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Ser Flamengo: uma questão de número… uma questão de forma

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 9 de setembro de 2021

No Brasil, quando o tema é futebol, nada parece ser muito consensual. No entanto, que o Flamengo sempre liderou as estatísticas de maior torcida do Brasil, isso sim parece ser indiscutível (com exceção ao desconhecimento de algum corintiano desavisado). Dessa tradição surgem termos como “O mais querido”, “Somos uma nação”, “Nação rubro-negra”, “Somos 40 milhões”, entre outros. Não por acaso, Nelson Rodrigues escreveu:

Se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro”.

Em termos numéricos, sempre fomos os maiores! Vamos a algumas evidências dessa afirmativa:

O estádio do Maracanã foi durante mais de setenta anos, e ainda continua sendo, o maior estádio de futebol do Brasil e do mundo. Dito isso, podemos arriscar e dizer que seus recordes de público são, por uma questão de lógica, também recordes mundiais. No seu livro “O vermelho e o negro: pequena grande história do Flamengo”, Ruy Castro (2012, p. 11) anuncia que, “dos dez maiores públicos na história do Maracanã, sete envolveram jogos do Flamengo — os outros três, da Seleção Brasileira”. E ainda, acrescenta o autor:

“Dos dez maiores públicos de partidas entre clubes no Maracanã, os dez foram em jogos do Flamengo. (Esses números nunca serão batidos, porque o Maracanã sofreu modificações que o fizeram ‘encolher’ e não se cogita construir, em nenhuma parte do mundo, um estádio para 180 mil pessoas” (CASTRO, 2012, p. 11).

Maracanã
Estádio Maracanã, em 1976. Foto Wikipedia

O maior público num jogo entre clubes no Brasil aconteceu na final do campeonato carioca de 1963 e, em um dos lados, estava o Flamengo. No Maracanã, 194.603[1] torcedores assistiram a um lendário e eletrizante Fla x Flu. Com um ponto a mais no campeonato, o Flamengo jogava pelo empate e, ao final dos noventa minutos, sagrou-se campeão diante do placar de “0 x 0”.

Em partidas válidas pelo campeonato brasileiro, o maior público também é de um jogo do Flamengo em partida realizada, igualmente, no Maracanã. Foi a final do campeonato brasileiro de 1983, quando diante de 155.523 pagantes, o Flamengo venceu o Santos pelo placar de “3 x 0”, sendo reconhecido como campeão daquele ano.

Diante desses dados queremos convidar você a refletir sobre o número. Em seu sentido etimológico, a palavra número provém da tradução latina de aritmética, ou seja, a negação do termo ritmo – ou arrítmico. Mas o que significa ritmo? E o que é algo arrítmico ou aritmético?

Para Renato Izidoro da Silva (2020), as dificuldades de se compreender o termo “ritmo” aludem a um processo histórico de inversões de sentido pelos significados do conceito de forma. Ou seja, ritmo é o que dá forma, logo, esse termo está associado a “modelo”, “contorno”, “desenho”, “estrutura”, “figura” ou “limite”. O que significa dizer que o “arritmo” diz respeito às operações negativas da forma e, portanto, do “modelo”, do “contorno”. Para este autor é nesse sentido que o número não possui forma (é amorfo) e, consequentemente, pode “tomar” a forma de quaisquer outros objetos; ou seja, pode simbolizar substituindo toda e qualquer forma; equivalendo, portanto, como uma “representação” universal ignorante das diferenças.

Isso significa dizer que o número nos faz comuns: “todos somos ‘00000001’ flamenguista entre ‘40.000.000’” de flamenguistas. O número é democrático na medida em que nos faz iguais. No entanto, de forma paradoxal, ele é antidemocrático por anular nossa pluralidade, nossas diferenças. Por não ter “forma”, o número anula nossas “formas” de sermos flamenguistas, nossos distintos modos de torcer. Há nos modos de “ser Flamengo” uma verdadeira multiplicidade de formas que é elemento constitutivo da “Nação rubro-negra”. Apesar de também ser relevante abordar a torcida (mais especificamente os “40 milhões”) a partir da perspectiva do número, uma vez que nos mostra o quão quantitativamente somos gigantes. Porém, não podemos reduzir tudo ao número, pois há dimensões nas maneiras de torcer que escapam à sua lógica unitária e amorfa.

Para começarmos a alcançar tais dimensões é necessário destituir a primazia da unidade, de uma representação ideal, como, por exemplo, um modelo que sirva como fundamento de uma suposta maneira verdadeira de “ser Flamengo”. Isso nos possibilita tratar a “Nação” partindo da própria multiplicidade, que se decodifica em cada torcedor e suas diferentes maneiras de torcer, as quais se abrem e se desdobram umas sobre outras. Sendo assim, já destituímos qualquer elemento unificador (como o número o é, por excelência), que submete as diferenças à uma unidade.

Flamengo
Foto: MÁRIO FARACHE/ MOWA PRESS

Ora, não há estrutura ou modelo único, tal como o número, que dê conta e abarque a multiplicidade da “Nação rubro-negra”. Nesse sentido, quando falarmos em “Nação” é necessário que, ao invés de tratá-la como unidade, a concebamos como uma multiplicidade que recusa a unidade. Em outros termos, a “Nação” não é um elemento unificador, mas de multiplicidade tencionando toda a unidade: único modo de torcer, única forma de assistir ao Flamengo, única maneira de viver o Flamengo, único jeito de “ser Flamengo”. A força da “Nação rubro-negra”, para além da sua quantidade, dá-se em exercer, justamente de maneira contínua, esse questionamento da unidade em detrimento da multiplicidade.

É evidente que, ao se tratar de torcida, é inevitável não recairmos sobre a lógica numérica. De certa forma, não só é inevitável, como também é necessário, haja vista que a força de uma torcida também está em sua quantidade. No entanto, paradoxalmente, apesar de precisarmos do número, como vimos, é necessário (repetição) questionar e destituir sua lógica unificadora, para que, além de sua força quantitativa de “Nação”, possam surgir também as belezas das múltiplas maneiras de “ser Flamengo”, as quais trazem à tona seus múltiplos tons rubro-negros.

Mesmo assim, se alguém insistir em se manter preso a uma lógica quantitativa e lhe perguntar “o quando você ama o Flamengo?”, lá vai uma dica. Diga ao sujeito que aplique a seguinte fórmula: “divida o número 14, some 7 e multiplique” … A magia de ser Flamengo é a resposta. Se vira aí para calcular!

Notas

[1] Esse jogo teve 177.656 ingressos vendidos e é o segundo maior público pagante do Maracanã e do mundo, só perdendo para o jogo do Brasil contra o Paraguai nas eliminatórias para a Copa do Mundo em 1969, que apresentou 183.341 pagantes (o Brasil venceu este jogo por “1 x 0”). Se contabilizarmos o público não pagante, esse jogo se torna o terceiro maior da história, perdendo também para a final da Copa do Mundo de 1950, quando o Brasil perdeu a final para o Uruguai por “2 x 1”. O público total de tal jogo foi de 199.854 presentes, sendo 173.850 pagantes.

Referências

CASTRO, Ruy. O vermelho e o negro: pequena grande história do Flamengo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012.

SILVA, Renato Izidoro. Negação das formas: matemática e ontologia nas humanidades. Revista Espaço Acadêmico – n. 233, jul-ago. 2020. Acesso em: 14/08/2021.

 

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Ser Flamengo: uma questão de número… uma questão de forma. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 13, 2021.
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