103.2

Sinal vermelho para as esmolas

Leandro Marçal 2 de janeiro de 2018

Dia de ressaca. Dor de cabeça, embrulho no estômago, voz rareando. Sinais de que o abuso da noite anterior vai tornar meu dia de trabalho mais longo. Cada segundo não vai durar apenas um segundo. Meu nome vai ecoar quando for chamado, adiar as tarefas será inútil.

Não quis correr o risco do atraso no transporte público. Pus meus óculos escuros e parei no mesmo semáforo de sempre. Aquele mais demorado, onde os carros se acumulam até chegar à entupida avenida principal.

Senhoras com a idade da minha mãe entregaram coloridos panfletos enaltecendo prédios gigantescos. Eu e elas teríamos que trabalhar duas ou três vidas para pagar uma parcela de um apartamento daqueles.

O mesmo mendigo de todos os dias passa pedindo um dinheiro, com a cara de dor de barriga para os desavisados sentirem pena. Liguei o rádio e ouvia o noticiário, dando maior atenção ao esportivo, claro. Quem vem, quem vai. Salários de seis dígitos arregalaram meus olhos por trás das lentes escurecidas.

Na faixa de pedestres, duas crianças fazem malabarismos com bolas de diversos tamanhos. A cada novo número, elas vão diminuindo. De futebol, de brinde de sabão em pó, de tênis. Até chegar a uma com o tamanho de uma bolinha de gude. Eu os encaro, surpreso. Na idade deles, minha mãe me levava à escola. Sinto preguiça e vergonha de perguntá-los se ainda frequentam o colégio. A timidez aumenta quando não encontro uma solitária moeda no compartimento da porta.

futebol (5 of 7)
Malabarista da bola. Foto: José Carlos Barretta.

Cadê o troco do estacionamento da balada de ontem? Não acho, mas me assusto ao olhar para frente. Seis ou sete jovens vestindo quimonos, em plena manhã ensolarada. Erguem uma faixa e pedem a colaboração dos motoristas para um campeonato de judô, pois não têm apoio para viajar a outro estado, se alimentar e competir dali a uns dias.

Como não podiam ter incentivo tão pouco tempo depois das Olimpíadas por aqui? Não era justo queimar a pele e sentir um calor sufocante sob o pano da arte marcial àquela hora, daquele jeito.

Tanto dinheiro pagando salários de gente preguiçosa dentro dos campos, enriquecendo fora deles e há quem precise erguer faixas pelo esporte. Outros abdicam dos estudos para seus malabarismos com a bola a cada sinal vermelho. Se minhas bochechas ficavam rosadas para apresentar trabalhos na frente da sala, a coragem de se expor assim, à frente de motoristas apressados em seus carros do ano é digna antes de nascer minha indignação.

A vontade era pedir os números das contas e transferir todo o valor daquela indenização trabalhista para suas contas. O anseio era ir atrás de cada presidente de federação de esportes olímpicos e dar um ultimato por decência. O desejo era ir à aos apartamentos do panfleto colorido, puxar pelo colarinho cada prefeito, vereador, deputado e governador. A ânsia era de chegar aos atletas profissionais que não valorizam seu patamar, mostrar aquela cena e escancarar o mundo real em que eles deixaram de viver, fazendo-os nunca mais desperdiçarem a rara chance que a vida lhes deu.

Senti pena de mim, pelo sol não ter me cegado enquanto era tempo.

O semáforo da injustiça abriu, eu coloquei meus óculos escuros e tentei me blindar contra todo sentimento de injustiça e tristeza que dominaria meu dia. Tive vontade de jogar meu carro contra o poste, mas o risco de só me machucar e as buzinas irritantes quando o sinal abriu me fizeram acelerar e aumentar o volume do rádio.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Sinal vermelho para as esmolas. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 2, 2018.
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