67.2

Samba, futebol e jogo do bicho

A região de Bangu, Padre Miguel e adjacências, destaca-se, além do poder de seus termômetros, que frequentemente ultrapassam a marca dos 40º, por uma conhecida história de articulação entre alguns dos mais importantes e arquetípicos símbolos da cultura popular carioca: o samba, o futebol e o jogo do bicho. Duas das mais perenes instituições da região, a escola de samba Mocidade Independente de Padre de Miguel e o time de futebol do Bangu Atlético Clube, compartilham elementos comuns em suas histórias, entre os quais, o fato de terem se ligado a um dos mais famosos proprietários de bancas de jogo do bicho de sua época: Castor de Andrade.

Castor Andrade, em desfile da Mocidade, na Marquês de Sapucaí (reprodução).

Filho de Eusébio Gonçalves de Andrade, mais conhecido como “Seu” Zizinho, Castor de Andrade herdou do pai bancas de jogo do bicho, que soube transformar depois, com empenho e dedicação, num poderoso império da contravenção. Castor de Andrade tornou-se um dos mais conhecidos “bicheiros” de sua época, não apenas pelo poder econômico acumulado, mas também pelas lendárias histórias que lhe cercavam, sempre no limite entre o mito e a realidade. Segundo declarara certa vez a Revista Placar: “Eu não compro juiz. Ligo pra ele e digo: você não pode errar. Nada de coação. Só um jeitinho especial”.

Episódios envolvendo o nome de Castor, como até hoje é intimamente lembrado por muitos moradores da região, fazem mesmo parte do amplo repertório de mitos, lendas e folclores do futebol brasileiro. Castor era uma espécie de Eurico Miranda dos anos 60, 70 e 80. Sob o seu comando, que durou mais de 20 anos, o time do Bangu foi campeão carioca em 1966 e vice campeão brasileiro em 1985. Castor assistia aos jogos do time de dentro do campo – sempre armado, claro, para qualquer eventualidade. Certa vez, Castor presenteou o jogador Marcelinho com um fusca. O jogador faltava aos treinos frequentemente alegando que morava longe. Ao oferecer-lhe o presente, Castor teria feito questão de compartilhar com o atleta suas novas expectativas com relação ao seu comportamento: “Agora não quero mais ver você faltar aos treinos. Se faltar, te dou um tiro”.

Graças em larga medida a sempre generosa disponibilidade financeira de Castor, parte da equipe de futebol do Bangu formou o que ficaria conhecido nessa época como “o esquadrão da malandragem”. Eram jogadores de futebol mais experientes, acima dos 30 anos, que gozavam de regalias e amplo clima de liberdade no clube. Ganhavam carros, apartamentos ou dinheiro extra de presente, além de poderem interferir na organização tática do time e ainda ter autorização para fazer churrasco ou beber chope depois dos treinos. Tudo isso, na opinião de Marco Antônio, lateral-esquerdo da seleção brasileira de 70 e membro deste esquadrão, fazia do time do Bangu o “paraíso do futebol brasileiro”. Segundo dissera, “o Castor é a Serra Pelada da minha vida”.

Castor de Andrade, na capa da Revista Placar (2 ago. 1985, n. 793)

Na opinião de Castor, todavia, não se tratavam de malandros propriamente ditos, mas sim de jogadores de futebol que mesclavam equilibradamente sabedoria e picardia, “uma forma mais refinada de malandragem”, de acordo com palavras da peculiar filosofia do “bicheiro”. O jogador Carlos Roberto também via a liberdade praticada na organização do time do Bangu sob outra perspectiva. Para ele, não se tratava de um ambiente desordenado, mas sim de uma democracia, “uma democracia à moda Bangu”.

No mundo do samba, como patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, Castor viu a escola vencer os campeonatos de 1979 e 1985, além dos vice-campeonatos de 1980 e 1987. Foi a era de ouro da agremiação. Não sem razão, o nome da família Andrade já fora mais de uma vez imortalizado em verso e prosa em sambas da região.

Quero agradecer ao Sr. Zizinho

O nosso presidente de verdade

Também não posso deixar de falar

No grande Castro de Andrade…

Em 1981, ao lado do brasão desenhado por José Vilas Boas em 1904, a camisa da equipe banguense passaria a ostentar o novo mascote do time: um castor, que simbolizava, de maneira bastante óbvia, uma homenagem ao grande benemérito e futuro patrono da equipe, que inaugurara, de fato, nova era para o time conhecido outrora como o dos “mulatinhos rosados”, mas com um futebol insistentemente classificado pela imprensa esportiva carioca como “crioulo”, “malandro” e “aguerrido”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Cleber Dias

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa em História do Lazer.

Como citar

DIAS, Cleber. Samba, futebol e jogo do bicho. Ludopédio, São Paulo, v. 67, n. 2, 2015.
Leia também:
  • 113.29

    O fim do Ministério do Esporte: boa ou má notícia?

    Cleber Dias
  • 80.5

    Esportes nos confins da civilização

    Cleber Dias
  • 63.4

    Samba e futebol no subúrbio carioca

    Cleber Dias