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Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (parte final)

Leandro Marçal 21 de fevereiro de 2017

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Na várzea, não há restrições para a fumaça em campo
Na várzea, não há restrições para a fumaça em campo

Se o futebol alterna seus momentos entre o ópio do povo e o resgate de nossas raízes, é vendo o Sport Club Sem Limites em campo e em seu cotidiano que podemos entender um pouco dos motivos que levam o esporte a despertar paixões que nos deixam insanos e nos fazem perder a razão e as estribeiras.

Sem que muitos dos que acompanham o time tivessem a mínima noção do que representou a Holanda de Cruyff, é o mesmo laranja que diferencia o time das hashtags presentes em seu uniforme nos campos de várzea do Guarujá. Isso representa mais que um clube até mesmo para quem não defende mais suas cores.

“Estive com eles desde o início e me afastei por situações extracampo. Infelizmente, a inveja e ciúmes de algumas pessoas interferiram no desempenho dentro de campo e preferi me afastar, mas ainda torço muito por eles”, revela Vinicius dos Santos, que desde meados de 2016 não faz parte do time. Com 31 anos, era um dos mais velhos do elenco e sua saída foi mais um assunto a monopolizar as conversas fora de campo, temperada com alfinetadas em redes sociais.

A convivência em grupos também é pontuada por desentendimentos como o de Vinicius com a comissão técnica. E se o treinador já disse que a vaidade é difícil de controlar nele e no restante do time, Ikaro Vinícius prova que a presença dentro de campo é tão importante para quem joga quanto o convívio fraternal fora dele.

“Eu saí do Sem Limites porque gosto de fazer parte do elenco, mas gosto de jogar também. Se vejo que tenho condições de ter oportunidades em outros times aqui da várzea, nada mais justo do que buscar meu melhor. Eu queria jogar mais, por isso saí”, diz, com linguajar típico de boleiro.

Ressentimentos são negados por todas as partes, ainda que afirmar a inexistência de cicatrizes lembradas por quem saiu seja difícil ao conversar com a comissão, jogadores e treinador. O que acontece dentro de campo deve morrer lá dentro, sem interferir nos relacionamentos interpessoais fora dele.

“Algumas pessoas deveriam mudar o pensamento nessa parte de levar o clube adiante, mas sou amigo de todos, a rivalidade se resume ao campo. Fora isso, do lado de fora não muda nada, mesmo sendo adversários”, afirma André Silva, membro do Predinhos F.C., clube que deu o pontapé inicial e involuntário para o surgimento do Sem Limites.

Com críticas, provocações dos adversários e tudo o mais que permeia o mundo particular do futebol de várzea no Guarujá, o Sem Limites segue com torcedores símbolos, tais como Max Roberto, um maluco que segue à beira do campo gritando com juízes, adversários e quem mais o provocar. Outro que é presença marcante a cada sábado é Marcus Vinícius, que chega a campo sem camisa estampando uma tatuagem com mensagem religiosa no peito e amarrando a camisa na cabeça, de forma exótica.

“Eu vivo isso. O Sem Limites representa tudo para mim: amizade, coletividade… é como uma segunda família. Um sábado não é normal aos outros quando tem jogo e vou ao campo”, confessa. Nos grupos de WhatsApp, o torcedor não perde a chance de, sempre que possível, postular uma vaga como jogador da equipe. Sempre é rechaçado.

Marcus Vinícius é um dos torcedores mais emocionados do Sem Limites
Marcus Vinícius é um dos torcedores mais emocionados do Sem Limites

Programar, se reunir, planejar. Para 2017, a diretoria se renovou: dentre os 12 componentes, seis estão entre os principais jogadores do elenco, um é o treinador e o vice-presidente seu auxiliar técnico.

“Para os que realmente gostam de futebol e ele corre nas veias, estar aqui é diferente de tudo. O convívio que tive no meio profissional é inigualável. Muitos podem achar que várzea não é nada, uma perda de tempo, mas só de representar aquela bandeira e o time, mexe com a gente. Não tem como não fazer o melhor para que nossa equipe esteja sempre lá em cima, disputando títulos”, ressalta David Silva.

Entre organizadores, jogadores, torcedores, rivais e comissão técnica do Sem Limites ouvidos pela reportagem, houve uma unanimidade: a várzea é mais importante para todos eles do que acompanhar seus times de infância, ainda que estes entrem em campo por grandes torneios como Libertadores ou Brasileiro ao mesmo tempo em que as fumaças coloridas enfeitam os campos do Guarujá como já não é mais permitido nos estádios do futebol profissional.

Todos se sentem jogadores de fato e não é um detalhe capitalista como a falta de remuneração ou de um contrato de grandes cifras e exposição na mídia que lhes pode tirar esse status. Eles vivem um mundo completamente particular e acreditam piamente em sua causa, não se sentem perdendo tempo ou quixotescos da bola.

“No mundo do futebol eu já vi e vivi muitas coisas erradas nos bastidores. Já dormi em cama de pedra em alojamentos e acabei me desiludindo com essa carreira, preferi estudar e procurar outras formas de ganhar a vida”, observa Bruno Moromizato, o japonês artilheiro.

E não há vergonha em cobrar uma camisa nova ou usar o uniforme do Sem Limites no barzinho, na balada. É como se o sangue dos que ajudam a levar o time para frente fosse mais laranja do que vermelho.

Até março, quando começa o Pé no Chão 2017, o time vai entrar em campo para disputar amistosos, festivais e arregimentar novos reforços na busca por seu primeiro título na primeira divisão da várzea local.

“É impensável eu me ver longe desse time”, revela Aleph Bruno. “A responsabilidade é grande por ser um dos diretores e também jogador, mas não consigo ficar sem isso”, diz no mesmo tom de quem revela um vício em drogas. Tal fala poderia ser atribuída a todos que ajudaram no nascimento do clube e dedicam muitas horas semanais para a caminhada do time.

Como em uma peça de teatro retratando a realidade como arte, há o momento em que tudo chega ao fim e voltam todos a seus lares para lidar com a crueldade da rotina. Quem é capaz de julgar ou explicar racionalmente aqueles que representam o sonho de milhões que tentam viver de um esporte bonito, ingrato, surreal e injusto como é a vida?

Nós, aqui da plateia à beira do campo, haveremos de nos levantar e aplaudir a cada um dos atores que compõem esse teatro da vida real, a cada vez que a cortina se abaixa e mais um ato de ode ao futebol raiz preenche muito mais do que cotas de televisão e contas bancárias milionárias.

Porque os sonhos só se tornam possíveis quando são sem limites.

Gustavo Silva, presidente do clube, brinca com o filho enquanto o time se prepara para outro jogo
Gustavo Silva, presidente do clube, brinca com o filho enquanto o time se prepara para outro jogo
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Sem Limites para sonhar: a várzea como palco de um futebol raiz (parte final). Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 18, 2017.
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