Skate queer em Berlim
Na segunda-feira passada, dia 29 de janeiro, comemorou-se nacionalmente o “Dia da Visibilidade Trans”, data instaurada nos idos de 2004 e que nos ajuda a lembrar da luta de pessoas trans (travestis, transexuais/transgêneros) pelo respeito às suas orientações de gênero e por seus direitos básicos, cotidianamente negados e massacrados pela sociedade heteronormativa. Nesse dia pensei em meus/minhas amigos/amigas trans do Brasil e em suas lutas pela sobrevivência. Também me lembrei, quase que sintomaticamente, de Andreas, um amigo trans alemão que conheci em 2009, quando ainda morava em Berlim.
Andreas me mostrou o que chamava de skate queer, isto é, um modo de andar de skate desassociado com o formato viril, agressivo, brutal (e, no limite, masculinizado) de praticantes. Ou melhor, uma prática esportivizada que desierarquizava corpos e instaurava, por onde passava, uma democracia na forma de se expressar (pessoal e sexualmente). O grupo de Andreas reunia jovens e mais velhos, mulheres lésbicas, homens homo e heterossexuais, mulheres e homens transgêneros, num aglomerado que misturava estrangeiros, alemães, mendigos, judeus e ateus. Por onde passavam, desgenerificavam o skate, erotizavam as performances, subvertiam expectativas de quem os via. Assisti-los “skatear” era um alento; uma imagem utópica de um mundo (futuro) possível e desejável! Encontravam-se em finais de semana no Mauerpark, um amplo parque famoso por ter sido entrecortado pelo Muro de Berlim, que separou durante anos as porções oeste e leste da atual capital alemã.

Acompanhando o grupo aprendi, na prática, que a desidentificação de gênero é necessária para desestabilizarmos certezas instituídas socialmente na associação corpo biológico-sexo-desejo e, mais do que isso, desvelavam o quão perniciosas podem ser as expectativas que pesam sobre corpos que fogem à normatividade. Os usos e apropriações dos espaços urbanos (do parque e das ruas) por parte dos corpos daquelas pessoas mostravam-me não só que a cidade podia ser vista e ordenada simbolicamente por um olhar skatista, mas que esse olhar poderia ser distinto, justamente porque oriundos daqueles sujeitos que buscavam desfazer-se das “marcações de gênero” a eles atribuídas dentro da modalidade.
Isso é o que ficou patente, recentemente, com a declaração de Brian Anderson, famoso skatista estadunidense, ao assumir sua homossexualidade em setembro de 2016: disse que se tivesse assumido sua orientação homossexual 15 anos antes, possivelmente sua história pessoal e a do skate seriam contadas de outra maneira. Brian saiu do “armário da sexualidade” com 40 anos, depois de uma carreira bem-sucedida no skate profissional. Reportou aspectos muito comuns a outros/as atletas não heterossexuais no mundo esportivo, quais sejam, bullying e perseguições por parte de colegas machistas, dúvidas quanto à sua sexualidade, pressão heterossexual dentro e fora da modalidade e ostracismo social. Agora quer lutar contra a homofobia no esporte.

O grupo de skate queer que conheci em Berlim não tinha exatamente uma bandeira, porém suas ações circunscreviam uma luta por um mundo menos violento, mais inclusivo e diverso. O skate não somente possibilitava a manutenção dessa postura no momento em que propiciava o encontro daqueles atores e os múltiplos espaços da cidade numa ampla rede de relações, mas quando colocava numa mesma equação elementos incomuns como gênero, sexualidade e movimentos corporais despadronizados aos olhos de todos.
O skate queer dava um tom peculiar a esses encontros, mostrando um mundo outro, meio inancansável, meio utópico da convivência pacífica de corpos, culturas, ideias e pessoas diferenciadas. Ir ao Mauerpark vê-los andar de skate, particularmente aos domingos, não tinha a ver com assistir a um show, mas perceber como a vida era mais simples e mais fluída do que eu imaginava. Elas, Eles, apenas queriam se expressar: corporal, cultural e esportivamente por meio do skate.

Lembro-me com carinho de um livro em alemão sobre histórias eróticas não normativas e corpos erráticos no skate a mim presenteado por Andreas.[1] A atraente combinação de cultura juvenil, de rua, esporte e subversão do skate também exerce uma grande fascinação sobre corpos outros, como de gays, lésbicas, de pessoas transgênero, intersex e afins. As historietas do compêndio me contaram isso. A cultura machista e sexista que se perpetua no skate como um espaço reservado a homens cede lugar, a partir do skate queer, a outros corpos, que desregulam as convenções ordinárias de gênero e sexualidade, promovendo uma ampliação do espectro do desejo e, no limite, fetichizando a modalidade.
De volta a Berlim em outubro de 2017 por algumas semanas, não reencontrei Andreas. Fui ao Mauerpark algumas vezes, mas não achei o grupo de skatistas. Talvez porque não fosse mais verão (as temperaturas já estavam baixas e os dias cinzentos), ou porque o grupo não mais se reunia naquele espaço. Penso, na melhor das hipóteses, que Andreas e seu grupo de skate queer estão radicalizando em outras áreas da cidade. E torço por isso!
Se há algo que desejo é que ele seja o homem que almejava ser. E, sobretudo, que continue inspirando outros sujeitos trans a lutarem por suas existências, mesmo por meio de uma atividade esportiva muitas vezes sexista e que tende a reproduzir valores de uma sociedade heteronormartiva.
[1] Skate: erotische Bilder und Geschichten (Skate: fotos e histórias eróticas), organização de Mathias Trostdorf. Berlin: Bruno Gmünder, 2005.