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Segundo Maracanazo?

Enquanto fazia um balanço da Copa das Confederações, o Editorial de um importante periódico do Rio de Janeiro terminava saudando a conclusão do processo de privatização do Maracanã. Na visão do jornalista, a privatização do estádio marcaria o fim de uma gestão “atrasada”, do Maracanã como um “cabide de empregos”, e o início de uma era de “profissionais”, privada. Era, para além da goleada contra Espanha, “outra vitória do Brasil”. A opinião do jornalista é falaciosa: nada temos a comemorar. Se o velho Maracanã abriu seus trabalhos com uma derrota em campo que deixou uma chaga profunda no futebol brasileiro; este sai perdendo fora dele. Não há dúvida: a privatização do Maracanã é uma de nossas derrotas mais doloridas, o segundo e ainda mais cruel Maracanazo, com consequências que extrapolam muito o universo futebolístico. Neste processo, o que está em jogo é um modelo de cidade que pretendemos adotar; e, por conseguinte, a cidadania que desejamos construir coletivamente.

É lícito concluir que por anos a fio a gestão pública do Maracanã foi inábil em controlar e enxugar a máquina administrativa do estádio. Desde a sua fundação, os dirigentes tem se digladiado numa disputa fratricida sobre o controle e a distribuição dos ingressos e pelos postos mais importantes na SUDERJ. Quando jovem, em minhas andanças pelo estádio, sempre voltava com uma dúvida de morte: no final do jogo, quando anunciavam a renda e o público da partida, havia um fosso gigantesco entre o público presente e o público pagante. Qualquer torcedor já deve ter se assustado em perceber que o público presente era (muito) maior do que o público pagante. Na minha ingenuidade adolescente, eu me perguntava pelo motivo de milhares de pessoas em um só jogo entrarem de graça no estádio: seriam funcionários? Teriam cadeira cativa? Seriam familiares de jogadores? Este meu sentimento de incompreensão certamente fora compartilhado pela maioria de frequentadores do Maracanã. Mais tarde, na minha dissertação de mestrado, mostrei como os ingressos eram o combustível de prestígio dos dirigentes de futebol que os distribuíam numa longa rede de relações. A luta pelo seu controle, conforme argumentei, era fratricida e feroz num jogo de status em que se aventuravam “os grandes homens do futebol brasileiro”. Dizer isso não significa decretar imediatamente que toda administração pública do Maracanã será ineficaz. Quando defendem este argumento, como fez a secretária de esportes, Márcia Lins, os próprios governantes assinam um atestado de incompetência, como se qualquer órgão estatal, estivesse destinado a dar prejuízo aos cofres públicos.

Entrada principal do estádio do Maracanã. Foto: Gabriel Fialho – Portal da Copa.

Nessa reforma, dos detalhes às estruturas, os políticos utilizaram-se do jargão “padrão-Fifa” para fazer o que bem entendessem com o estádio. Completamente reconstituído e descaracterizado, não hesitaram em passar por cima sem dó ou piedade da história do estádio. Marcas identitárias clássicas que caracterizavam o estádio foram suprimidas quase sem explicação: a rede em formato de queda (e não retilínea), o campo maior e mais largo, e a cobertura, tombada pelos órgãos do patrimônio histórico, vergonhosamente destruída. Esta guerra de símbolos tinha claros fins políticos: os construtores do Maracanã afirmavam que a era do futebol popular e lúdico, havia chegado ao fim, abrindo caminho para o futebol-mercadológico, elitizado.

No Brasil, o uso de dinheiro público em estádios não é novidade. No Rio de Janeiro, em particular, não existe estádio de futebol construído sem auxílio estatal. Da grande leva de estádios construídos anos quarenta, passando pelas Laranjeiras e São Januário nos anos vinte, todos contaram com o auxílio estatal. Nos anos setenta, a Ditadura Militar financiou estádios Brasil afora; no Estado do Rio, porém, o único construído nesta leva foi o Raulino de Oliveira, em Volta Redonda. A novidade agora não é tanto no uso ou mesmo no excesso de dinheiro público, mas na apropriação posterior deles pelas empresas e empreiteiras.

Colosso arquitetônico, o Maracanã foi construído nos cinquenta com o claro intuito de abarcar a todas as classes sociais: nele, havia lugar para quem quisesse bastando chegar. Da geral, as arquibancadas, o Maracanã foi arquitetado como o “espelho do Brasil”, lugar imaginado como aquele em que as classes sociais convivem harmonicamente, desde que organizadas hierarquicamente. Do ponto de vista estrutural, a lógica do estádio-estúdio, em que se assiste ao jogo como se “estivesse em frente à televisão”, substituiu o modelo clássico do estádio como um vetor de integração social e política. Multiplicam-se os telões, paga-se mais para se acompanhar a partida “perto de campo”, e até a cadeira é moldada como um sofá: “Nunca vi cadeira confortável como essa”, dizia um torcedor à saída de Brasil e Inglaterra.

Vista aérea do Maracanã. Foto: Portal da Copa – ME.

No século XXI, o Estado parece esquecer que, ao menos em tese, tem o dever de servir a toda população, assinando um consórcio que postula, em seu projeto de licitação, “a mudança do perfil do torcedor”. Como contrapartida aos gastos nas obras e pelo investimento, o Estado deveria ter a obrigação de exigir uma cota de ingressos populares ao consórcio que pretendesse regular o estádio. Uma das parcelas mais significativa da população, a de baixa renda, que financiou a maior parte do estádio, está deliberadamente e com a legitimidade de uma canetada, excluída dele. Triste é acompanhar o papel subserviente assumido pelos dirigentes de clubes nesta história: eles estão mais preocupados com o lucro que podem auferir do que com seus torcedores-fiéis, razão de sua existência. Nem Flamengo, nem Fluminense, colocaram em xeque este modelo de gestão; apenas reclamaram das “regras de licitação”.

A sociedade civil não pode aceitar, nem deve aceitar os fatos como a tendência natural e inelutável da história. O que está em xeque é algo muito maior do que o Maracanã. É um modelo de cidade: queremos uma cidade de direitos, que acolha a todos indiscriminadamente, não uma cidade excludente, que segregue boa parte do Maracanã de um espaço historicamente democrático. O Maracanã é do Rio de Janeiro: dos arquibaldos aos geraldinos, dos jogadores aos roupeiros, dos árbitros aos dirigentes, dos da tribuna de honra aos das cadeiras cativas. O Maracanã é nosso. Futebol (e mais que isso, esporte) não é mercadoria; é lazer. Lazer, assim como transporte, alimentação, saúde, é direito. Devemos sim coletivamente brigar pelo nosso direito de ir ao estádio de futebol; se o conquistarmos, esta sim será uma grande vitória, uma vitória da cidadania, e, por que não, do Brasil? Podemos evitar este Maracanazo fora de campo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiz Guilherme Burlamaqui

Doutorando em História Social da USP.

Como citar

ROCHA, Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto. Segundo Maracanazo?. Ludopédio, São Paulo, v. 49, n. 3, 2013.
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