Em memória de Adão Antônio Vaz de Arruda.

Meu avô esperava ser enterrado em um cemitério no bairro do Morumbi, em São Paulo. Uma vez, passeando entre os túmulos, uma senhora o abordou para destacar a calma daquele lugar, a tranquilidade que ele emanava. Educado, o velho concordou, não sem logo destacar a proximidade com o estádio do São Paulo Futebol Clube, de maneira que, uma vez lá sendo seu destino, poderia ouvir a vibração da torcida tricolor a cada gol. A interlocutora arregalou os olhos e, compungida, nada respondeu.

O avô morreu inadvertidamente em Belo Horizonte e lá foi enterrado, mas até o final da vida não deixou de ser tricolor. Houve tempo para muita alegria, por exemplo, acordar perto da meia-noite em dois dezembros seguidos, de forma a, não sem uma preventiva maracujina ingerida durante a execução dos hinos nacionais, acompanhar os dois timaços que conquistaram a Copa Intercontinental, no Japão, em 1992 e 1993. Dele ouvi muitos relatos sobre o time de devoção, desde a famosa linha defensiva formada por Ruy, Bauer e Noronha, nos anos 1950, até a qualidade que reconhecia em Raí, Cafu, Muller, Careca, Cerezo e outros craques que desfilaram com a camiseta branca ou com a listrada, ao longo dos últimos anos de sua vida. Nunca me converti, mas por causa dele sempre acompanhei o time do Morumbi com simpatia.

Minhas primeiras recordações do São Paulo têm, no entanto, outra origem. De pequeno, gostava de jogar futebol de botão com times de plástico. Um dos times que participavam de meus campeonatos – eu frequentemente manejava ambas equipes – era vermelho e representava o Tricolor. Naqueles anos finais da década de 1970, Sérgio era um dos goleiros, Terto e Muricy atacantes, Forlán atuava na lateral-direita e Pedro Rocha dominava o meio-campo. Os dois últimos eram uruguaios, haviam estado nas Copas de 1970 e de 1974. Pablo Forlán, pai do atacante Diego, melhor jogador do Mundial de 2010, quando a Celeste Olímpica ficou em quarto lugar, era a fibra e a marcação, enquanto Rocha era o craque da camisa 10. Pouco depois, vi vários daquele time em Florianópolis, por ocasião de um triangular amistoso contra Avaí e Figueirense. O treinador era Poy, o ex goleiro argentino que guardou a meta no histórico título paulista de 1957, sob o comando do húngaro Béla Guttmann e com o craque Zizinho entre os onze.

Ainda criança, dei-me conta que o São Paulo era também o time das elites, ao visitarmos o Morumbi a convite de um tio. Ele trabalhava na administração de uma fazenda e seu patrão detinha mais de uma dezena de cadeiras cativas no estádio. Na falta de convidados mais ilustres, desfrutamos da comodidade de assistir ao jogo bem instalados, o tio, meu pai, meu irmão e eu. O ex-jogador Sócrates dizia que era bom frequentar os camarotes do Morumbi, onde seu irmão brilhara e seu filho viria a ser diretor de futebol, porque a hospitalidade incluía uísque de qualidade, e não apenas as surradas cervejas disponíveis nos jogos do Corinthians.

Camisa do São Paulo FC. Foto: Tales Ebner

A admiração e o carinho com meu avô não me impediram, no entanto, de torcer pelo Meninos da Vila na final do Paulista de 1978, quando o Santos FC levantou o título. Assistimos ao jogo juntos em minhas férias escolares daquele ano. Nove anos depois o já não tão menino Juary, líder daquela geração do Alvinegro Praiano, seria o destaque do FC Porto campeão da Europa, com direito a gol na final contra o sempre poderoso Bayern de Munique. No banco, de onde o atacante saíra para decretar a vitória dos portugueses, estava também Walter Casagrande Júnior, ídolo do Corinthians, mas que atuara pelo São Paulo três anos antes.

No mesmo 1978, mas correspondendo ao campeonato brasileiro do ano anterior, assisti ao Tricolor derrotar o Atlético Mineiro, em pleno Mineirão, nos pênaltis. O Galo tinha um time muito mais interessante, com Cerezo, Marcelo, Paulo Isidoro, mas o São Paulo era comandado o estrategista Rubens Minelli, que vencera os dois brasileiros anteriores com o Internacional, e apresentava uma estrutura defensiva de respeito, ainda que às vezes violenta.

Há dois anos jantava na praia do Campeche, em Florianópolis, quando avistei Silas na mesa ao lado. Simpático, interagia com outros comensais, estes preocupados com o destino do Avaí, equipe então treinada por aquele que é, junto com Müller, o principal representante da geração dos Menudos, da metade dos anos 1980. O timaço formado por Cilinho, e campeão brasileiro de 1986 com Pepe, contava ainda com uma dupla de zaga de primeira linha, Oscar e Darío Pereyra, uruguaio que fora campeão em 1977 atuando no meio-campo. Na frente, Careca, centroavante que logo formaria o trio infernal de ataque do Napoli, com Bruno Giordano e nada menos que Diego Maradona. Tive vontade de ir até Silas de lhe parabenizar pela carreira gloriosa que inclui a participação em duas Copas, o êxito na Europa e a idolatria na Argentina. Queria, mais que tudo, agradecer-lhe pela felicidade que proporcionou a meu avô. Lamento a insistente timidez que me impediu a abordagem.

De certa forma, o São Paulo tornou-se o adversário principal do Corinthians nos últimos anos. O primeiro título nacional do Timão foi em 1990, vencendo o Tricolor, em campeonato cujo astro foi Neto. Há poucos anos, quando Rogério Ceni fez seu centésimo gol, o alvinegro era o oponente. O mesmo de quem levou muitos gols e frente ao qual, em sua vitoriosa carreira, mais perdeu do que ganhou. O goleiro foi muito bom sob a trave, venceu tudo e algo mais com o clube em que permaneceu por mais de duas décadas. Mas, impressiona que atacantes experientes e com carreira internacional tenham feito pouco mais do que quatro vezes o número de tentos de Ceni. Vi-o converter um pênalti em Florianópolis, em partida contra o Figueirense. Deu-me a impressão de que o jovem goleiro alvinegro fizera questão de saltar para o lado errado, como que a garantir que a bola entrasse, tal a facilidade com que o cobrador oficial do São Paulo o deslocou.

Zizinho, Cerezo, foram veteranos que chegaram ao São Paulo para brilhar e levantar taças. O mesmo se tentou com Rivaldo, sem grande sucesso. Em Floripa, vi o astro do Milan e do Barça, que também jogou muito no Corinthians, no Palmeiras, no La Coruña, no Carrossel Caipira do Mogi Mirim e, claro na seleção, duas vezes em ação. Na primeira, não exatamente em jogo, já que permaneceu no banco, contra o Avaí. Na segunda, contra o Figueira, entrou no segundo tempo e fez um golaço, depois de virar sobre o zagueiro na entrada da grande área. Eu estava com Detlev Claussen, Bruno de Almeida Faria e Michelle Carreirão Gonçalves, amigos, os dois primeiros aficionados por futebol, expertos no assunto. Detlev escrevera um livro sobre Béla Guttmann, eu o ajudara com as fontes nacionais sobre a presença do moderno treinador entre nós. Ver o craque em campo, pela primeira e última vez foi para nós marcante. É bom viver este tempo, apesar de tudo.

Sul da Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. São Paulo FC: recordações amistosas. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 23, 2017.
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