Sede de honra:

(Este texto vai dedicado ao Alvito, com muita honra de ser seu orientando)

No Brasil, a ideia de propriedade como sinônimo de riqueza e pujança é tão antiga que é difícil de precisar uma data original. Um marco seriam os trabalhos do professor João Fragoso que observou com argúcia um movimento da gente do grosso trato que substituía o capital econômico do tráfico de escravos pelas honras e possibilidades de prestígio garantidas pela compra de terras. Mais do que dinheiro, terra simbolizava o poder, e, além disso, possibilitava aquisição de status e de prestígio no interior da sociedade colonial. Nenhuma palavra traduz melhor a essa aspiração do que a de honra, “o valor do indivíduo diante do grupo, a sua reputação”.

Dois séculos depois  essas mesmas imagens ecoaram no discurso de João Havelange, ex-presidente da FIFA, da Confederação Brasileira de Desportos e da Federação Brasileira de Desportos Aquáticos. Quando indagado sobre qual sua real fortuna, Havelange não respondeu com cifras, e foi categórico: “Tenho algumas propriedades”. Tenho a impressão de que essa imagem de propriedade como poder hibridiza-se à de propriedade como sinônimo de estabilidade. Em 1932, o pai de Havelange, o sr. Faustin, foi processado por um cartório da cidade do Rio de Janeiro. Comerciante, o pai de Havelange envolveu-se num negócio que não deu certo, e teve de pagar uma multa pesada ao fisco brasileiro.

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Havelange concede entrevista em 2012. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Na memória de Havelange, o episódio deixou marcas: “Meu pai me disse: um dia, o senhor vai ser um homem de negócios. Coloque todos os seus bens no nome da sua mulher. Assim, você vai sempre ter um prato de comida e um teto para a sua família”. Na sociedade brasileira, a casa – e, neste esteira, a casa própria – é uma categoria sociológica, que afasta os cidadãos dos indigentes, e, que, desta forma, os protege do universo da rua.

Para entender isso melhor, será preciso recuperar duas narrativas fundamentais. A primeira diz respeito à compra da sede da Federação de Desportos Aquáticos, nos anos 1940. Ela foi recuperada de uma entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, ainda em 1967, quando Havelange estava sendo fuzilado pelos críticos. A segunda versa sobre a compra da sede para a FIFA, em Zurique, em finais dos anos 1970. Por sua vez, esta narrativa foi recuperada de um livro, Jovem Havelange: A FIFA no Terceiro Milênio, biografia laudatória sobre os feitos de Havelange, e traduzida para mais de dez idiomas.

Em 1970, a FIFA lutava para construir uma nova sede. Construída nos anos 1950, às ordens de Jules Rimet, as instalações da sede antiga eram claramente diminutas para uma instituição que se pretendia global: era uma casa, provavelmente de três andares ou quatro andares, sem condições mínimas de receber e hospedar os dirigentes do futebol mundial. Depois da eleição vitoriosa, Havelange recebeu vários personalidades em seu apartamento na Suíça.

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Sede da FIFA durante os anos 70. Foto: Boletim da CBD (reprodução).

Uma dessas personalidades teria sido o banqueiro representante da União dos Banqueiros Suíços. Conversaram, evidentemente, sobre futebol, e o suíço convidou o brasileiro para uma singela “pelada”. Uma pelada de banqueiros, evidentemente. Havelange respondeu dizendo que iria ao Brasil naquela noite, mas que faria o possível para voltar a tempo. Três voos depois e uma conexão perdida, Havelange apareceu. O suíço ficou incrédulo quando avistou Havelange apareceu no campo no dia seguinte. Mais do que isso, brilhou: fez três gols e foi o dono do jogo. Com o tempo, Havelange seduziu os banqueiros e ficou amigo de boa parte das personalidades suíças. Seis meses depois e devidamente enturmado, protocolou o pedido: queria, afinal, dinheiro para construir uma sede nova. E conseguiu 20 milhões de CHF, com juros de 1,8 % ao ano (apenas para cobrir a inflação). A história da sede da FIFA não termina aí: envolve ainda as recusas do congresso e uma conversa curiosa com o Prefeito de Zurique. Mas, para nossos fins, esse excerto é suficiente.

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Havelange jogando futebol. Foto: Boletim da CBD (reprodução).

Voltamos ao Brasil de 1940. De novo, Havelange se vê diante da necessidade de construção de uma sede. Havelange era presidente da Federação Paulista de Natação, e precisava urgentemente de dinheiro. O que ele fez? Pegou o telefone, e ligou para duzentos amigos, pedindo para cada um valor equivalente a 500 dólares (1947). Era dinheiro. Prontamente, os amigos adotaram o pedido de Havelange, e ele então conseguiu levantar o valor. Digo ainda que não encontrei qualquer menção sobre a construção da sede da CBD. Mas é digno de nota que Havelange fez como José Maria Marin: autobatizou o prédio de Edifício João Havelange.

Há algum tempo a socióloga argentina Viviana Zelizer tem estudado a imbricação entre moral, mercado e dinheiro, e têm sido uma crítica firme da teoria dos mundos hostis. Seguindo essa teoria – defendida, em larga escala, pela teoria econômica clássica – o mercado seria por excelência o reino da impessoalidade, hostil às relações pessoais. Seguindo a teoria dos mundos hostis, relações pessoais e dinheiro, quando misturadas, representam “perigo” à normalidade, e não devem acontecer. Zelizer argumenta que tal reino de pureza é uma abstração ao mostrar que as relações econômicas são expressão e resultado de um determinado modo de vida. O dinheiro, neste sistema, não seria um produtor da impessoalidade: ao contrário, seria um signo polissêmico, produtor da diferença. A maneira como as pessoas se apropriam dele, seus múltiplos usos, por assim dizer, expressam um modus vivendi.

Zelizer certamente se interessaria pelas peripécias de Havelange. Nas suas histórias, é difícil traçar uma fronteira, uma linha demarcatória que separa o dinheiro, a moral e o mercado. Aqui, o dinheiro produz o vínculo, e não o contrário. Mais do que isso, a moral se expressa a partir da maneira como ele é utilizado, mobilizado em um determinado contexto social. Estamos aqui nas antípodas tanto da caracterização que Havelange faz sobre si mesmo como o “homem que transformou o futebol em um negócio”, “modernizador”, quanto da caricatura midiática que trata esse tipo de moral como uma “exceção”. Não seria, portanto, exagero algum dizer que a propriedade – a sede – constitui um signo, um símbolo. Esta moral nos permite entrar em uma determinada moral que gere, organiza e rege um determinado mercado. Essa moral, como tenho insistido há tempo, é regida pela honra e pela produção de uma dada masculinidade.

Sede em português, além de casa, significa “sede”, a vontade de beber água, que, muitas vezes, é transplantada a contextos esportivos. “Sede de vitória, sede de vingança” etc. A sede de Havelange era de honra.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiz Guilherme Burlamaqui

Doutorando em História Social da USP.

Como citar

ROCHA, Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto. Sede de Honra. Ludopédio, São Paulo, v. 76, n. 2, 2015.
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