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Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (1ª parte)

Leandro Marçal 7 de fevereiro de 2017

Ato 1: Um sábado qualquer

Escudo do Sport Club Sem Limites
Escudo do Sport Club Sem Limites

O sol não perdoa ninguém, brilha imperdoável sobre Guarujá. É sábado, horário de almoço, quando turistas e munícipes lotam as tão conhecidas praias locais e bronzeiam seus corpos em pleno verão. A cidade fica a cerca de 65 km da capital paulista. Pouco mais de uma hora dirigindo na serra leva os moradores de São Paulo a um dos principais destinos turísticos no litoral do estado mais rico do país.

No município com pouco mais de 313 mil habitantes, cerca de 20 mil deles moram em um bairro de caminho escondido, quase isolado. O Morrinhos está no cruzamento que leva os turistas a cortarem caminho rumo às areias das praias da cidade. Típica comunidade carente com mazelas à brasileira, ficou famosa nacionalmente quando boatos de redes sociais vitimaram uma inocente espancada até a morte.

Ignorando os problemas do local onde moram, que retratam explicitamente as periferias no Brasil, um grupo de amigos se arruma para irem a um compromisso inadiável em um dos mais de 30 campos de várzea da cidade. Todos vestem uniforme laranja e preto com o emblema do Sport Club Sem Limites no lado esquerdo do peito. Fundado em 8 de dezembro de 2013 como uma fuga de confusões em outros times de várzea e pretexto para unir amigos que se viam aos finais de semana e se espalhavam por outros clubes, o time representa uma família, embora gere suas brigas em algumas casas.

“Sempre faz muito sol aos sábados e chove aos domingos. Já quebrei o pau em casa por causa desses jogos, mas sei da importância do time para meu marido e meu filho, que é sempre muito bem tratado por todos de lá”, relata Malu Miller. Ela é esposa de Wallace Amaral, centroavante, membro dos 12 que compõem a diretoria do time e um dos pilares que compõem a base do time, ou a espinha dorsal, como dizem o presidente e o vice do clube.

João Vitor, filho de Malu e Wallace, se distrai à beira do campo.

Para quem duvida da importância que um simples clube de várzea tem para os que se dedicam a ele todos os finais de semana, a imagem de um bar com a televisão ligada na final da Liga dos Campeões da Europa entre Real Madrid e Atlético de Madrid contrasta com a multidão à beira de campo, ofuscada pela fumaça exalada por torcedores, demonstra que o valor do futebol transcende as altas cifras.

“Se o São Paulo estiver jogando uma decisão, mas o Sem Limites estiver em campo ao mesmo tempo, não tenho dúvidas que vou ao campo. Nossas partidas são únicas, o tricolor eu posso ver o resultado e as reprises em outro momento, nos noticiários. Isso aqui eu não posso perder”, comenta Douglas Lucena, vice-presidente do Sem Limites e padrinho do filho de Wallace, o atacante que leva o filho ao campo.

A equipe disputa suas partidas sempre aos sábados e compete nos dois principais campeonatos de várzea locais. O “Pé no Chão” é o principal deles, disputado entre março e outubro, com fase de grupos e um posterior mata-mata, uma espécie de Campeonato Brasileiro da ilha, como eles chamam a cidade praiana. Tem até primeira e segunda divisão. Já a Copa Guarujá é eliminatória do começo ao fim, trazendo a essência da decisão a rodada. Sempre jogando descalços, sobre os campos guarujaenses. Apenas as chuvas adiam partidas.

“Ninguém gosta de ficar um único final de semana sem jogar. Tanto é que mal temos espaço no calendário, todo sábado tem jogo. E se não é de campeonato, eles se organizam para disputar amistosos ou festivais”, comenta Alexandre Alves, presidente da Liga Guarujaense de Futebol Pé no Chão desde 2013. No mês passado, uma reunião com as diretorias de todos os clubes definiu regulamentos das competições que começam em 2017. As que se iniciaram no ano passado ainda terão as finais disputadas devido a adiamentos em decorrência das chuvas, que inviabilizam partidas quando a lama dá suas caras no solo onde bola deveria rolar.

E se engana quem pensa que a dedicação quase religiosa aos campos de várzea se resume aos jogadores e outros personagens diretamente envolvidos no desempenho dos times. O Sem Limites não vive apenas dos 12 apóstolos da diretoria que cortejam o clube religiosamente, como um fiel perante o altar. A torcida é protagonista nos três anos de história laranja e preta.

“Acompanho o time desde sua fundação e já perdi até um emprego quando disputamos uma final. Sou corintiano roxo, mas dou mais importância à várzea, pois vivo isso”, confessa Thierri Aguiar. Aos 16 anos, ele aspira entrar no mundo da música como MC ou rapper, típico sonho suburbano entre tantos outros, a maioria almejando ser jogador de futebol profissional. Foi ele, inclusive, quem compôs e gravou em ritmo de funk o hino do time ao qual dedica suas tardes de sábado quando não está trabalhando.

Time se reúne à beira do campo antes de mais uma partida.
Time se reúne à beira do campo antes de mais uma partida

Dentro de campo, à espera de sua vez, o elenco do Sem Limites vai chegando de moto, de carro, a pé, de carona. Boa parte vinda do mesmo local, o Morrinhos. A reunião dos jogadores é complementada pelos que chegam de outros bairros da cidade, quase exclusivamente vindos de bairros de periferia. O mundo da bola os apresentou e germinou amizades, que desaguaram em um clube.

Há até os casos de quem teve espaço em times profissionais, como Rafael Santos. “Gosto muito da cumplicidade do time e do fato dos jogos aos sábados serem um complemento à nossa amizade fora de campo. Grande parte do ódio dos rivais ao Sem Limites vem do entrosamento que vai além do futebol”.

Com 22 anos e passagem por categorias de base e até profissional como o Cianorte e ABC de Natal, do qual saiu após lesão e desacerto com empresários. Hoje é casado e trabalha em um emprego como o dos brasileiros comuns,  que não se sustentam da bola, como ele fez em outros tempos.

“Cresci vendo meus tios e meu pai jogando aqui na várzea, passei pelo profissional, vivi isso, o futebol. Quando acordo em um sábado de jogo, já me sinto diferente e a ansiedade vem forte. É um lazer que levo a sério, mas não tanto quanto em outra época”, complementa.

Camila Santos, a esposa que Rafael trouxe do Rio Grande do Norte após um início de relacionamento quando ainda jogava na região Nordeste do país, ratifica a descrição de um dia típico de jogo do Sem Limites.

“É um dia de chatice, palavrões e muito nervosismo em casa. Ele só vai se acalmar quando voltar para casa, isso quando o time ganha”, comenta em uma fala temperada com risos e sotaque de quem não esquece a terra natal.

Brenda Braga, esposa do DJ Japa, como é conhecido Michael Douglas, um dos goleiros que compõem o elenco do Sem Limites, ratifica a unânime queixa das esposas que veem os maridos deixaram a casa rumo aos campos no fim de semana.

“Se dependesse de mim ele não iria jogar bola, mas não tenho como impedir, mesmo reclamando bastante”, comenta.

O campo vai enchendo cada vez mais até às 15h30, tradicional horário dos jogos. Água, gelo e outros apetrechos são a estrutura possível que os diretores proporcionam ao elenco depois de se programarem em reuniões durante a semana.

Reclamações há de monte: desde a desorganização e falta de planejamento até a não escalação por quem dedica ao menos um dia da semana para muito mais do que um simulacro de futebol profissional para quem ali divide a bola com tanta ou mais paixão do que os profissionais remunerados para chutarem uma bola com exibição na TV.

“Jogo no Sem Limites desde sua fundação e nunca pensei em entrar nos campos da várzea por outro time até o fim do ano passado”, comenta Bruno Moromizato, que faz as vezes de atacante, meia e alicerce do elenco.

Bruno foi o autor do gol do até então único título da curta história do Sem Limites: a série B do Pé no Chão em 2015. Sua história na equipe foi levada em consideração diante de reclamações quanto aos rumos tomados e ele foi promovido ao seleto grupo dos diretores da equipe.

Porque as propostas, saídas e “contratações” de jogadores agitam a várzea durante todo o ano, da mesma forma que o fim da temporada do futebol profissional enche de especulações os principais portais e noticiários do ramo. E tudo isso é levado muito mais a sério do que pensa os que veem de fora.

Na representação em que o palco é o futebol de várzea e o Sem Limites o protagonista, as cortinas descem para que nos próximo ato sua história e a dos que a escrevem seja encenado na vida real da periferia.

Autor do gol do primeiro título do Sem Limites, Bruno Moromizato segura a taça
Autor do gol do primeiro título do Sem Limites, Bruno Moromizato segura a taça

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (1ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 4, 2017.
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