77.1

São Victor do Horto: o futebol como metáfora religiosa

Partiu Riascos[2]… Defendeu Victor[3]!

Vale aqui uma pequena retrospectiva para o evento acima e situar os personagens e suas ações que levam à construção da narrativa simbólica do evento que desencadeará mais uma metáfora religiosa, talvez a mais marcante na história recente do futebol brasileiro. Noite de 30 de maio de 2013, no estádio Raimundo Sampaio (Independência), no bairro do Horto, em Belo Horizonte: partida entre Atlético e Tijuana (México);  disputa de vaga na semifinal da Taça Libertadores da América. A partida estava empatada em um a um, resultado que dava a classificação ao Atlético para à disputa da semifinal da Libertadores. Eis que aos 46 minutos do segundo tempo Leonardo Silva comete pênalti em Aguilar. Tensão para ambos os lados. Os mexicanos precisavam do gol para avançar na competição. Os brasileiros precisavam evitar o gol para se manterem vivos na disputa. Aos 48 do segundo tempo, Riascos coloca a bola na marca do pênalti, tendo à sua frente o goleiro Victor, abaixo das balizas. Entre eles, uma distância de 11 metros. O silêncio toma conta do estádio. Riascos então parte para o chute… Victor defende com o pé esquerdo, isolando a bola para lateral do campo. Não havia tempo para mais nada, apenas a comemoração pela classificação. Jornalistas e demais espectadores tinham a sensação de terem presenciado um “milagre”, protagonizado pelo goleiro Victor. O arqueiro era então “canonizado” como “São Victor do Horto”[1]:

https://www.youtube.com/watch?v=qv__XEfg3jw

Esporte tão ligado à questão da performance e relacionado à potência das experiências sensoriais, o futebol configura-se como um profícuo campo de estudos para as ciências humanas. O esporte se singulariza pela imprevisibilidade de resultados. Nele, a dinâmica da lógica não necessariamente prevalece, abrindo assim precedentes interessantes para a criação de teorias fantasiosas. A dimensão da relação entre religiosidade e futebol pode ser projetada aqui, tomando por base a definição do historiador inglês, Eric Hobsbawm, do jogo como a “religião laica da classe operária”.

A relação entre o místico e o mítico no futebol brasileiro ganhou destaque a partir da década de 1950, com a sua popularização e a difusão das partidas pelo rádio, em transmissões em que os narradores faziam-se os olhos dos ouvintes e, assim, criavam um cenário imaginário para seu público. Simultaneamente, as crônicas de futebol na mídia impressa também começavam transformar os personagens do futebol, como jogadores, técnicos, dirigentes e torcedores, imagens simbólicas. Neste contexto, talvez o primeiro personagem místico do futebol tenha sido criado pelo jornalista pernambucano Nelson Rodrigues, o seu “Sobrenatural de Almeida”, personagem que remetia a uma entidade mística que simbolizava os lances inexplicáveis ocorridos durante os jogos de futebol que descrevia. Isso em um país marcado pelo sincretismo religioso como o Brasil, sincretismo que é evidenciado pelas mistura de diversas matrizes religiosas de origens ameríndias, europeias, africanas, asiáticas e outras[4].

Nesse sentido, destaco a formação da sociedade brasileira, marcada profundamente por essas diversas crenças religiosas, e, nesse contexto, nada seria mais natural que essas crenças se refletissem no futebol, esporte que ao longo do século XX se tornou parte fundadora da identidade cultural brasileira. Vale aqui ressaltar que a relação entre religião e futebol não é uma exclusividade do Brasil, mas neste texto, me atento ao caso brasileiro. No caso deste texto darei destaque ao evento onde o goleiro Victor, do Clube Atlético Mineiro, protagonizou atuações de destaque durante a campanha da conquista da Taça Libertadores da América de 2013. A performance do goleiro ganhou notoriedade devido aos “milagres” protagonizados pelo jogador, que junto à torcida e referendado pela crônica esportiva ganhou a alcunha de “santo”. Para enriquecer esta análise, destacaremos três crônicas do jornalista Fred Melo Paiva dos anos 2013[5], 2014[6] e 2015[7]. Essas três crônicas ajudam a projetar a dimensão da construção mítica em torno de Victor e sua defesa, pois, se após 30 de maio de 2013 ele recebeu a alcunha de “São Victor do Horto”, nos dois anos seguintes uma espécie de procissão passou a ser feita em torno do Estádio Independência.

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São Victor do Horto. Ilustração: André Fidusi.

Segundo a uma tese dos mitólogos, a repetição é uma forma de rememoração do evento, como forma de consolidá-lo na memória; para tanto, essa repetição ganha um caráter de ritual. Com isso, mais natural que a rememoração do evento para a consolidação na memória do mito e seus feitos. Inserido nesse contexto, a narrativa proposta por Fred Melo Paiva é caracterizada por um caráter hiperbólico, particularmente em relação ao goleiro Victor, ao evento da defesa e à repercussão do mesmo. Outra questão interessante para se pensar é a contradição religiosa em que o autor se encontra após a defesa do goleiro:

E agora, o que faço eu com o meu ateísmo? Ele caiu no Horto, morreu. A contragosto, eu me rendo: Deus existe. O barbudão lá em cima, o sósia do Karl Marx – eu boto uma fé: Ele está no meio de nós. Daqui pra frente, quando alguém vier me dizer que somos poeira das estrelas, que o mundo nasceu no big bang, perguntarei: mas e aquele pênalti? E aquela perna esquerda aos 48min do segundo tempo? Foi Deus, foi tudo Deus – a perna esquerda de Deus. (PAIVA, 2013)

No texto, Fred Melo Paiva vai do ateísmo a fé, movido por uma partida de futebol; divide-se entre o torcedor e o devoto, dentro deste rito para construção do mito.

No ano seguinte,2014, a crônica de Fred Melo Paiva apresenta alguns relatos de torcedores que e de suas experiências de fé, orações, promessas e pedidos. Naquele 30 de maio de 2013, o discurso da metáfora religiosa é recorrente nas falas dos torcedores. Em 2014 já era celebrado o dia da defesa como o dia de “São Victor do Horto[8]”.

Em 2015[9], a intensidade em torno do “milagre” de “São Victor” se mostrou ampliado em relação a 2014. Chamo a atenção para o aumento da repercussão do evento, pois houve a criação de um “altar” e uma “procissão” mais ampla ao redor do estádio. Neste ponto, pode-se pensar na categorização do termo “torcedor-devoto”, quando o mesmo que torce e ao mesmo tempo celebra a fé no goleiro “santo” e na “entidade-time”. Na crônica de Fred Melo Paiva, vemos novamente a metáfora religiosa no futebol como uma influência latente:

Quando Riascos partiu pra bola, todo atleticano do mundo viu o pontinho negro na palma da mão. Foi quando Deus se manifestou pela perna esquerda de São Victor. (MELO PAIVA, 2015)

São_Victor-Campanha

Nesse contexto, as crônicas de Fred Melo Paiva podem ser analisadas por duas perspectivas. Na primeira, por meio da própria definição de metáfora, uma ferramenta linguística utilizada no cotidiano para se fazer uma comparação ou adjetivação de algo que não está expresso, mas subentendido. Em sua própria etimologia, a metáfora[10] se configura com termo usado para designar   transferência, neste caso um deslocamento do físico para o metafísico. No latim, “meta” significa “algo” e “phora” significa “sem sentido”.

Para concluir, vale projetar a metáfora religiosa no futebol auxilia na construção do discurso e na dinâmica da linguagem de torcedores e cronistas esportivos nas denominações de personagens do futebol. Por exemplo, jogadores consagrados são descritos como “ídolos”, os estádios são ditos como “templos”, as camisas e bandeiras se tornam “mantos”. No campo das ações presentes durante as partidas, temos gols improváveis como “gols espíritas”, e de forma mais latente as defesas impossíveis se tornam “milagres”. Seus autores, por sua vez, são denominados “santos”. Assim, a relação entre religião e futebol se mostra de modo despercebido por alguns, e ao mesmo tempo como delimitação de um campo simbólico — isso pelos que produz como discursos sobre o esporte, seja nas arquibancadas, seja nos veículos de mídia. Como bem destaca o historiador Hilário Franco Júnior,

Em torno de cada divindade futebolística desenvolve-se uma seita. […] Para toda seita os sacramentos não concedem graça, apenas testemunham a graça já recebida. Daí porque praticam o sacerdócio universal e o culto espontâneo. Ora, como qualquer seita, toda torcida é negativamente rotulada pelas demais. No seu interior, entretanto, o sentimento é de pertencer ao global. Seus membros reúnem-se espontaneamente no templo (estádio), onde todos tem igual função religiosa (orar pela mesma divindade, isto é, torcer pelo mesmo clube) sem que isso negue as diferenças sociológicas entre eles.[11]

Para tanto, a construção do ídolo no futebol como parte da materialidade de uma entidade imaterial, no caso intangível — o clube de futebol é essa entidade. O ato de torcer se configura assim, como um rito pertencimento ao clube no formato simbólico de uma seita. Cânticos e símbolos ajudam a construir esse imaginário religioso em torno dos clubes e seus personagens. É um ritual que se configura e fortalece o ato de torcer. Acreditar na entidade clubística cria um sentido de pertencimento a um grupo social, ajudando os pares a legitimar a sua condição.

[1] Neste texto, agradeço a minha esposa, Viviane Lopes Costa pelos comentários e sugestões. E ao, Ewerton Martins Ribeiro, pela revisão camarada e troca de ideias precisas.

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Duvier_Riascos

[3] http://www.galodigital.com.br/enciclopedia/Victor_Leandro_Bagy

[4] Para mais ver: VALENTE, Jayme. Sincretismo religioso e futebol. In: LOVISARO, Martha; NEVES, Lecy Consuelo. Futebol e sociedade: um olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2005.

[5] http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/colunistas/fred-melo-paiva/2013/06/01/se-coluna_fred_melo_interna,252333/la-canhota-de-dios.shtml

[6] http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/colunistas/fred-melo-paiva/2014/05/31/se-coluna_fred_melo_interna,285440/o-dia-de-sao-victor.shtml

[7] http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/colunistas/fred-melo-paiva/2015/05/30/se-coluna_fred_melo_interna,311448/sao-victor-nos-livrou-do-mal.shtml

[8] http://espnfc.espn.uol.com.br/atletico-mineiro/camikaze/744-30-de-maio-dia-de-sao-victor-do-horto

[9] http://terceirotempo.bol.uol.com.br/noticias/canonizado-pelos-atleticanos-sao-victor-do-horto-ganha-ate-procissao

[10] O termo metáfora original do grego «metaphorá» [μεταφορά], «transporte», “transferência, transporte para outro lugar”, composto de (meta),”entre” e (pherō), “carregar” . Em seu sentido literal, o verbo grego metaphorein seria traduzido pelo verbo latino transferire. Para mais ver; BAGNO, Marcos. Gramática de Bolso do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2013. p. 165.

[11] FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol: futebol, cultura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.p.260

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thiago Carlos Costa

Professor e Pesquisador. Doutorando em Estudos do Lazer (EEFFTO-UFMG), Mestre em Estudos Literários (UFMG), Graduado em História (PUC-MG).  Membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG e também participa do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.

Como citar

COSTA, Thiago Carlos. São Victor do Horto: o futebol como metáfora religiosa. Ludopédio, São Paulo, v. 77, n. 1, 2015.
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