Sérgio Sant’Anna e a intimidade de um pênalti
“Beleza pura também tem função? A arte deve ser aplicada? A esfera é a mais perfeita das formas? O gol bonito junta o útil ao agradável? (Já o pênalti costuma ser apenas útil, a não ser quando o cobrador joga o goleiro para um lado e a bola de mansinho em outro canto, às vezes na trave ou para fora.) Mas útil exatamente para quê? Ganhar ou perder faz diferença diante da morte?”.
O parágrafo acima, da novela Páginas sem Glória (2012), de Sérgio Sant’Anna, posiciona, logo em sua abertura, um tema central: a função da arte (também do corpo, da brincadeira etc.) versus o atributo do útil, do resultado, da meritocracia racional, enfim. Pois foi através desta novela de Sant’Anna, que tem o futebol como pano de fundo, que tive o primeiro contato com a obra de um dos autores mais experimentais da literatura brasileira. E ali, naquele parágrafo, fiquei travado. Como um goleiro na expectativa de apanhar um pênalti. Como escritor que sou, dedicado a tentar capturar, através do futebol, o realismo encantado popular brasileiro, tive a mais ultrajante inveja. Sim, uma inveja pegajosa, de ver, em poucas linhas, como escancarar a magia e os paradoxos do futebol e da brasilidade.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1997, Sant’Anna explica:
“O escritor só pode falar mais ou menos do que ele conhece, né? Futebol é uma coisa que eu conheço muito. Fui criado nesse meio, tive um tio goleiro do Fluminense. No conto ‘No Último Minuto’, eu fui, que eu saiba, o primeiro cara a descobrir que o futebol já era uma coisa diferente.”
Se Nelson Rodrigues, como dramaturgo que era, soube extrair do futebol seus aspectos teatrais, soube criar personagens e dramas; se Drummond, como poeta, soube encontrar a lírica mesmo em crônicas sobre futebol; coube a Sérgio Sant’Anna, como escritor pós-colonialista, pós-moderno, ter a sensibilidade de extrair do futebol, como temática, como estrutura, todo um debate filosófico, ontológico, místico que esteve ali, o tempo todo, entranhado ao futebol.
O segundo texto de Sant’Anna que li, foi o conto “Na boca do túnel”. Cada vez mais maravilhado com a capacidade de explorar todos os espaços do campo de jogo que o futebol oferece como material literário. Em poucas páginas, um mergulho honesto e desastroso em um personagem saboroso. Um personagem complexo, inconformado com si mesmo, cheio de contradições, que vai se desconstruindo perante o leitor, conforme os gols de uma goleada trágica se acumulam no placar.
“Eu – Este feixe de sensações diversas e contraditórias (…); Eu – um teórico, um estudioso, como dizem, porque fui um dos poucos técnicos diplomados.(…); Eu – um desenraizado sem família, juntando seus cacos, num clube pobre de bairro, a meio caminho entre o centro da cidade e os subúrbios (…); Eu, um discurso que se articula e se pretende íntegro e real para si e para os outros? Mas não será isso uma convenção, artifício que a qualquer momento poderá estilhaçar-se, esse eu que pronuncia para si e para os outros tal discurso, texto (imaginário?)? Esse eu que se transforma em outro na medida em que dele falo?”
Sant’Anna questiona a própria essência do brasileiro, do futebol, do intelectual versus o corporal, o mágico, o brincante, através de narrativas vivas, reais, que transpiram futebol e o Brasil popular. Para quem gosta de grande literatura, para quem entende a arte como algo potente demais para ser apenas útil, para quem sabe que “ganhar ou perder não faz diferença nenhuma diante da morte”, Sérgio Sant’Anna, e sua obra sobre o futebol, são indispensáveis.
Ainda hoje, toda vez que leio um texto de Sant’Anna, me sinto na intimidade de um penal, sou o goleiro, tentando decifrar a genialidade do atacante artista, que é Sant’Anna, como o Duque, personagem malandro das Páginas sem Glória. E essa tarefa não tem nada a ver em tentar evitar o gol, garantir a vitória. Tem a ver com o prazer do jogo. De estar lá. Gargalhada presente em cada tirada irônica e genial, como um pênalti cobrado devagarzinho, só deslocando o goleiro.
Sérgio Sant’Anna nos deixou em maio de 2020, mais uma vítima da COVID-19. Agora não há mais nenhum “jogo” novo que se possa ler dele. Apenas os textos já lidos, e relidos, como um compacto com os lances de Garrincha. Ainda assim, não é possível se cansar de lê-lo, pois cada leitura pode conter uma interpretação nova, uma nuance, uma ginga que passou despercebida. Tenho me dedicado a estudá-lo de forma mais acadêmica, apenas para poder me sentir como Castilho, ou Veludo, goleiros sempre presentes no imaginário de Sant’Anna, prestes a apanhar um penal cobrado por Didi, num treino do Fluminense na década de 50.
–– Travessão
Literatura & Futebol
com Guilherme Trucco & Raul Andreucci
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Quem chuta no Travessão
Somos uma dupla de dois. O Guilherme Trucco, com toda a sua experiência de escritor e pesquisador de literatura de futebol (e brasilidade, ressalte-se), autor de Saída Bangu (Off Flip) e Vocês vão ter que me engolir (prestes a sair pela Dolores). E o Raul Andreucci, que, também tem livros de futebol na conta, autor de A Selva do Futebol e organizador da revista contrAtaque! F.C., e cuida de duas editoras (de futebol!), a Dolores e o Ludopédio.
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Qual a meta do Travessão
Programamos uma primeira temporada de seis episódios. Um por quinzena, nos principais tocadores (como o Spotify, pode ficar tranquilo! Rs!). Falamos sobre os textos de futebol, sejam contos de novatos de uma coletânea ou romances de um autor consagrado, e publicamos algo que converse com o tema na sequência na coluna do Ludopédio.