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Segredos e polêmicas: a vida esportiva de Caitlyn Jenner

Wagner Xavier de Camargo 19 de setembro de 2021

Mas, eu era diferente. Ninguém sabia,

mas no fundo da minha alma, sabia que era diferente.

Então eu construí essa personagem, o Bruce!

(Caitlyn Jenner, narração em Untold, 2021)

Recentemente foi lançado na Netflix um documentário sobre Caitlyn Jenner e sua vida esportiva. Ele está dentro da série chamada Untold, que em português seria algo como “não dito” ou “não contado”, e tem a proposta de trazer fatos inusitados e pouco conhecidos do grande público por meio de produções mais curtas e documentais. É a própria Cailtyn que narra sua trajetória pregressa. Conta textualmente que sua vida esportiva não tem nada de seus méritos, mas sim dos de Bruce Jenner, alguém que ela foi e quem ela não é mais. Segundo diz, “Bruce era uma boa pessoa. Ele fez muito em sua vida e sou muito orgulhosa de suas conquistas”.

Caitlyn Jenner
Fonte: Divulgação

Caitlyn se assumiu como mulher trans oficialmente em uma entrevista à famosa jornalista Diane Sawyer, nos idos de 2015. Passou a usar seu nome social e pronomes femininos desde então. Muitos paparazzi a perseguiam, mesmo antes disso, indagando sobre sua identificação de gênero e sobre os posicionamentos da família e filhos a respeito.

Ouvindo, conversando e convivendo com pessoas trans nos últimos anos percebi que não se fala de um “antes” na vida dessas pessoas, a não ser que elas autorizem. Hoje não escreveria sobre o passado esportivo de Jenner se ela não me permitisse, digamos assim. Ao colocar luzes sobre a campanha atlética bem sucedida num vídeo-documentário, Caitlyn acaba deslocando as questões para um passado glorioso, tirando o foco das críticas que, atualmente, lhe pesam nos ombros.

Caitlyn é uma mulher estadunidense, racializada branca e de classe alta, que apoiou o ex-presidente Donald Trump, e pactua com as bases políticas conservadoras do Partido Republicano. Envolveu-se em inúmeras polêmicas, como quando defendeu a não prática de esportes por parte de meninas trans na escola, ou quando ainda insiste numa candidatura para o cargo de governadora da Califórnia, num momento em que grande parte da opinião pública já é contrária. No entanto, o documentário é sobre quem foi Bruce, decatleta medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976.

Ao longo da narrativa fílmica são bastante perceptíveis os dilemas de gênero nos fatos que Caitlyn narra. Ela foi designada como menino em seu nascimento e civilmente registrada dessa forma, porém deixa claro que desde sua tenra infância sofreu com o que chamou de “confusão” entre ser menino e sentir-se menina. De fato, apesar do gênero social instituído, sempre viu-se como mulher.

Caitlyn Jenner
Foto: Reprodução

Refere-se, assim, à disforia de gênero como elemento que sempre a acompanhou. Parte da desenvoltura no atletismo, de seu bom humor e de suas piadas com a vida eram disfarces que tentavam promover um “esquecimento” sobre o que sentia por dentro e como se via. Desde criança, inclusive, vestia-se com roupas de sua mãe e irmãs, quando estava só em casa. A trilha sonora do filme-documentário amarra um tom dramático à toda a história.

E a pressão pela vida esportiva veio desde cedo, tanto pelo fato do pai ter sido um atleta das forças armadas estadunidenses na época da II Guerra Mundial, quanto pela performance nas corridas, algo que já era nítido nas aulas de Educação Física, em Mount Kisco, sua cidade natal. Na escola sofreu muito, pois tivera diagnóstico de dislexia e vivia conflitos que não podiam ser tranquilamente colocados para pessoas adultas. Isso é contado com mais detalhes na biografia, escrita por Carla Mooney (sugerida no final deste texto).

Um dos pontos de destaque em Untold diz respeito à construção da trajetória exitosa de Jenner no decatlo, ainda nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Foi lá que, vendo a cerimônia de premiação dessa modalidade impressionou-se com Nikolai Avilov, atleta russo da modalidade, que tinha ganhado medalha de ouro no decatlo, naqueles jogos. Foi então que pensou: “É isso o que quero, exatamente naquele lugar!”. Em 1972, Jenner tinha se classificado em 10º no ranking geral daquele esporte.

Segundo Jenner, havia uma luta em si para saber o que se passava internamente, com sua orientação sexual e mesmo com sua expressão de gênero. Enquanto não resolvia, considerou que treinar para ganhar uma medalha de ouro suprimia, momentaneamente, as angústias. Talvez um ouro e a fama decorrente dele afastassem pensamentos sobre seu ser, seu sexo, ou o que fazer a respeito.

Caitlyn Jenner
Foto: Wikipédia

O documentário traz muitas cenas de filmagens antigas, feitas por câmeras caseiras pelas redes de TV da época, as quais mostram a árdua rotina de Jenner ao longo dos anos até sua glorificação no pódio do decatlo, nos Jogos de Montreal, em 1976. Isso é narrado prova a prova e pode ser apreciado no filme, roteirizado e dirigido por Cristal Moselle.

O sucesso catapultou a vida futura de Bruce à condição de celebridade. Tal direção é ainda mais potencializada quando conheceu Kim Kadarshian, uma empresária e socialite estadunidense, que se tornou sua segunda esposa nos idos de 1991. Dessa época até hoje muita coisa aconteceu, como a participação num reality show dos próprios enteados, a separação de Kim, a transição definitiva de gênero (com inúmeras cirurgias e ingestão de hormônios) e o início da “segunda vida”, como menciona, agora como Caitlyn.

Trazendo segredos e evitando polêmicas, Caitlyn se desnuda (metaforicamente falando), deixando-se conhecer a sua história e a de Bruce. O documentário vale muito ser assistido, seja por quem se interessa por atletismo e história do esporte, seja pelo conhecimento das dificuldades por que passam pessoas trans(gênero) em seus dilemas cotidianos.

Claro que o caso de Caitlyn, uma pessoa branca e de classe social favorecida, não é o exemplo da maioria excluída de pessoas pretas e pobres que desejam transicionar, particularmente se pensássemos no Brasil. Mas essa é outra discussão.

Se Caitlyn afirma que um dos grandes arrependimentos de sua vida é não ter possibilitado aos filhos mais próximos conhecer sua vida atlética pregressa como Bruce, nosso arrependimento maior será deixar esse filme-documentário ser retirado do catálogo na Netflix, sem ser antes apreciado.

Para quem quiser saber mais:

Untold: Caitlyn Jenner. Série Documental Netflix. 1h 10 min, 2021. Direção/Roteiro: Cristal Moselle.

MOONEY, Carla. Caitlyn Jenner – a biography. New York: The Rosen Publishing Book, 2017.

VAZ, Alexandre et. al. “De Bruce a Caitlyn Jenner: esporte, celebridade, transgeneridade”. Revista Gênero, v. 21, p. 167-189, 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Segredos e polêmicas: a vida esportiva de Caitlyn Jenner. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 30, 2021.
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