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Samba e futebol no subúrbio carioca

Alguns dos integrantes do Blog História(s) do Sport são homens da periferia; suburbanos de nascimento que inevitavelmente carregam consigo as marcas dessa história. Pois como já ensina o famoso dito popular: o indivíduo pode até sair da favela, mas a favela não sai do indivíduo.

Dr. Victor Melo, por exemplo, nasceu e cresceu no Jabour, o elegante bairro localizado entre Bangu e a Favela do Sapo, em Senador Camará. Nei Jorge, cujo nome e sobrenome já denunciam suas origens de classe, também nasceu no subúrbio. É natural de Santa Cruz, embora as atuais transformações na estrutura econômica do Brasil o tenham conduzido até Campo Grande. Está visivelmente em ascensão social. É este também o meu caso, expatriado em Belo Horizonte, mas nascido e criado em Padre Miguel.

Todos esses bairros têm em comum, além de alguns elementos da sua história, a sua localização: a Zona Oeste do Rio de Janeiro. Para o leitor alheio a geografia carioca, esta é uma região – abre aspas – “feia, quente, pobre e longe pra caralho”. Sei que não é uma maneira adequada de se apresentar um lugar. Mas quem quiser conhecer a Zona Oeste do Rio terá de confrontar-se com realidades nem sempre agradáveis. Além do mais, é assim mesmo que os moradores dos bairros mais glamorosos referem-se àquela parte da cidade, embora, para muitos de seus nativos, a região guarde também seus encantos.

O bairro de Padre Miguel é um desmembramento tardio da freguesia de Realengo, ocupada, inicialmente, por sesmarias de propriedade da família Barata. O nome do futuro bairro, só oficialmente demarcado pela prefeitura em 1985, está ligado a Monsenhor Miguel de Santa Maria Mochon, nascido em Granada, na Espanha, em 1879.

Monsenhor Miguel de Santa Maria Mochon, o padre Miguel.

Miguel chegou ao Brasil por volta dos dez anos de idade. Pouco depois, tornou-se órfão, ficando desde então sob cuidados dos padres lazaristas. Depois de estudar no colégio dos salesianos, no seminário do Rio Comprido e de passar uma temporada na França, foi nomeado, em 1910, vigário da igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Realengo (atualmente na Av. Santa Cruz). Padre Miguel atuou ativamente por toda a região da paróquia, não só em assuntos religiosos, mas também em atividades educacionais e culturais, como abertura de escolas, organização de teatros ou exibição de filmes. Seu ativismo lhe angariou bastante respeito e consideração.

Uma dinâmica de ocupação mais intensa do futuro bairro só aconteceria a partir do final da década de 1930, com o início da construção da estação ferroviária de Moça Bonita, inaugurada em 1940. A estação fazia parte do ramal de Angra, depois chamado também ramal de Mangaratiba, inaugurado em 1878.

Como efeito imprevisto das obras de construção dessa estação, trabalhadores começaram a ocupar terrenos nas suas imediações. O lugar logo passaria a ser chamado de Vila ou Favela do Vintém. O nome devia-se as condições de seus terrenos, que segundo dizia-se, não valiam nem sequer um vintém: em meio a um grande charco de água e distantes do centro da cidade. Estava aí o primeiro impulso para ocupação mais regular da região.
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Foto aérea do Estádio Proletário Guilherme da Silveira, mais conhecido como Estádio de Moça Bonita, do poderoso time do Bangu. Ao lado, a atual praça Guilherme da Silveira.


Com a morte de padre Miguel, em 1947, a diretoria da Estrada de Ferro Central do Brasil, atendendo a um pedido do Cardeal Dom Jaime Câmara, mudou o nome da estação de Moça Bonita, a fim de homenageá-lo. Era o início da identificação do bairro que conhecemos atualmente. Prova inconteste da nova identificação é o novo tratamento dispensado às instalações esportivas do bairro, nomeadamente o Estádio Proletário Guilherme da Silveira, do respeitável time do Bangu (inaugurado em 1947 em substituição ao antigo estádio da Rua Ferrer). Desse momento em diante, o “alçapão de Moça Bonita”, “a cancha dos mulatinhos rosados”, logo passou a ser designado pela imprensa esportiva da época como o Estádio de Padre Miguel – apesar da estação que servia aos passageiros nos dias de jogo nessa época já ser a de Guilherme da Silveira, construída, justamente, em 1947, entre as atuais estações de Bangu e Padre Miguel. Apesar de algum esforço para desfazer-se o mal-entendido, até os dias de hoje o estádio é mais conhecido como o de Moça Bonita.

Foto aérea da construção dos Conjuntos Habitacionais, marco arquitetônico e civilizatório de Padre Miguel e adjacências.

A partir da década de década de 1940, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), criados a partir de 1930, iniciaram uma grande política de construção de moradias populares. Milhares de novas unidades domiciliares foram espalhadas pela cidade, especialmente pelos bairros suburbanos, entre os quais, Realengo, Irajá, Olaria, Coelho Neto e Penha. Padre Miguel também foi afetado pela iniciativa. Dois conjuntos de prédios foram construídos no bairro nesse contexto, atualmente conhecidos como IAPIs do Ponto Chic e da Caixa d’Água. Pelas características do financiamento imobiliário dos IAPs, com exigência de vínculo empregatício formal por exemplo, o público prioritário de suas ações acabou sendo os níveis mais superiores da classe operária.
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Foto área mais recente de Padre Miguel. Do lado esquerdo, o Conjunto Habitacional Dom Helder Camara. Do lado direito, o IAP do Ponto Chic.

Com o novo perfil de moradores, seguido por um progressivo adensamento demográfico, dinamizou-se o comércio, os serviços e também o mercado de entretenimento de Padre Miguel. Além de instituições como cinema e clubes recreativos, como o CREIB, que numa época anterior aos lendários festivais de frango assado ao som da música de Bebeto, recebera até shows da Emilinha Borba, havia também cada vez mais clubes de futebol: Carioca, Onze Amigos, Ceres, entre outros. Um deles desdobrou-se em outra importantíssima instituição de lazer do bairro: uma escola de samba. Em 1955, o Independente Futebol Clube deu origem a Mocidade Independente de Padre Miguel, que dispensa apresentações.

 

Crianças ocupam as ruas do Conjunto Dom Helder Camara em diferentes momentos. Salvo improvável engano, dado que os mais experimentados podem caminhar de olhos fechados por suas ruas, foto da Rua Barra do Corda, na esquina da Estrada Porto Nacional, entre meados dos anos 1970 e 1980, respectivamente (Arquivo pessoal de D. Lidia, que generosamente cedeu os créditos da imagem e autorizou seu uso).

 

Ampliando o processo, na década de 1960 inaugurar-se-ia o Conjunto Habitacional Dom Helder Câmara, parte de mais um projeto de construção de moradias populares – dessa vez flagrantemente mais proletárias. O maior de todos os conjuntos habitacionais já construídos no Rio de Janeiro, com 180 prédios e 7.200 apartamentos, incrementaria ainda mais a dinâmica social e cultural de Padre Miguel. Basta dizer que eu e Soninha Batista, prestigiada porta-bandeira da Mocidade entre 1978 e 1985, estivemos entre os ilustres moradores do Conjunto.

Numa época anterior ao crime organizado, às milícias ou à máfia dos caça-níqueis, a contravenção do jogo do bicho é quem fazia às vezes de patrono e bem feitor. Em Bangu e Padre Miguel, a família Andrade, através, sobretudo, do futebol e do samba, ficaria para sempre vinculada a história desses bairros e de duas de suas principais instituições. Mas isso são cenas de um próximo capítulo…

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Dedico este texto ao Dr. Marcos Dias, pela bravura na conquista de seu diploma universitário. Em matéria de guarida irmão, esperaste muito a tua vez…

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Cleber Dias

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa em História do Lazer.

Como citar

DIAS, Cleber. Samba e futebol no subúrbio carioca. Ludopédio, São Paulo, v. 63, n. 4, 2014.
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