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Sintomas de uma nova Europa na Euro 92

Que História! 21 de julho de 2021

Quem viveu o início dos anos 90 precisou reconsiderar um bocado do que já sabia sobre geopolítica. Era um tal de país que mudava de nome, que se dividia, que surgia… Os livros de geografia (numa época em que, basicamente, eram só eles como fontes de pesquisa) ficavam ultrapassados muito rápido e o trabalho dos vendedores de mapas (sim, já houve quem vendesse mapas) era difícil.

E quando o cidadão de bem (ou não), ia para frente da sua TV ou para o lado do rádio acompanhar uma das parcas transmissões internacionais da época, ainda precisava se adaptar a novas seleções, ou arranjos competitivos que complicavam a compreensão daqueles que se acostumaram com o mundo pré-queda do Muro de Berlim.

Imagina a vida das crianças, adolescentes e adultos que compravam um álbum de figurinhas e, além da dúvida natural de não ter certeza se o atleta vai ser convocado ou não, tinha uma outra: será que essa seleção ainda terá esse nome até a competição?

No melhor estilo “Adeus, Lenin”, quem entrasse em coma em 1989 e voltasse em 1992 iria achar o mundo uma loucura. Não era pra menos. Dito tudo isso, no presente texto vamos analisar a Eurocopa de 1992, uma bela amostra de como o extracampo tumultuado daquele período influenciou demais o que rolava dentro das quatro linhas. 

Dinamarca Euro 92
Foto: Reprodução

Uma Euro diferente

Quem conheceu a Euro em 2021 (e deve estar achando a gente “cringe” por tratar de competição velha) não faz ideia de como era difícil disputar a competição antigamente. Se hoje temos 24 seleções, no início, em 1960, a fase final reunia apenas quatro remanescentes das eliminatórias. Na edição de 1980 subiram para oito os participantes, número que se manteve até 1992. Por que era assim? Basicamente, por questões de nível técnico e geografia.

Até o fim dos anos 80 eram menos países na Europa e a UEFA, com pouco mais de 30 afiliados, preferiu fazer eliminatórias mais duras, com poucas vagas para a fase final. Assim garantia que apenas os melhores jogassem a Euro.

Com os anos 90 e o “boom” de novas nações – em grande parte pela dissolução da URSS, Tchecoslováquia e da Iugoslávia – somado ao aumento da influência das transmissões pela TV, ter pouca seleções na Euro passou a ser algo menos atrativo e menos rentável. Por isso o número de participantes foi aumentando até chegar no que temos hoje. Talvez até exagerado.

Dado esse contexto, o ponto principal é que a Euro 92 teria apenas oito participantes na sua fase final. Teria e teve, mesmo que não do jeito que se pensava.

Mascote da Euro 92. FOTO: Acervo Juha Tamminen
Mascote da Euro 92. Foto: Acervo Juha Tamminen

Alemanhas, União Soviética… Vou jogar contra quem mesmo?

O turbilhão político e social que sacudiu a Europa na virada da década de 80 para 90 trouxe mudanças agudas, mas que ainda não tinham tido uma forte repercussão na Copa de 90. A Alemanha Ocidental e a União Soviética, por exemplo, jogaram sua derradeira competição internacional com esses nomes. Depois disso, quem tinha jogo marcado com essas seleções podia ter até garantia de que o jogo aconteceria, mas não de que o nome do adversário seria o mesmo.

O caso alemão é curioso. Quando foram sorteados os grupos das Eliminatórias da Euro 92, ainda existiam as duas Alemanhas, por isso a Alemanha Oriental seria uma das equipes que disputariam as vagas. Com a reunificação, ela deixou de existir e não fazia mais sentido disputar as eliminatórias. Assim, o que deveria ser um jogo oficial, virou um amistoso de despedida para a seleção do lado oriental. A nova Alemanha, com a base campeã mundial na Itália, venceu seu grupo e disputou a Euro 92, na sua primeira competição pós-reunificação.

Karl-Heinz Riedle marca contra a Suécia na semifinal da Euro 92. FOTO: Acervo UEFA
Karl-Heinz Riedle marca contra a Suécia na semifinal da Euro 92. Foto: Acervo UEFA

No caso soviético, vitória no grupo das eliminatórias, seleção bem e tudo aparentando que o país seria bem representado na Euro. Só que no meio do caminho, o país deixou de existir. Com a dissolução da União Soviética no final de 1991, a Euro tinha uma seleção classificada que não tinha mais um país para representar. 

A primeira ideia era de deixar a vaga com a Rússia – que acabaria sendo a herdeira esportiva da União Soviética. Mas não rolou por uma razão simples: havia muitos jogadores não-russos na equipe soviética. Quem iria querer comprar essa briga? Logo, uma solução política surgiu: quem jogaria a Euro seria a CEI (Comunidade dos Estados Independentes). Era a melhor saída? Difícil dizer, mas funcionou bem. Depois daquela competição cada nação seguiria seu rumo e a UEFA ganharia mais uma dezena de afiliadas.

Seleção da CEI. FOTO: Acervo
Seleção da CEI. Foto: Acervo

Por fim, o mais emblemático dos casos de mudanças bruscas que a geopolítica trouxe para aquela competição foi da Iugoslávia. Emblemático e trágico.

Do pesadelo iugoslavo ao sonho dinamarquês

A Iugoslávia tinha uma seleção fortíssima e vinha de uma boa campanha na Copa da Itália em 1990. Superou a Dinamarca na disputa pelo seu grupo nas eliminatórias e chegaria como uma boa força à Suécia, para a disputa da Euro. Não fosse a situação do seu país, que estava prestes a explodir.

A morte de Josip Tito, líder iugoslavo durante os anos da Guerra Fria, fez com que as nações que estavam amotinadas sob a bandeira iugoslava externassem o desejo antigo de não mais ficarem juntas. Os vários nacionalismos, interesses políticos e disputas territoriais deixavam claro que mais dia menos dia, a Iugoslávia deixaria de existir.

Croácia e Eslovênia declararam independência e foram atacadas pelos Sérvios, interessados em manter a unidade. Depois foi a vez da Bósnia, também alvejada. Foi o início da carnificina que marcaria boa parte dos anos 90. E, obviamente, respingaria na seleção de futebol.

Aquele time era um “suco de Iugoslávia”, mas foi se minando aos poucos. Os primeiros a sair foram os croatas, ainda durante as eliminatórias. O acirramento dos conflitos em 1991, fez com que a seleção mudasse ainda mais. Na preparação para a Euro, já em 1992, a maioria do elenco era de sérvios, mas haviam montenegrinos, eslovenos, bósnios e um macedônio. Porém, com a intensificação dos ataques à Bósnia, os quatro integrantes da equipe que tinham essa origem – os jogadores Hadzibegic, Bazdarevic e Kodro e o técnico Ivan Osim – abandonaram a seleção. O macedônio Pancev, um dos destaques do time, também deixou a equipe, na eminência de seu país declarar independência.

Seleção iugoslava no álbum de figurinhas da Euro 92
Seleção iugoslava no álbum de figurinhas da Euro 92. Fonte: Reprodução

 

Nessa bagunça, a Iugoslávia foi a primeira seleção a desembarcar na Suécia, apenas com atletas de origem ou que atuavam na Sérvia e em Montenegro. Enquanto várias vidas se perdiam nos conflitos da região dos balcãs, outras participantes daquela Euro, como a Inglaterra, pediam o banimento da seleção iugoslava, ao mesmo tempo que a UEFA fazia vistas grossas, por entender que as sanções das Nações Unidas à Iugoslávia não abrangeriam eventos esportivos. Pouco mais de uma semana antes do início da Euro, a ONU emitiu uma resolução em que deixava claro que o banimento seria também esportivo. 

Com esse pepino, UEFA e FIFA decidiram retirar a equipe azul da competição. Sob protestos dos iugoslavos deixaram a Suécia, voltando para um país caótico e sem nenhuma certeza de futuro.

A UEFA convidou a Dinamarca, que havia sido segundo lugar na chave da Iugoslávia nas eliminatórias, para substituir a equipe banida. Mal imaginavam eles que a seleção nórdica que vivia uma baita crise interna, chegaria à Suécia para ser campeã. Essa história você pode conhecer com mais detalhes no vídeo abaixo, que disponibilizamos em nosso canal.

https://youtu.be/v31zXuE4WSE

Muda o continente, muda a competição

No fim, das oito seleções previamente classificadas para jogar aquela competição na Suécia, uma mudou de nome, uma foi banida e uma convidada ganhou o torneio. Uma Euro que serviu bem para exemplificar a tumultuada situação que a Europa viveu no início dos anos 90.

Para a próxima edição, o número de participantes na fase final da Euro dobrou e novas seleções passaram a disputar vaga. Já eram 48 seleções europeias, graças aos novos arranjos nacionais como o da Tchecoslováquia, que se dividiu em República Tcheca e Eslováquia, de forma amigável. Esfacelando-se, a Iugoslávia, seguiu em guerra durante praticamente todo o restante dos anos 90.

Foram anos de intensa mudança na Europa e aquela Euro 92, sem dúvida, representou bem isso.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

HISTóRIA!, Que. Sintomas de uma nova Europa na Euro 92. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 41, 2021.
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