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Skate queer em Berlim

Wagner Xavier de Camargo 4 de fevereiro de 2018

Na segunda-feira passada, dia 29 de janeiro, comemorou-se nacionalmente o “Dia da Visibilidade Trans”, data instaurada nos idos de 2004 e que nos ajuda a lembrar da luta de pessoas trans (travestis, transexuais/transgêneros) pelo respeito às suas orientações de gênero e por seus direitos básicos, cotidianamente negados e massacrados pela sociedade heteronormativa. Nesse dia pensei em meus/minhas amigos/amigas trans do Brasil e em suas lutas pela sobrevivência. Também me lembrei, quase que sintomaticamente, de Andreas, um amigo trans alemão que conheci em 2009, quando ainda morava em Berlim.

Andreas me mostrou o que chamava de skate queer, isto é, um modo de andar de skate desassociado com o formato viril, agressivo, brutal (e, no limite, masculinizado) de praticantes. Ou melhor, uma prática esportivizada que desierarquizava corpos e instaurava, por onde passava, uma democracia na forma de se expressar (pessoal e sexualmente). O grupo de Andreas reunia jovens e mais velhos, mulheres lésbicas, homens homo e heterossexuais, mulheres e homens transgêneros, num aglomerado que misturava estrangeiros, alemães, mendigos, judeus e ateus. Por onde passavam, desgenerificavam o skate, erotizavam as performances, subvertiam expectativas de quem os via. Assisti-los “skatear” era um alento; uma imagem utópica de um mundo (futuro) possível e desejável! Encontravam-se em finais de semana no Mauerpark, um amplo parque famoso por ter sido entrecortado pelo Muro de Berlim, que separou durante anos as porções oeste e leste da atual capital alemã.

Mauerpark em Berlim: pedaço do Muro e bancos usados por skatistas Foto: Shadowgate on Visual Hunt / CC BY
Mauerpark em Berlim: pedaço do Muro e bancos usados por skatistas. Foto: Shadowgate/Visual Hunt (CC BY).

Acompanhando o grupo aprendi, na prática, que a desidentificação de gênero é necessária para desestabilizarmos certezas instituídas socialmente na associação corpo biológico-sexo-desejo e, mais do que isso, desvelavam o quão perniciosas podem ser as expectativas que pesam sobre corpos que fogem à normatividade. Os usos e apropriações dos espaços urbanos (do parque e das ruas) por parte dos corpos daquelas pessoas mostravam-me não só que a cidade podia ser vista e ordenada simbolicamente por um olhar skatista, mas que esse olhar poderia ser distinto, justamente porque oriundos daqueles sujeitos que buscavam desfazer-se das “marcações de gênero” a eles atribuídas dentro da modalidade.

Isso é o que ficou patente, recentemente, com a declaração de Brian Anderson, famoso skatista estadunidense, ao assumir sua homossexualidade em setembro de 2016: disse que se tivesse assumido sua orientação homossexual 15 anos antes, possivelmente sua história pessoal e a do skate seriam contadas de outra maneira. Brian saiu do “armário da sexualidade” com 40 anos, depois de uma carreira bem-sucedida no skate profissional. Reportou aspectos muito comuns a outros/as atletas não heterossexuais no mundo esportivo, quais sejam, bullying e perseguições por parte de colegas machistas, dúvidas quanto à sua sexualidade, pressão heterossexual dentro e fora da modalidade e ostracismo social. Agora quer lutar contra a homofobia no esporte.

capa vista skate edicao 50
Capa da Revista Vista edição 50. Ilustração: Dea Lellis/Revista Vista.

O grupo de skate queer que conheci em Berlim não tinha exatamente uma bandeira, porém suas ações circunscreviam uma luta por um mundo menos violento, mais inclusivo e diverso. O skate não somente possibilitava a manutenção dessa postura no momento em que propiciava o encontro daqueles atores e os múltiplos espaços da cidade numa ampla rede de relações, mas quando colocava numa mesma equação elementos incomuns como gênero, sexualidade e movimentos corporais despadronizados aos olhos de todos.

O skate queer dava um tom peculiar a esses encontros, mostrando um mundo outro, meio inancansável, meio utópico da convivência pacífica de corpos, culturas, ideias e pessoas diferenciadas. Ir ao Mauerpark vê-los andar de skate, particularmente aos domingos, não tinha a ver com assistir a um show, mas perceber como a vida era mais simples e mais fluída do que eu imaginava. Elas, Eles, apenas queriam se expressar: corporal, cultural e esportivamente por meio do skate.

Arte de rua em Mannheim. Foto: Liborius on Visual Hunt /CC BY-NC
Arte de rua em Mannheim. Foto: Liborius on Visual Hunt /CC BY-NC

Lembro-me com carinho de um livro em alemão sobre histórias eróticas não normativas e corpos erráticos no skate a mim presenteado por Andreas.[1] A atraente combinação de cultura juvenil, de rua, esporte e subversão do skate também exerce uma grande fascinação sobre corpos outros, como de gays, lésbicas, de pessoas transgênero, intersex e afins. As historietas do compêndio me contaram isso. A cultura machista e sexista que se perpetua no skate como um espaço reservado a homens cede lugar, a partir do skate queer, a outros corpos, que desregulam as convenções ordinárias de gênero e sexualidade, promovendo uma ampliação do espectro do desejo e, no limite, fetichizando a modalidade.

De volta a Berlim em outubro de 2017 por algumas semanas, não reencontrei Andreas. Fui ao Mauerpark algumas vezes, mas não achei o grupo de skatistas. Talvez porque não fosse mais verão (as temperaturas já estavam baixas e os dias cinzentos), ou porque o grupo não mais se reunia naquele espaço. Penso, na melhor das hipóteses, que Andreas e seu grupo de skate queer estão radicalizando em outras áreas da cidade. E torço por isso!

Se há algo que desejo é que ele seja o homem que almejava ser. E, sobretudo, que continue inspirando outros sujeitos trans a lutarem por suas existências, mesmo por meio de uma atividade esportiva muitas vezes sexista e que tende a reproduzir valores de uma sociedade heteronormartiva.

[1] Skate: erotische Bilder und Geschichten (Skate: fotos e histórias eróticas), organização de Mathias Trostdorf. Berlin: Bruno Gmünder, 2005.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Skate queer em Berlim. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 4, 2018.
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