148.30

Sensibilidade é sempre o ponto de partida: o recomeço e a volta por cima da Chapecoense

Giulia Piazzi 19 de outubro de 2021

Falar ou escrever sobre a Chape é, de certa forma, pesado. Ler e ouvir a respeito, idem. É preciso ter tato, prudência, ausentar-se de envolvimento. Impossível para quem não consegue controlar as emoções quando o assunto é futebol, uma paixão nacional tão forte. Alguém assim dificilmente segura as lágrimas ao tratar do ocorrido naquele 29 de novembro de 2016, na Colômbia.

Bem, esse é o meu caso. Lembro-me de quando publiquei outro texto aqui no Ludopédio, um ano após a tragédia, e, do início ao fim, estive com os olhos marejados. Só que é preciso considerar que a Associação Chapecoense de Futebol já existia e, sim, sempre foi maior do que o que aconteceu naquela noite. Estava no auge de sua história, é claro, mas que, desde 1973, vinha sendo construída e trilhada a passos muito largos. Sempre somos convidados a imaginar o que teria sido daquela final de Copa Sul-Americana se não houvesse uma irresponsável LaMia pelo caminho. Mas “tudo bem”.

Agora, alguns anos depois, deparo-me com um livro que, diferente dos da lista anterior que divulguei aqui, apresenta a leveza necessária para tratar do tema e prende em cada palavra, relatando momentos da época e de todo um processo – transitório e ao mesmo tempo eterno – e trazendo muitas curiosidades dos bastidores: Chapecoense, o milagre do recomeço: a trajetória da Chapecoense em 2017, escrito pelo jornalista, conhecido dos torcedores mineiros, Pedro Rocha. O prefácio, de ninguém mais ninguém menos que Galvão Bueno, já mostra a que veio a obra. E bem, amigos, a Agência número um acertou em cheio na publicação, com um bonito projeto gráfico e fotografias de grande qualidade – e disso o editor e fotógrafo Thiago Soraggi, que ajudou a dar vida ao livro, entende bem.

Chapecoense, o milagre do recomeço São 188 páginas, divididas em 14 pequenos capítulos. Arrisco dizer que é muito pouco para tantas histórias, porque o conteúdo em si é emocionalmente gigantesco. Duvido que o Pedro não tenha desejado publicar uma trilogia com tudo o que viveu em Chapecó durante o tempo em que esteve por lá vivendo o dia a dia da instituição e cobrindo cada detalhe dentro e fora do clube, de maneira diferenciada. Até porque a volta por cima da Chape se tornou parte do amadurecimento pessoal e profissional do tão jovem jornalista enviado à cidade para essa cobertura na época.

Na situação mais triste da história do futebol mundial, o que deve ter sido para o experiente Galvão Bueno o desafio de “narrar” uma cerimônia fúnebre? Toda aquela chuva em Chapecó durante o processo de repatriação dos corpos e o velório coletivo representava muito mais do que o nosso choro caindo do céu. Segundo Galvão, de fato foi um dos momentos mais difíceis e de maior emoção de sua vida. E das nossas, também.

Tomei a liberdade de intitular este texto com uma frase do Cahê Mota, dita já na “Prorrogação” da obra, depois dos relatos de Pedro, e que é capaz de resumir tudo: “Sensibilidade é sempre o ponto de partida”. Para quem acompanhou de perto o período de reconstrução e reestruturação do clube, sensibilidade – e, por consequência, respeito – era o mínimo que se podia ter perante o convívio com as famílias, os torcedores e os funcionários. Galvão, Pedro, Cahê, nesse sentido, são exemplos a serem seguidos por todo o profissionalismo exigido para aquele momento.

O livro busca de forma cuidadosa construir em nós a empatia que talvez não tivéssemos tido em muitos momentos. Por exemplo, é possível refletir sobre o quanto deve ter sido árduo para jogadores e comissão técnica, sob os comandos iniciais de Vagner Mancini, estar ali em um cenário desolador para recomeçar um trabalho quase do zero, já que dar continuidade infelizmente não era possível. As cobranças não eram de uma torcida com sede de títulos, mas sentimentalmente engasgada.

Acho que ninguém que está lendo este texto saberia o que responder, no lugar de Wellington Paulista, a um garoto que lhe fez o seguinte pedido: “(…) traz a felicidade pra gente de volta. Só isso que te peço”. Pedro tem razão, essa frase corta o coração como uma navalha.

No menor deslize, qualquer opinião ou declaração para o caso pode se tornar polêmica, como foi o comentário inconveniente de Marquinhos: com o vice-campeonato catarinense em 2017, pelo Avaí, após derrota para a Chapecoense, o meia disse que era preciso “parar de achar que a Chape é coitadinha”. Independentemente do contexto da declaração, na verdade o Verdão do Oeste nunca se colocou nesse papel, porque poderia até mesmo ter se aproveitado da boa vontade e das inúmeras ajudas oferecidas e vindas do mundo todo, mas preferiu se reerguer da mesma maneira que construiu sua bonita trajetória e ser fiel aos seus princípios. E quanto ao comentário de Marquinhos, sobrou para o Pedro Rocha, que em transmissão de outro jogo foi explicar o porquê das vaias ao jogador quando ele tocava na bola e, ao final, foi procurado em campo por Marquinhos, descontrolado, que afirmou que o jornalista estava mentindo e exigiu respeito. Paciência.

Bom, ainda que você não goste da Chapecoense enquanto clube de futebol, em especial se seu time for rival do “Furacão do Oeste”, é preciso reconhecer o que ela representa fora dos gramados hoje, no quesito superação e esperança. E o quão maior uma tragédia se tornaria se não houvesse a superação? Aliás, essas palavras, “tragédia” e “superação”, já estão saturadas no vocabulário da Chapecoense e de todos nós quando fazemos menção à fatídica noite do acidente.

Chapecoense
Foto: reprodução

O acidente nos dói até os dias atuais. Contudo, extrair coisas boas depois de um intenso sofrimento, marcado na alma, é algo muito valioso. E, muitas vezes, não estamos preparados para papos como esse, de que existem ensinamentos, evoluções e missões cumpridas por trás de cada acontecimento em nossas vidas. Não escolhemos, e a única opção é recomeçar – algo sempre muito difícil, mas importante e fundamental. E completo ainda essa ideia com mais uma frase do Cahê: “(…) viver o dia a dia não cura a dor, mas ensina um jeito de sorrir mesmo convivendo com ela”.

Ah, sobre a obra, é claro que eu recomendo a leitura, mesmo porque eu não posso contar tudo aqui. Foi um dos melhores presentes que ganhei neste ano pandêmico, em que minhas principais companhias têm sido as palavras, os textos, os livros. No site da Agência número um, você encontra o seu exemplar e já tem uma dica de presente para os seus amigos que gostam de futebol, “causos” e boa prosa.

Vamo, vamo, Chapê!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Giulia Piazzi

É revisora de textos com muito amor pela profissão e se tornou árbitra-assistente após tanto utilizar o livro de regras como objeto de estudos acadêmicos. Especialista em Comunicação Digital e Redes Sociais (UNA), Mestra em Estudos de Linguagens e Bacharela em Letras - Tecnologias de Edição (CEFET-MG). Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG, e do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial (GIECE), do CEFET-MG.

Como citar

PIAZZI, Giulia. Sensibilidade é sempre o ponto de partida: o recomeço e a volta por cima da Chapecoense. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 30, 2021.
Leia também:
  • 153.29

    Chape: admiração, desapontamento (1977-2022)

    Alexandre Fernandez Vaz
  • 143.31

    Chapecoense: uma incrível história de superação

    Lucas Andrade, Raíssa Duarte
  • 101.29

    Os livros sobre a Chapecoense lançados após a tragédia

    Giulia Piazzi