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São Paulo x Rio de Janeiro – A rivalidade pelos olhos paulistas

A segunda metade dos anos 1940 e o início da década de 1950 foram bem agitados no meio esportivo brasileiro. A expectativa para a realização da Copa do Mundo no país era altíssima. Grande também era rivalidade entre fluminenses e paulistas, sobretudo no que se referia à definição dos rumos do esporte nacional e na formação da nossa Seleção. Basta abrir os jornais da época para que nos sintamos em meio a um fogo cruzado. Em meio às faíscas, encontramos um dos jornais que mais incentivava essa rivalidade: o Mundo Esportivo.

Na Hemeroteca Digital Brasileira, estão disponíveis centenas de edições de 1946 a 1959, que parecem ser relativas a todo o período de vida do jornal. O Mundo Esportivo era um semanário que circulava nas sextas-feiras tanto na capital quanto no interior do estado de São Paulo. Suas páginas, majoritariamente dominadas pelo futebol, estampavam notícias, crônicas, dados estatísticos, concursos para leitores, ilustrações, reportagens de rua, colunas memorialísticas e demais produções sobre esportes em geral. O periódico procurava deixar o leitor familiarizado com o universo futebolístico a partir de análises objetivas sobre os jogos entre equipes e seleções bem como informações de bastidores. Alguns indícios apontam que o semanário teve grande circulação. A permanência de publicações constantes por mais de dez anos, anúncios publicitários que iam do produto mais banal e rotineiro a passagens aéreas, e propagandas políticas eram frequentes nas páginas do Mundo Esportivo.

Mundo Esportivo, “A Nossa opinião”, 24 jan. 1947. Foto: Reprodução.

Em 1947, o jornal passa a ter um editorial, sob o título “A nossa opinião”, quando decide bater de frente com um eminente boêmio do Rio de Janeiro. O grande sambista e locutor esportivo Ary Barroso, também vereador na capital da República pela UDN, havia ofendido os brios paulistas com declarações afirmando que a Confederação Brasileira de Desportos deveria proibir as equipes paulistas de jogarem fora do país para que os times representantes do Brasil não continuassem sendo desmoralizados. Assim, o Mundo Esportivo escolhe suas armas e revida.

Ari Barroso sendo agraciado pelo presidente da República Café Filho com a Ordem do Mérito, em 1954 ou 1955. Foto: Wikipedia.

O editorial do dia 24 de janeiro de 1947 declarava ao “homúnculo […] superficializado pela mania do samba” e “despeitado inimigo” do futebol paulista que ele havia se “esquecido lamentavelmente que o território brasileiro não se adapta mais à volta de atitudes totalitárias”. O texto continua lembrando àquele que, segundo os paulistas, era “facilmente sujeito a chiliques como qualquer mulherinha estérica” que existem diferenças entre o samba e o futebol: “se o nosso gostoso e tropicalíssimo samba exige ritmo, o futebol, por seu lado, exige compreensão, como esporte democrático das massas”[1]. Desde então, o Rio de Janeiro e os cariocas aparecem sistematicamente nos editoriais.

Rio de Janeiro e São Paulo eram os dois centros futebolísticos mais importantes do país pela relevância dos clubes e qualidade das seleções estaduais. A rivalidade estava, portanto, fundamentada num dado concreto: eram os adversários quase que naturais por conta do sistema futebolístico que se consolidou. Além disso, embates político-institucionais inflamavam a rivalidade esportiva entre os estados. A CBD estava nas mãos dos cariocas e os paulistas se viam sem espaço para decidir os rumos do futebol brasileiro. Sendo assim, nesse campo de disputa, como veremos, o Mundo Esportivo irá construir representações que marcariam as diferenças entre São Paulo e Rio de Janeiro, mobilizando imagens, valores e símbolos.

Desse modo, na dinâmica de construção das oposições regionais, a evocação do passado para a afirmação da grandeza de São Paulo é sempre ressaltada. As “proezas passadas” “manteriam viva” a nobreza do estado[2]. Os heróis e os feitos paulistas colocariam São Paulo acima das corrupções do tempo. O passado bandeirante aparecia como digno de imitação para aqueles que vislumbrassem o progresso. A sempre valorizada ascendência italiana teria contribuído para a constituição de um povo afeito ao trabalho e amante da ordem. A história constituía-se como o lugar em que a “função-nata” da “força criadora bandeirante” se revelava[3]. É de se imaginar, portanto, que o mundo dos esportes não estaria alheio a esta “província pioneira de grandes acontecimentos”[4].

Para o Mundo Esportivo, o passado é o lugar em que o presente encontra a fonte para a ação. O passado paulista é a referência do estado que “marcha para a supremacia”[5]. A História com H maiúsculo do mundo político e social se realizaria, analogamente, em território esportivo para o jornal. Esse passado de luta, honra e de “indômita fibra paulista”[6], caminhava, acompanhando as sociedades civilizadas do exterior, para o progresso. No periódico, o futebol é apresentado como um instrumento deste progresso, ajudando a “cimentá-lo”[7] em terras tropicais. O esporte caminharia junto às nações democráticas, em que o físico e o intelecto são valorizados. Por isso, seria necessário e importante para o desenvolvimento nacional que a União e os estados promovessem políticas públicas de incentivo ao futebol e ao esporte em geral, o que, na visão do jornal, não acontecia. As mentes estreitas dos políticos brasileiros seriam, portanto, um empecilho para a evolução brasileira.

“Pinga, um nome de S. Paulo para o Brasil que ainda não foi lembrado”, Mundo Esportivo, sexta-feira, 03 de fevereiro de 1950.

No Mundo Esportivo, a análise das partidas também obedecia a lógica da marcha civilizacional capitaneada por São Paulo. A linguagem utilizada para definir o estilo futebolístico mais efetivo espelha a crença na inexorabilidade do progresso pela via da razão e do planejamento. Ali estão ideias de desenvolvimento de jogo controlado, “arquitetado”, lógico, “mais prático e racional”, ágil, veloz, objetivo, vertical. A imagem da locomotiva, tão cara ao imaginário paulista, parece ressoar nessas caracterizações. Além disso, o futebol estaria marcado pela sua função prática e coletiva, frente ao “individualismo”, “impraticidade” e a “mania do dribling”[8]. Tudo isso era posto com o objetivo de São Paulo retomar a “supremacia”, a “hegemonia” do futebol brasileiro, dominado por aqueles do Rio. Na Guanabara, estaria a antípoda do futebol idealizado pelo Mundo Esportivo: o jogo do “passe lateral”, da “filigrana”, do “bonito sem efeito prático”[9].

Se a fórmula para o progresso se expressava em termos racionais, controláveis, mensuráveis, a “gente do rio” operaria por “manejos”, por “sentimentos de superioridade”, de manobras contra os “cálculos”, para “confundir planos” paulistas. Eram os cronistas irresponsáveis do Rio, que “disseminavam a discórdia” e se colocavam como “messias da crônica”[10]. Esses “maus brasileiros”, “cavalheiros místicos”, são marcados pela dimensão sobrenatural, sentimental, ardilosa[11]. Esse grande outro carioca seria a negação do homem que planeja, calcula e usa das vias racionais para solucionar os problemas. Quando, por exemplo, a seleção estadual paulista é derrotada pelo arquirrivais em março de 1950, o editorial que disserta sobre a partida assimila o resultado sob a ótica do azar e advertem que no Rio os cronistas irão ignorar o acaso e transformar o jogo dos cariocas em uma “batalha épica”[12].

Os paulistas, por sua vez, se apresentavam como ponderados e imparciais, contra a desmedida, contra as atitudes dramáticas desses cronistas que só saberiam confundir a nação. Os cariocas, “pregadores da desordem”[13], por conta desse envolvimento sentimental seriam os geradores das querelas regionais. Quando a crítica, por exemplo, é dirigida ao técnico Flavio Costa, identificado com o futebol do Rio de Janeiro, o jornal não o perdoa por ignorar as críticas e sugestões feitas:

“Infelizmente, não fomos ouvidos, e o resultado é que o rendimento de nossa equipe está irregular, e a causa não é outra senão a ausência de critério correto do técnico, que insiste em ser casmurro, anti-paulista e por isso mesmo anti-brasileiro”.[14]

Após o caminho seguido até aqui, uma pergunta pode ser levantada: como, nas páginas do Mundo Esportivo, em meio à acirrada rivalidade entre São Paulo e Rio, o Brasil aparecia? O Brasil era norte das discussões, o seu ponto de chegada, o “ideal comum”, sempre atacado pelo “bairrismo doentio e repulsivo”[15] dos cariocas. Os paulistas do Mundo Esportivo consideravam-se brasileiros e colocavam-se como defensores de interesses nacionais. Contudo, os termos em que essa identificação com a Nação é construída remontam, por exemplo, ao imaginário mobilizado na Guerra Civil de 1932: “Por S. Paulo com o Brasil, se fôr possível; por S. Paulo contra o Brasil se fôr preciso!”[16]. Um imaginário coletivo constituído por discursos que colocavam São Paulo como a já citada “locomotiva que puxa os vagões velhos e estragados da federação”[17]. Configurava-se, portanto, nas páginas do jornal Mundo Esportivo, um sistema de representação identitária que pensava São Paulo não em oposição ao Brasil, mas em relação – normalmente em um estágio superior – ao coletivo nacional. Nessa relação é que o destino de São Paulo poderia manifestar “sua missão. A missão de tornar mais grande o Brasil”[18].


Bibliografia

CAPRARO, André Mendes. Identidades imaginadas: futebol e nação na crônica esportiva brasileira do século XX. 2007. 383f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.

COUTINHO, Renato Soares. Introdução. In: ______. Um Flamengo grande, um Brasil maior: o clube de Regatas do Flamengo e a construção do imaginário político nacionalista popular (1933-1955). Rio de Janeiro: 7 letras, 2014.


Notas

[1] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 24 jan. 1947.

[2] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 14 mar. 1947.

[3] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 31 dez. 1948.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 07 mar. 1947.

[7] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 08 ago. 1947.

[8] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 30 jan. 1948.

[9] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 29 jul. 1948.

[10] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 28 fev. 1947.

[11] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 13 ago. 1948.

[12] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 24 mar. 1950.

[13] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 28 mar. 1947.

[14] Jornal Mundo Esportivo, “Erros e Falhas”, 16 jun. 1950.

[15] Jornal Mundo Esportivo, “Nossa opinião”, 28 mar. 1947.

[16] Panfleto “Tudo por São Paulo!”, 1931. In: SCHWARCZ; Lilia Moritz; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 385.

[17] ANDRADE, Mario de. In: SCHWARCZ; Lilia Moritz; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 364.

[18] Jornal Mundo Esportivo, 23 jun. 1950.

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Vinicius Garzón Tonet

Professor da Rede Estadual de Ensino, mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes - FULIA.

Como citar

TONET, Vinicius Garzon. São Paulo x Rio de Janeiro – A rivalidade pelos olhos paulistas. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 42, 2020.
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