13.2

Só preconceito, não. Discriminação, pelo menos! Por que não se discute o racismo no futebol brasileiro?

Marcel Diego Tonini 7 de julho de 2010

A cada caso de racismo no futebol brasileiro, aparece sempre um advogado para dar a sentença final, dizendo que o ato praticado por algum jogador não se configura crime de racismo, de acordo com a legislação brasileira. No caso ocorrido em 2009 e que envolveu os jogadores do Cruzeiro, Elicarlos, e do Grêmio, Maxi López, isto ocorreu mais uma vez.

Rodrigo Barros Oliveira, em texto publicado no blog do jornalista Juca Kfouri, argumenta que:

“O crime cometido pelo jogador argentino, caso a alegação do jogador Elicarlos se confirme verdadeira, não é crime de racismo. A conduta praticada pelo atacante Maxi Lopes configura sim crime de injúria qualificada, previsto no Código Penal. O atleta ofendeu a dignidade do outro e de maneira alguma tal prática configura o crime de racismo. Os crimes de racismo, previstos na Lei 7.716/89, são condutas muito diversas da praticada pelo jogador argentino. Racismo é dar tratamento diverso a alguém em função de sua raça, cor, etnia, ou nacionalidade, em situações em que estes devam ser tratados igualmente aos outros”. (OLIVEIRA, 2009, grifos do autor).

Ao ler este tipo de argumentação, sempre fico com a impressão de que se minimiza o ato hostil praticado, a sua importância na sociedade e, neste caso, no futebol brasileiro, e a discussão pública em torno dele. Além disso, o eixo do debate é deslocado das práticas sociais e culturais – o que é pra mim a parte fundamental da discussão – para a terminologia jurídica mais apropriada. A despeito do que a nossa legislação entende por racismo, ou seja, qual ato pode ou não ser caracterizado como crime de racismo, o jogador Elicarlos fez um uso popular de tal conceito, qualificando de racismo a atitude ou o comportamento agressivo por parte de Maxi López pelo fato de o volante cruzeirense ser negro.

Se bem entendi as aulas que assisti e os textos que li do renomado antropólogo Kabengele Munanga, professor da FFLCH-USP, podemos distinguir os termos preconceito, discriminação e racismo da seguinte maneira. Preconceito é uma disposição afetiva imaginária, ligada aos estereótipos étnicos. Inconscientemente, a pessoa preconceituosa valoriza as diferenças entre o que se entende por “raças humanas”, as quais são baseadas principalmente pela cor da pele. Assim, esta pessoa, evita, sem exteriorizar seus pensamentos, determinados lugares onde a maioria é negra, por exemplo. Discriminação é um comportamento individual ou coletivo observável. Conscientemente, a pessoa que discrimina valoriza tais diferenças e estabelece uma hierarquia racial na qual o branco é, para ele, superior ao negro. Neste sentido, esta pessoa verbaliza ou assume em público, por exemplo, que não vai a determinado lugar porque lá tem maioria negra. Racismo é um discurso ou uma doutrina que tenta legitimar a crença na existência de raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, e o biológico e o cultural.  O racista registra de algum modo a sua crença ideológica quer para dominar, quer para inferiorizar negros, judeus ou pessoas de outras “raças”. Assim, o racista usa, por exemplo, uma camiseta com os escritos: “Não vou a determinado lugar porque lá tem negros!”.

Penso que mais importante do que a precisão jurídica ou mesmo conceitual para denominar o ato cometido por Maxi López é a discussão profunda na imprensa brasileira – não só a esportiva – das atitudes discriminatórias que vêm acontecendo de maneira recorrente no futebol nacional. Por que depois de Mario Filho houve um silenciamento por parte dos nossos jornalistas no tocante à questão? Será que depois da segunda edição de O negro no futebol brasileiro (1964) não há mais o que falar sobre as dificuldades enfrentadas pelos negros para a sua afirmação neste esporte (tanto no passado quanto no presente)? Será que depois de Pelé é besteira discutir atos discriminatórios no futebol brasileiro? Ou os negros deixaram de sofrer injúrias – se este é o termo correto – nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000?

Por que existem pouquíssimos árbitros, treinadores, jornalistas negros? E dirigentes negros? Se o nosso futebol é recheado de grandes craques negros, por que eles têm pouquíssimo espaço de atuação em outras profissões do universo do futebol? Seria impreciso entender a estrutura do nosso futebol como um racismo institucionalizado? O que acontece dentro de campo deve ficar dentro das quatro linhas? Ou o estádio é um espaço especial onde a legislação brasileira não deve ser aplicada? Chamar ou xingar um jogador negro de “negão”, “neguinho”, etc. é “normal” como pensam muitos brasileiros? É um xingamento igual a qualquer outro? Se um jogador negro “aceita” um apelido preconceituoso, então não há problema? Alguém perguntou a ele como se sente e se sentiu desde que começou a jogar bola? Até quando árbitros, treinadores, dirigentes, jornalistas, etc. e os próprios jogadores companheiros serão coniventes com atitudes discriminatórias que acontecem dentro e fora de campo? O que será que acontece nos vestiários, no dia-a-dia dos clubes? E o racismo velado através de indiretas, de “brincadeiras”, de ofensas comuns, de apelidos, de demissões com justificações outras que não a racial? Alguém já perguntou destas “sutilezas” aos negros do nosso futebol? O que falar, então, dos gritos das torcidas (“favela”, “pó-de-carvão”, “macacada”…)?

Por que a imprensa esportiva costuma abordar o racismo de forma sensacionalista? Por que quando um brasileiro é hostilizado no exterior a discriminação ganha muito mais evidência do que quando ocorre dentro deste país? Por que a injúria é super-exposta quando a mesma parte de um argentino ou de outro estrangeiro? Alguma autoridade policial averiguou quem atirou a banana com as inscrições “Grafite macaco” naquele amistoso entre Brasil e Guatemala? Ou foi um torcedor guatemalteco que a lançou para dentro de campo? Por que neste episódio a imprensa não deu a mesma atenção? Por que ninguém fala mais do que aconteceu entre os jogadores Elias (Corinthians) e Felipe (Goiás) no dia 14 de junho? Ou entre Cris (Brasiliense) e Márcio Alemão (Guarani) no último dia 7 de julho? Há diferença entre o “macaquito” e o “macaco”? Quando vem de fora é racismo e quando vem de dentro é apenas um xingamento, uma injuriazinha? Ninguém toca na questão porque aqui todos têm, como se diz popular e pejorativamente, “um pé na cozinha”, sendo todos mestiços, e porque somos um país onde não há racismo? Somos o país da democracia racial? Este é o nosso legado para o mundo? Afinal, aqui é o “paraíso racial”, não é? Ou este é um assunto “tabu” ou “menor” que não deve ser tratado pela nossa imprensa? Ou a opinião deste leigo – no tocante às minúcias da legislação brasileira – não serve para refletirmos a questão?

Bibliografia
CORRÊA, Lúcia Helena. Racismo no futebol brasileiro. In: DIEGUEZ, Gilda Korff (Org.). Esporte e poder. Petrópolis: Vozes, 1985.

MUNANGA, Kabengele. Teorias sobre o racismo. In: HASENBALG, Carlos A.; MUNANGA, Kabengele; SCHWARCZ, Lília Moritz. Racismo: perspectivas para um estudo contextualizado da sociedade brasileira. Niterói: EdUFF, 1998.

_____. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, P. Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói: EdUFF, 2004.

OLIVEIRA, Rodrigo Barros. Injúria, talvez, racismo, não! 2009. Disponível em:http://blogdojuca.blog.uol.com.br/arch2009-06-21_2009-06-27.html#2009_06-26_11_41_49-9991446-0. Acesso em: 26/06/2009.

VIEIRA, José Jairo. Considerações sobre preconceito e discriminação racial no futebol brasileiro. Teoria e Pesquisa, São Carlos, n. 42-43, p. 221-244, jan./jul. 2003.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Só preconceito, não. Discriminação, pelo menos! Por que não se discute o racismo no futebol brasileiro?. Ludopédio, São Paulo, v. 13, n. 2, 2010.
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