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Sant Andreu e os Desperdicis: os ultras mais radicais da Catalunha

Victor de Leonardo Figols 13 de novembro de 2017

No último mês muito se tem falado sobre a crise política na Espanha e a situação da Catalunha, e para quem acompanha o futebol espanhol, a situação do FC Barcelona sempre é especulada, caso a independência da Catalunha seja uma realidade. Mas, como os próprios torcedores do Espanyol costumam dizer, Catalunha é mais que um clube.

Quando escrevi o texto O futebol na Catalunha independente falei um pouco de alguns clubes catalães que poderiam ter alguma projeção maior no futebol catalão. Hoje vamos falar do Unió Esportiva Sant Andreu, um pequeno clube localizado em um bairro ao norte da cidade de Barcelona.

Escuto do UE Sant Andreu no Camp Municipal de Futbol Narcís Sala. Foto: Wikipédia.
Escuto do UE Sant Andreu no Camp Municipal de Futbol Narcís Sala. Foto: Wikipédia.

Na verdade, Sant Andreu era um munícipio vizinho à Barcelona que foi anexado a capital da Catalunha, e ganhou o status de distrito da cidade, no final do século XIX. Nessa mesma época, o futebol começava a ganhar cada vez mais praticantes e adeptos na Espanha, e na Catalunha. Os responsáveis por levar o jogo bretão para a região de Sant Andreu foram os imigrantes escoceses, que se fixaram na região para trabalhar na indústria têxtil que crescia na região.

Esses trabalhadores escoceses, que nas horas vagas praticavam o jogo com a bola nos pés, se reuniram para fundar, em 1899, o Escocès Foot-ball Club. A estreia do clube que abrigava apenas jogadores escoceses teve a sua estreia contra o FC Barcelona, que tinha sido fundado no mesmo ano, e que também abrigava vários jogadores imigrantes. O segundo jogo do Escocès FC também foi contra o FC Barcelona, em um amistoso em que o plantel foi formado pelos jogadores os escoceses do clube de Sant Andreu e os catalães do FC Català. Mas a vida do clube durou apenas um ano, devido à saída de jogadores importantes, como Geordie Girvan, o primeiro jogador do FC Barcelona a marcar um gol em jogos oficiais pelo clube.

Mesmo com um curto período de vida, Escocès FC foi um dos responsáveis em fomentar o esporte no bairro. Depois de quase uma década sem um clube na região, em 1909 nasceu o FC Z, também conhecido como Club Zeta. O nome remetia a outro clube (Club X), que havia desaparecido um ano antes, após ser incorporado pelo Espanyol. Apesar do nome, o clube passou a ser reconhecido como Andreuenc Club de Futbol, uma clara referência ao bairro Sant Andreu. Este foi o primeiro clube, que mais tarde, fundaria com outros clubes, para fundar o Unió Esportiva Sant Andreu.

Em 1911, o Andreuenc sofreu uma cisão, entre jogadores e diretoria, que fundaram o Avenç FC. Mais tarde, em 1912, o clube se uniria ao FC Barcelona, ao CF Badalona e ao Català FC para fundarem uma liga independente da Federação Catalã de Futebol. O Andreuenc, que discordava da criação de liga independente, ficou relado a segunda divisão regional.

O Avenç FC e o Andreuenc CF só teriam os seus caminhos cruzados em 1925, quando juntos, decidiram formar o Unió Esportiva Sant Andreu. Nos primeiros anos de fundação, o clube UE Sant Andreu sofreu para se fixar nas primeiras categorias do futebol da Catalunha, tendo que jogar divisões inferiores. O golpe mais duro que o clube sofreu foi durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), quando teve seu plantel reduzido a um jogador, restando apenas alguns meninos das categorias juvenis do clube.

Em 1939, passado a Guerra e com a consolidação de Francisco Franco no poder, o clube teve a sua diretoria dissolvida pela Federação Espanhola de Futebol, que nomeou novos membros para dirigir o UE Sant Andreu. Além disso, o uniforme, que representava as cores da Senyera (Bandeira da Catalunha), teve que ser substituído pelas cores da Espanha.

Entre as décadas de 1940 e 1950, o clube lutou para subir dentro da estrutura do futebol espanhol. Passou pelas divisões inferiores regionais e chegou a segunda divisão, o que deu direito de disputar, pela primeira vez a Copa del Generalísimo. Em 1952, o clube, que passava por problemas financeiros, firmou um acordo com o Espanyol, para empréstimo de jogadores e ajuda financeira, mas o contrato foi desfeito em 1953, quando o UE Sant Andreu caiu para a terceira divisão, onde permaneceria por dezesseis temporadas.

Em 1977, o clube de Sant Andreu, viu as mudanças da estrutura do futebol espanhol colocá-lo na Segunda Divisão B (ou terceira divisão). Mas, na temporada 1979-1980, o clube voltaria a jogar na Terceira Divisão (quarta divisão), após passar onze anos disputando a terceira categoria do futebol espanhol.

Em meados dos anos 1980, com poucos recursos, o UE Sant Andreu iniciou um projeto de reformulação do plantel, formando uma equipe que privilegiava jovens jogadores e veteranos. O projeto não deu muito certo, e o clube acabou em uma situação delicada na tabela e teve que disputar os playoffs para não ser rebaixado a Primeira Divisão Regional (ou quinta divisão). Mesmo se livrando do rebaixamento, o clube entrou em uma grave crise financeira.

Em 1987, o então vice-presidente do FC Barcelona, Joan Gaspart, decidiu investir economicamente no clube. Um ano depois, o UE Sant Andreu se tornou campeão da Terceira Divisão, garantindo vaga direta para a Segunda Divisão B. A escalada para a Segunda Divisão A (ou segunda divisão) foi decidida nos playoffs, onde o clube do bairro de Sant Andreu não obteve o acesso, após perder para CF Extremadura. O projeto de Gaspart teve um fim no começo dos anos 1990, quando decidiu parar de investir no clube. O resultado, foi mais um rebaixamento para Terceira Divisão, na temporada 1996-1997. E mais um rebaixamento, na temporada seguinte, para a Divisão Regional (ou Primeira Divisão da Catalunha, ou quinta divisão espanhola). A última vez que o Sant Andreu havia disputado essa divisão foi em 1947.

E reformulação veio na temporada 1998-1999, quando subiu para a Terceira Divisão. Na temporada 2004-2005, Gaspart voltou a investir no clube, em dois anos, o clube firmou contratos de marketing e para reformular a base, e comecou novamente a escalada para a Segunda Divisão A, mas o acesso não veio.

Elenco do Unió Esportiva Sant Andreu na Temporada 2009/10. Foto: Wikipédia.

Com as mudanças na legislação esportiva, em 2008, o UE Sant Andreu foi obrigado a virar uma Sociedade Anônima Desportiva (SAD), em outras palavras, o clube havia se tornado uma empresa. O acesso para a Segunda B veio finalmente na temporada 2009-2010. Entre 2010 e 2014 o clube passou por uma profunda reformulação, assumindo cada vez mais o caráter empresarial, e se distanciando das raízes de um bairro operário.

Em 2014, a empresária Dinorah Santa Ana Da Silva (ex-mulher do jogador Daniel Alves) comprou 96% das ações do clube, se tornando sócia majoritária e presidente do clube. Em um ano que esteve à frente do Sant Andreu, Dinorah buscou sanar as dívidas do clube, mas o desempenho esportivo foi um desastre, e o time caiu para a Terceira Divisão. Ao final da temporada, Dinorah vendeu as ações do clube para Manuel Camino, que havia sido presidente antes dela assumir o clube. Sob o comando de Camino, o clube ainda luta para o acesso à Segunda Divisão B.

Desperdicis: Antifascista e contra o futebol moderno

Durante os anos 1980, diversos grupos de torcedores se juntavam para ver o Sant Andreu jogar no Camp Municipal Narcís Sala. Muitos eram torcedores do FC Barcelona e do Espanyol, alguns pertenciam ao grupo Boixos Nois (ultras do FC Barcelona) que possui uma ala de extrema direita. Por outro lado, os torcedores do modesto clube do bairro de Sant Andreu, se reunião em torno de um outro grupo que se dizia a-político, os Andreuencs. Mas, em 1998, um grupo de torcedores mais politizados, e mais à esquerda, passaram a se diferenciar dos Andreuencs. Esse afastamento levou a fundação dos Desperdicis, quase dez anos depois, em 2007.

Membros da cena punk barcelonesa, membros da Ação Antifascista de Barcelona, moradores do Bairro Sant Andreu, apaixonados pelo futebol e pelo bairro compõem os ultras do UE Sant Andreu. De orientação antifascista e contra o futebol moderno, o grupo nasceu em meio ao processo de transformação do clube em Sociedade Anônima Desportiva, (conhecida como a Ley de Deporte). Daí a origem da contestação do grupo ao futebol moderno.

Desperdicis no Camp Municipal de Futbol Narcís Sala. Foto: Wikipédia.

Mas o grupo carrega outras bandeiras, que evocam a própria história do bairro e de seus primeiros clubes de futebol, isto é, uma clara referência aos operários e imigrantes que se fixaram no bairro ainda no século XIX. Declaradamente antifascista, e várias outras correntes ideológicas de esquerda: comunistas, socialistas e anarquistas são representados no grupo. Outras bandeiras também são levantadas, como a luta contra o racismo, o machismo e a homofobia, dentro e fora dos estádios. Os ultras do Sant Andreu também defendem a independência da Catalunha, tanto que no dia 1º de outubro, membros do Desperdicis estiveram nas ruas combatendo a ação policial contra a realização do referendo pela independência, e continuam nas ruas contra o avanço conservador que o país vem sofrendo.

Esses são os Desperdicis: antifascistas, independentistas e contra o futebol moderno!

Veja também:
Grups ultra: quan la política crida més que el futbol (em catalão)
Desperdicis Ultras de Sant Andreu (em espanhol)
La Banda Izquierda entrevista a Desperdicis (em espanhol)
Desperdicis no Facebook

 

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Sant Andreu e os Desperdicis: os ultras mais radicais da Catalunha. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 13, 2017.
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