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Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (2ª parte)

Leandro Marçal 14 de fevereiro de 2017

Ato 2: Histórias da várzea [Leia o Ato 1: um sábado qualquer]

Bandeira do Sem Limites hasteada em um campo de várzea do Guarujá
Bandeira do Sem Limites hasteada em um campo de várzea do Guarujá

Foi um abraço entre o auxiliar técnico e o autor do gol da final que marcou a retina de quem viu uma das tantas fotos estampadas em postagens nos perfis de redes sociais do elenco do Sem Limites no fim de 2015. Em dezembro daquele ano, o time venceu a série B do Pé no Chão e garantiu sua vaga na elite do principal campeonato de várzea de Guarujá.

O gol sofrido de Bruno Moromizato contra a equipe do Savoy garantiu o primeiro título dos laranja e preto.

O atacante Bruno Moromiazato abraça Douglas Lucena, vice-presidente do time
O atacante Bruno Moromiazato abraça Douglas Lucena, vice-presidente do time

Desde a fundação do clube em 2013, aquela havia sido a primeira participação da equipe em um campeonato oficial. Para que fosse possível fechar o número de participantes nas séries de elite e acesso, o time participou de uma eliminatória contra a equipe do Santa Rosa e foi eliminada, o que gerou apelidos que remetiam à disputa da segunda divisão no bairro onde o clube e o futebol respiram, sendo tema recorrente nas rodas de conversa nos bares e festas.

“Essa molecada passou por todos os times daqui até se juntarem para a criação do Sem Limites. Mas chegaram com muita marra pensando que iam atropelar todo mundo e tiveram que ficar na deles quando disputaram a série B”, provoca Wellison “Nem”, entusiasta do Lado a Lado F.C., principal rival do Sem Limites na Liga e dentro do Morrinhos. No confronto entre os arqui-inimigos dentro de campo no Pé no Chão de 2016, o time de Nem levou a melhor e desfrutou do domínio das provocações ao vencer nos pênaltis depois de empatar o jogo no último minuto.

O surgimento do Sport Club Sem Limites nos leva até agosto de 2013, quando na época os incentivadores do time laranja e preto se espalhavam acompanhando e participando do andamento de diversas agremiações da várzea, especialmente o Predinhos Futebol Clube, mais um dos tantos existentes no Morrinhos. Segundo Gustavo Silva, presidente do Sem Limites desde sua fundação, o embrião da ideia que deu à luz mais um dos mais de 12 clubes do bairro onde nasceu e se criou foi um desentendimento envolvendo compra de camisas.

“A base do nosso time era do Predinhos FC, tanto jogadores quanto diretoria, embora outros amigos estivessem espalhados por aí. Foi quando um diretor deles disse que não teríamos direito a uma camisa nova que mandaram fazer. Ele ainda sugeriu que se estivéssemos insatisfeitos, poderíamos abandonar o clube. Daí, me reuni com o Jorge Thiago (atual tesoureiro do Sem Limites) para criarmos nosso próprio time. Juntamos todos que formariam nossos primeiros dias de Sem Limites, expusemos nossa ideia e alguns acharam ser muita pretensão, mas chegamos aqui”, comenta.

Em alguma “dobra”, como eles se referem às noitadas regadas a cerveja, cigarros, catuaba e vodca, foi definido o nome do time e as cores diferentes dos demais clubes: laranja e preto. A data de fundação, 8 de dezembro de 2013, remete ao dia em que precisaram ir a Praia Grande, também na Baixada Santista, para buscar os uniformes do clube recém-nascido. Dali até disputarem a classificatória que os levou à série B, foram amistosos e festivais que encorparam um dos times que é sempre um forte candidato aos títulos que disputa.

“Todos os jogadores do Sem Limites vieram de outras equipes fortes, dessas que sempre disputam como favoritas. Por isso, mesmo com pouco tempo, é sempre um time a ser observado. Eles ganharam a segunda divisão em seu primeiro ano, quando entraram em campo na série A vieram bastante moral”, ressalta o presidente da Liga Guarujaense de Futebol Pé no Chão, Alexandre Alves.

Quando eles venceram a Série B, esta contava com 14 clubes, enquanto a categoria principal dispunha de 24 participantes. No ano em que estavam na elite da várzea de sua ilha, a Série A permaneceu com o mesmo número de agremiações e a divisão de acesso aumentou para 18 times. Para 2017, já são mais de 50 clubes inscritos entre as duas séries.

Para tentar modernizar o que é levado a sério pelos que tem um programa reservado nos campos aos finais de semana, Alexandre foi atrás de um aplicativo acessado via celular pelos varzeanos, no qual tabelas, artilheiros, cartões e súmulas são disponibilizados pelos que acompanham suas competições.

Tudo isso apenas dos que jogam seu futebol de várzea descalços aos sábados. Nos domingos, ainda há os torneios de várzea calçados, dos quais o Sem Limites não participa.

Foi onde David Silva comandou alguns clubes e ganhou títulos em algumas ocasiões. Aos 28 anos, ele esbanja um tipo físico bastante acima do peso, semelhante ao do treinador Vicente Feola, campeão da Copa de 1958 com a Seleção Brasileira. Ex-goleiro que não foi adiante na carreira de jogador, é um dos diretores e técnico da agremiação que ostenta as cores laranja e preta.

“Há jogadores que não aceitam ficar no banco, outros me criticam por já terem atuado no futebol profissional. Eu procuro levar na conversa. Eles têm o ego grande, mas o treinador também…”, analisa. De tão fã do goleiro Fábio Costa, o controverso treinador ostenta o sobrenome do arqueiro em suas redes sociais.

Na rotina de viver o clube, estão presentes os rolês de sexta-feira, nos quais é inútil avisar aos jogadores para que se preservem visando a um bom desempenho na partida do dia seguinte. É corriqueiro ver olheiras escurecendo os olhos de quem não dormiu na noite anterior, mas faz questão de correr atrás da bola mesmo assim.

No sábado de jogo, começam a pipocar mensagens nos grupos de WhatsApp – há um destinado para a comissão técnica e outro aberto para os torcedores – com pedidos de caronas, confirmação dos jogos, com quem estão as camisas e outros acertos até a entrada em campo.

O pós-jogo costuma contar com churrasco e bebidas alcóolicas, como é tradicional em qualquer evento que reúna jovens da faixa etária típica dos componentes do Sem Limites – mais de 80% do elenco tem entre 20 e 30 anos. Até o ano passado, inclusive, a diretoria mantinha uma espécie de boteco que funcionava como a sede e ponto de encontro.

O “Corre Certo” fechava a rua de terra às sextas-feiras e sábados com funk e pagode no Morrinhos 3. O bairro tem em canais que cruzam transversalmente sua principal avenida as divisões, nas quais quanto maior o número, também crescem as mazelas, ausências de saneamento básico e outros recursos que regiões periféricas e de favelas veem apenas nas televisões de tela plana em casas pequenas e com rebocos expostos.

Ao percorrer o local perigoso quando desconhecido, o visitante também se depara com construções invadindo locais proibidos, ruas fechadas com bailes funk e som alto a qualquer hora da madrugada e vê o Brasil real como uma fratura exposta a olhos nus.

Além das tentativas de profissionalização no esporte mais praticado por essas bandas, o futebol de várzea é uma válvula de escape natural, para muitos, um dos poucos momentos em que a vida periférica pode ser menos sofrida. Andando por lá, vê-se mais pessoas ostentando camisas de times de várzea do bairro (Sem Limites, Lado a Lado, Scorpions, Novo Stylo, Ativa, Esquina da Fumaça, dentre outros), do que de equipes gigantes, dessas que habitam nosso imaginário coletivo de escalações históricas do cenário nacional ou do futebol europeu.

Elenco, comissão e torcedores do S. C. Sem Limites perfilados antes de final disputada em 2015
Elenco, comissão e torcedores do S. C. Sem Limites perfilados antes de final disputada em 2015

“Sou santista de coração, mas o Sem Limites é minha vida”, declara Aleph Bruno. O lateral e diretor do time foi o criador do nome que bem representa o comportamento do grupo que vive como se não houvesse amanhã. Em meados do ano passado, o jovem de 22 anos chegou a fazer testes em uma agência que prometia levá-lo para as ligas norte-americanas de futebol. Sem dinheiro para investimento inicial, o jogador que passou por categorias de base do São Caetano, Associação Desportiva Guarujá e ABC-RN, optou por continuar trabalhando em uma empresa no Porto de Santos e segue no futebol como atleta de várzea em outros campos.

Mais um retrato de quem tentou correr atrás de seu sonho, mas se viu às voltas com o destino cruel de um meio em que a justiça pelo talento puro nem sempre é levada em consideração. Perceber que já não há mais chances de uma profissionalização leva muitos deles ao atraso no mercado profissional, já que a qualificação pelos estudos não foi prioridade em meio a alojamentos, testes e campeonatos Brasil afora.

Quando as cortinas voltarem a se levantar para o último ato, o amor ao clube de várzea, o mercado de “contratações”, as queixas de ex-jogadores e as perspectivas de um singelo clube em uma cidade litorânea tomarão conta do palco que prova que também há arte no futebol dos rincões do Brasil.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (2ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 11, 2017.
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