todos presentes a cópia de seu discurso original – que havia sido censurado. Anos mais tarde em 1994 em um encontro com Nelson Mandela, Gullit lhe entregou o troféu que recebera.

Gullit Mandela
Gullit entrega bola de ouro para Mandela. Foto: Reprodução Twitter

Atualmente alguns atletas aderem a determinados movimentos coletivos surgidos na sociedade no combate ao racismo, como por exemplo na National Basketball Association-NBA onde jogadores como LeBron James, Dwyane Wade e outros que aderiram ao movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), inclusive realizando protestos antes das partidas, redes sociais e até não entrarem em quadra para realizar partidas (boicote).[11] Talvez o futebol necessite de um movimento similar que aglutine as vozes e sair do aspecto individual desta luta. Trazer o debate de forma permanente e coletiva, como ações antirracistas inclusive organizadas pela FIFA em outras oportunidades, acrescentando outros temas como machismo e homofobia, pois, o futebol figura entre as maiores audiências (televisivas em relação aos esportes) do mundo.[12]

Ao longo de sua carreira participou de vários eventos onde se posicionou contra o racismo e xenofobia. Por exemplo, em Oslo na Noruega onde discutiu a situação dos refugiados africanos, como também expôs os episódios em que fora vítima de racismo, tal qual no início de sua carreira jogando pelo Feyenoord.[13]

Ruud Gullit mesmo depois de aposentado, continuava usando sua voz para lutar contra o racismo. Em uma entrevista que cedeu para a União das Associações Europeias de Futebol – UEFA afirmando que o racismo no futebol e na sociedade é um câncer que devemos curar.[14] Em outra entrevista [15], concedida durante o prêmio Laureus [16], em Berlim, defendeu que os jogadores do FC Porto-POR teriam que abandonar o campo em solidariedade ao companheiro Marenga [17] – vítima de racismo e que sozinho decidiu abandonar a partida e ir para os vestiários. O que não aconteceu, já que o jogo prosseguiu.

Gullit jogando pelo Feyenoord em 1983. Foto: Wikipédia

Enfim, visitar a história de vida de um dos gênios do futebol e uma referência na luta antirracista não tenho a intenção de sugerir que todos os jogadores negros sejam e façam como ele. Mas acredito que alguns posicionamentos em determinados momentos são no mínimo necessários. Talvez, atualmente, alguns atletas negros de nível mundial não se deem conta que suas atitudes podem influenciar milhões pelo mundo. Lutar contra o racismo, homofobia, xenofobia e todas outras formas de opressão é uma necessidade vital pela construção de um outro modelo de sociedade, não somente em termos políticos, mas também humanitários, como o posicionamento engajado de Ruud Gullit, o protagonista deste texto, acredita.

 

Notas

[1] https://globoesporte.globo.com/ba/futebol/times/bahia/noticia/audio-revela-resposta-de-mano-apos-acusacao-de-gerson-sobre-injuria-racial-virou-malandragem.ghtml

[2] Matéria completa disponível em https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/liga-dos-campeoes/noticia/jogadores-do-psg-e-istanbul-basaksehir-deixam-jogo-apos-suposto-caso-de-racismo.ghtml

[3] Disponível em https://trivela.com.br/holanda/gullit-eu-tive-a-sorte-e-o-privilegio-de-contar-com-cruyff-em-minha-vida/

[4] Para ver todos os títulos conquistados por este Milan indico a leitura de uma matéria específica disponível em https://www.imortaisdofutebol.com/2012/03/10/esquadrao-imortal-milan-1989-1990/

[5] Primeiro grande título do Chelsea em 26 anos.

[6] Prêmio de futebol criado e organizado pela revista francesa France Football, para maiores informações conferir site oficial https://www.francefootball.fr/ballon-d-or/

[7] https://www.ogol.com.br/player_seasons.php?id=14927

[8] Para os que quiserem ouvir, esta música está disponível no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=yVDnNBLvPe0

[9]    Apartheid foi uma legislação tida na África do Sul com forte indicação separatista por via racial. Regime no qual retirou uma série de direitos dos negros em prol de uma minoria não branca.

[10] Esta apresentação também está disponível no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=AZiYzjbQqD8

[11] https://globoesporte.globo.com/basquete/nba/noticia/vidas-negras-importam-em-decisao-historica-bucks-decidem-nao-jogar-em-protesto-a-novo-caso-nos-eua.ghtml

[12] https://forbes.com.br/principal/2018/06/9-eventos-esportivos-com-mais-audiencia-da-historia/#foto7

[13] Nessa oportunidade, segundo ele mesmo relata como sendo um dos piores dias de sua vida, sofreu sendo alvo de insultos verbais e cusparadas por parte de torcedores irlandeses.

[14] Parte da entrevista disponível em https://www.record.pt/multimedia/videos/detalhe/ruud-gullit-e-o-racismo-e-um-cancro-que-temos-tentar-curar

[15] Parte da entrevista disponível em https://www.dn.pt/desportos/gullit-defende-que-jogadores-do-fc-porto-deviam-ter-saido-do-campo-11831551.html

[16] Prêmio Laureus do Esporte Mundial é uma premiação concedida ao esportista (divididos por gênero) de maior destaque em cada ano, o prêmio foi criado em 1999. Entre os atletas que ganharam do prêmio encontram-se: Usain Bolt, Lewis Hamilton, Tiger Woods, Serena Williams, Simone Biles e Genzebe Dibaba. Maiores informações no site oficial do Laureus: https://www.laureus.com/

[17] Matéria disponível em https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-portugues/noticia/marega-se-revolta-com-ofensas-racistas-de-torcida-rival-e-abandona-jogo-em-vitoria-do-porto.ghtml

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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG desde 2017 e mestrando deste mesmo programa (turma 2020). Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: História do Lazer (HISLA), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES) e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva. Ruud Gullit – Notas sobre genialidade e militância. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 4, 2021.
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