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Sobre a militância torcedora (I): premissas gerais

Fabio Perina 18 de novembro de 2021

Visando refletir sobre aproximações entre futebol e política, aqui na Parte I irei esboçar premissas gerais com algumas reflexões e na Parte II sustentar sua argumentação com estudos de casos concretos na militância palmeirense. (Obs: por coincidência outros colaboradores dessas reflexões também são palmeirenses).

Já sabemos que os principais discursos vindos dos setores dominantes do futebol buscam a desvalorização e até a desumanização dessa categoria do torcedor (vide estigmatização e criminalização). Portanto agora o objetivo será também compreender que mesmo entre outros setores dominados da sociedade (como outros militantes sociais) também há uma despolitização dessa categoria.

Para as reflexões a seguir será preciso uma breve menção ao vocabulário que será tratado através de configurações de semelhanças e diferenças entre cada um dos termos: militância torcedora (torcidas organizadas e coletivos dos clubes), massa torcedora, militância geral e massa geral. Por geral se entende nesse caso aquilo não organizado no futebol. E por massa se entende ausência de organização. Massa no senso comum remete a algo sem vida própria, misturada e sujeita a contingências externas. Portanto, irracionais e até “perigosas”. Para Engels e Lenin, o militante tem como tarefa estudar, organizar e lutar. É como cada indivíduo conecta sua indignação, criatividade, solidariedade etc.,  para uma causa coletiva e adere à sua visão de mundo. Ultrapassar o limite do suportável. Quanto mais intensa essa adesão em curto período, com a massa se tornando militante, é porque as estruturas sociais se abalam em sua crise. E daí cabe a importante dedução estratégica que onde uma liderança de esquerda não consegue inserir sua formação política será terreno fértil à agitação de direita. Portanto, antecipo que o âmago da minha argumentação será do marxismo à frente do liberalismo de esquerda

Ideologias despolitizantes: Futebol x Política?

“Usar o argumento do futebol como instrumento de alienação da classe trabalhadora é fortalecer para que ele realmente o seja. Não sei se estes que usam esse discurso já perceberam, mas enquanto a esquerda bate cabeça agredindo a maior paixão nacional a direita se utiliza muito bem desta via para chegar ao povo. (…) O papel da esquerda organizada deve ser utilizar esta via como campo de lutas para a tomada de consciência da classe frente às contradições que vivemos, e não utilizar as contradições como forma de culpabilizá-la. Isso tudo respeitando toda a caminhada que já existe no interior destes espaços. (…) Quando afastamos o futebol, afastamos junto a possibilidade de diálogo com uma massa da classe trabalhadora e damos de bandeja para o inimigo político se apropriar de algo tão essencialmente popular e revolucionário”. 

Ora, alguns dos piores chavões ideológicos do senso comum que circulam pelo futebol são do “ópio do povo” e “futebol e política não se discute” (esse será focado na Parte II). Grosso modo, é possível esboçar como hipótese uma maior recorrência entre cada discurso e seu respectivo campo político-ideológico: o primeiro chavão é um profundo erro teórico-prático da esquerda; enquanto o segundo chavão é uma poderosa arma ideológica da direita. Questões que se expressam na luta ideológica, mas também tem sua correspondência na luta política. Em suma, são duas formas de acomodação dentro das massas (geral e no futebol); o que não é culpa delas, mas das lideranças que não conseguem organizar sua formação política. Esse segundo chavão é um instrumento seletivo, ou seja, evocado ou não quando convém conforme a circunstância. Vide o papel estratégico dos meios de comunicação de deslegitimar uma manifestação popular de torcedores (“isso é política”, portanto não pode) ou de legitimar uma articulação entre dirigentes e políticos (“isso não é política”, portanto pode). Quando nos acusam de “misturar futebol com política”, nossa réplica é de que o futebol é inerente à política (embora não seja idêntico), e de fato distorção é a ‘ginástica verbal’ que esses que nos acusam fazem para ocultar o caráter político do futebol. Vide que tratamos em análise apenas de uma dimensão política e uma dimensão futebolística como recurso didático diante de um mesmo processo. Tal qual uma análise  de um problema social deve considerar as várias dimensões (como política, econômica, ideológica e até militar), sendo que muito dificilmente um fator viria isolado do outro.

Tampouco seria simples generalizar que “futebol é política”, o que já partiria de uma simetria parcial, pois a história do futebol na modernidade é muito mais recente que a história da política desde o surgimento da humanidade. A começar pela distinção fundamental que se a política tende a pressupor um elemento racional, no futebol surgem grupos que resistem que ele seja fixado por inteiro nesse racional, mas tampouco seria simples generalizar que o futebol é irracional. Isso implica que a primeira participação de cada um no futebol que é escolher um clube para torcer não tem nada de racional, mas dessa postura individual para as progressivas organizações coletivas implica em processos parcialmente racionais. Dessa forma, o clubismo é a principal força de pertencimento no futebol. E a partir da qual uma possível futura participação política não pode desconsiderar. Sobretudo pelo clubismo ser mais forte conforme se apoia em uma rivalidade. Como premissa também há um paradoxo inerente no ato de torcer e sobretudo na torcida organizada, oscilando entre progressismo e conservadorismo:

“O traço forte da identidade do torcedor organizado seria, pois, a assimilação de uma postura reativa, de uma posição refratária às mudanças, de uma resistência deliberada às transformações em curso no universo do esporte moderno, com a inclusão da violência e o culto da força física nesse horizonte de descontentamentos” (HOLLANDA, 2009, p 38).

“por um lado ela se aproxima do pólo da ruptura, com a propensão para negar a maioria das regras, dos valores e dos símbolos associados ao poder; por outro, ela se vincula ao pólo da continuidade, com sua identificação às emissões ideológicas relacionadas ao discurso do nacionalismo, do populismo e do paternalismo”(HOLLANDA, 2009, p 155)

Dessa forma, a dificuldade de aproximar a militância torcedora da militância geral está que a primeira é muito mais “instintiva” e a segunda muito mais “persuasiva”. Assim como boa parte da incompreensão da militância geral diante da militância torcedora diz respeito a esse elemento da continuidade citado.

Internacional
Torcida do Internacional no Estádio Beira-Rio. Foto: Wikipédia

Levar em conta a midiatização implica identificar não somente o lado da oferta de informação uma imensa concentração midiática no monopólio dos discursos (embora também com brechas a mídias alternativas desde influenciadores digitais ou movimentos sociais). Mas também implica identificar o lado da demanda de informação, afinal o futebol permite um imenso efeito de generalização e de repercussão para cada um descarregar quantos “achismos” achar conveniente em seus discursos. Por isso a introdução de tratar dos chavões mais massificados e opostos: ora “ópio do povo” e ora “futebol e política não se misturam”. Assim como o futebol atual permite que se levante as mais variadas “causas” vindas de outras militâncias. E como o futebol é uma configuração social específica em relação à sociedade mais geral, podem haver militantes de outros meios que enquanto não se articulam organicamente com outros militantes torcedores permanecem ou indiferentes ao futebol ou parte de uma massa torcedora. Portanto potencialmente reprodutores de “achismos”.

Em outras palavras, é o que remete ao velho problema do “ópio do povo” de uma elite intelectual desprezar o futebol pela sua profunda popularidade. Outro impacto importante dessa midiatização, significativa para manter a massa torcedora em sua inércia de despolitização, é a de que há muitos torcedores que “torcem” para um dirigente como se isso fosse a extensão do clube ao “defende-lo contra tudo e contra todos” e desconsiderando seus interesses pessoais. É um mecanismo pelo qual o futebol pode ser extremamente ideológico como dominação: pois um dirigente objetivamente está na correlação de forças muito mais próximo de outros grupos dominantes da sociedade, porém subjetivamente ele trata sua imagem para buscar se popularizar através do futebol (e certamente encontra sua correspondência em muito torcedor carente de ídolos dentro de campo e também carente de experiências profundas torcedoras com seus semelhantes que reconheça seu valor). É o que Gomes (2020) trata de casos brasileiros (como a “Bancada da Bola” no Congresso) e outros ainda mais evidentes de presidentes eleitos (Berlusconi na Itália, Piñera no Chile e Macri na Argentina) de uma fácil transição do campo futebolístico e do campo político-institucional.

Torcida do Náutico no Estádio dos Aflitos.
Torcida do Náutico no Estádio dos Aflitos. Foto: Wikipédia

Militância torcedora: torcidas organizadas e coletivos antifascistas torcedores

Como outra premissa fundamental, já sabemos que padecemos de um futebol extremamente midiatizado. Gomes (2020) menciona uma tendência mundial (não somente nos últimos anos, mas nas últimas décadas) de um declínio da organização em sindicatos e partidos na militância geral e, por outro lado, um proporcional otimismo com a ascensão de novas formas mobilização, vide a internet. O que impacta a militância torcedora no sentido que os coletivos (com forte estímulo de proliferação com a Copa do Mundo de 2014) valorizam a vantagem de sua dinâmica interna de uma maior oportunidade à diversidade de pautas e sujeitos, embora com a desvantagem de decisões mais lentas. Acrescento que há para esses novos coletivos uma relação de maior proximidade com a internet por ser o meio principal de sua divulgação, distinto das tradicionais torcidas organizadas em que seu meio principal é através das grandes festas nas arquibancadas (vide o erro comum de novos coletivos do futebol e muitos militantes gerais jovens de super-dimensionar a militância virtual).

Para entender as duas principais frentes da militância torcedora, Gomes (2020) faz uma importante distinção entre os novos coletivos torcedores com um papel de politização do campo de poder do futebol brasileiro e das torcidas organizadas com um papel de contestação a ele. Acrescento que o fator político nas torcidas organizadas nem sempre está presente, ou ao menos nem sempre está presente da forma institucionalmente dominante e identificável. Ao apresentar a correlação de forças, o autor coloca ambas as frentes como grupos dominados em geral na sociedade e no futebol brasileiro em particular. Porém com as torcidas organizadas sendo dominantes em relação aos coletivos. Vide haver nelas uma hierarquia de pautas que dificulta essa aproximação. Embora pautas como a liberdade para torcer e sobretudo de conteúdo econômico (como a elitização dos ingressos) encontra potencialmente mais chances de unidade tática entre os dois grupos do que as lutas contra as várias formas de opressão que os coletivos se preocupam. É na luta de conteúdo econômico que os dois grupos tem mais chance de se enxergarem como classe. Em outros termos, o clubismo (e eventualmente o classismo) de um lado e o identitarismo de outro. Os coletivos surgem como inspirações em novas formas horizontais na militância geral em que uma única causa levanta articulação de grupos e sujeitos de outras organizações. Após essa breve apresentação, no texto da Parte II com estudos de caso ficará mais clara a complexidade entre as duas formas de organização. daqui para o final do texto onde há a critica ao liberalismo de esquerda que o clubismo mesmo sem se entender como tal é uma forma de identidade vista a si própria como mais duradoura que outras identidades de fora do futebol

“Consciências de classe torcedora”: da massa à militância

O recente agravamento nos últimos anos de disputas internas de situação e oposição dentro de uma mesma torcida organizada é uma forte evidência dessa fragmentação que as levaram à atual condição defensiva. Pois uma organização menos coesa facilita as punições das autoridades. Assim como uma articulação política parlamentar insuficiente para se protegerem dessas medidas punitivas. Alguns desses mecanismos ideológicos a favor dos interesses dominantes que nessa fragmentação entre os dominados será parte das reflexões aqui. Uma dinâmica mais específica ao futebol, e principalmente às arquibancadas, é que se buscará compreender o profundo afastamento dos torcedores organizados diante dos torcedores comuns (informalmente chamados de “povão”) dentro da própria arquibancada. Pois como é evidente há uma marginalização às torcidas organizadas que foi (e ainda é) tão incitada por jornalistas, dirigentes e políticos. Já não tão evidente que ela acaba automaticamente associada pela maior parte da massa torcedora fragmentada em individualismos consumistas. Daí porque tanto insisto na influência do neoliberalismo no futebol nas últimas décadas e sobretudo nos últimos anos dominando as várias formas de pensar. Vide por exemplo o absurdo muito comum nos estádios paulistanos de um “torcedor” comemorar uma renda alta de uma partida com bilheteria e “ostentar” diante de um rival que cobra mais barato pelo ingresso. Ou seja, algo profundamente contra a consciência de classe (geral e torcedora) pois defende algo que prejudica ele pŕoprio!

Um esboço conceitual preliminar, o que entendo ser a principal ferramenta de formação política contra o “ópio do povo”, implica apresentar a “consciência de classe torcedora”, reivindicada pelo jornalista e escritor Rodrigo Barneschi. Ou seja, identificar que o torcedor é uma classe, heterogênea nas cores dos clubes, mas homogênea quanto a condições concretas que encontram no estádio e seu entorno. Ele reivindica que cada militante torcedor entenda que a rivalidade é algo restrito a um nível de paridade de condições entre torcedores. Embora felizmente não haja nenhuma instância que regule isso, pois cada grupo de torcedores sabe que somente pode contar com suas próprias forças, seja para torcer ou para se defender. Por isso não se pode comemorar uma punição a um rival do outro lado imposta por um dirigente ou uma autoridade. Pois isso criaria um precedente para em um dia seguinte a mesma punição seja imposta contra o nosso próprio lado.

Como mostra da falta que faz a “consciência de classe torcedora”, há na cúpula do futebol muitos investidores, dirigentes, políticos eleitos e autoridades (supostamente apolíticas) buscando vantagens em intervenções políticas através do futebol pela visibilidade que ele proporciona e com isso obterem vantagens políticas e/ou econômicas. Ora, um exemplo claro disso são as muitas punições contra torcidas organizadas, o que para a maioria do “povão” é recebido em parte como alívio e em parte como vingança, como se bastasse o decreto de uma medida para dar um “basta” nesse problema. E infelizmente a maior parte dessa massa torcedora não percebe que sob o pretexto de combater as torcidas organizadas a maioria das medidas punitivas prejudica ela própria em sua liberdade para torcer. Ou seja, para além da cúpula da estrutura do futebol brasileiro, também é preciso olhar como na sua base há todo tipo de visões distorcidas e até desonestas desprezando a realidade. Vide quando há nos meios de comunicação o relato de alguma ocorrência violenta. Como um conflito entre torcedores rivais ou um protesto de torcedores contra jogadores. O que nas suas condições concretas envolve um número cada vez menor de responsáveis, porém o “povão” já aceita automaticamente (e cada vez mais facilmente) a generalização como se toda a torcida organizada fosse a culpada absoluta.

Manifestação da Torcida do Grêmio. Fonte: Wikipédia

Militância torcedora e militância geral

Os fragmentos a seguir, novamente com apoio de Valerio Arcary, remetem a organizações políticas da militância geral mas que podem muito bem se aplicar também à militância torcedora:

“E a militância é uma atitude. É uma doação deste tempo que é raro e precioso. Uma doação é uma entrega, uma oferta, mas não precisa e não deve ser um sacrifício. Deve ser um compromisso.”

“Somos diferentes, até muito diferentes uns dos outros. Quando entramos em uma organização nos transformamos. Sem a disposição de autotransformação para melhor não há militância. A militância é um aprendizado. (…) Coletivos mais implantados e heterogêneos são mais fortes e, potencialmente, mais úteis, porque tendem a errar menos.” 

“Quando cada um de nós decide fazer uma experiência organizada em um coletivo está aceitando que terá direitos, mas também, deveres diante dos outros. Renuncia-se a fazer somente o que se quer. Deixar de agir, individualmente, significa escolher uma forma de militância em que as ideias, iniciativas e projetos políticos serão, previamente, discutidos com os outros. O que se perde em liberdade pessoal se ganha em força, segurança, eficiência revolucionária. Significa estar disposto, também, a aceitar a vigilância dos outros.”

Um caso da mistura de acomodação com marginalização é quando pessoas ditas de esquerda (embora influenciadas por um liberalismo de esquerda e não pelo marxismo) afirmam que a torcida organizada deveria ser mais “desconstruída” e lutar contra preconceitos dentro e fora da organização. Além de expressarem uma ilusão pacifista, como se a existência de conflitos físicos entre torcedores organizados os deslegitimassem por completo. (Um profundo erro ideológico de “excepcionalidade” do futebol,sendo que na maioria dos grupos sociais há esses conflitos e nem por isso se quer criminalizar todos eles!). Mais do que isso, reduzem as décadas de trajetória de uma torcida organizada em seu auto-sacrifício pelo clube como se essa existência de conflitos fosse seu único critério para os tempos atuais de validade pelos demais militantes. Alegam que sua cultura interna de masculinidade agressiva não permite nem aderir a novas “causas” na sua agenda (já bastante atarefada) nem sequer aderir a novos membros que levantassem essas “causas”. Porém apenas se queixam da torcida organizada, sem que essas pessoas (muito mais simples internautas do que militantes sérios) sequer se dessem ao trabalho de se organizarem em novos grupos com base naquilo que acreditam.

Afinal de algumas décadas para cá a hegemonia que as torcidas organizadas alcançaram nas arquibancadas nunca se baseou em exclusividade, havendo diversos estilos de torcer representados por diversas organizações, e cada um encontrando seu espaço ora em cooperação e ora em competição dentro de uma mesma arquibancada. Vide o impacto nas arquibancadas da primeira onda de punições no final dos anos 90 teve como resultado uma maior organização interna das tradicionais torcidas organizadas “de pista” (principalmente as paulistanas se apoiando no carnaval) e o surgimento de novos estilos de torcidas organizadas por diversos estados como: “barras”, “rastas” e “chopps”. As quais possuem um permanente paradoxo entre coesão x tamanho. Diante dessas evidências concretas, isso reforça a afirmação abstrata anterior (HOLLANDA,2009) que o “torcer” é uma potência constante, entre a ruptura e a continuidade, que nem sempre se fixa a organizações desde sua base e nem sempre se submete a punições desde cima pelos setores dominantes. Afinal também de 5 a 10 anos para cá não serve mais a desculpa de militantes gerais alheios ao futebol que não há espaço para novos grupos mais politizados, sendo que ficou provado na experiência concreta que surgiram vários deles e em vários estados. Vide páginas de redes sociais que levantam essas novas pautas e principalmente coletivos torcedores com atuação simultânea na internet e quando possível nas ruas e nos estádios. Tendo como uma das principais palavras de ordem: “Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”. E ainda adicionaram ao velho estereótipo de “quebrar tudo”, que sempre são acusadas, um novo sentido menos material e mais cognitivo: a ação política para “quebrar tudo” quanto questionar as relações de poder estabelecidas no futebol e na sociedade (GOMES, 2020). sobre a palavra de ordem “nem guerra entre torcidas, nem paz entre as classes” mostra que o rival de clube é contradição lateral mas o inimigo de classe é antagonismo frontal. Em suma, a militância geral ao olhar o futebol precisa se desvencilhar de clichês como a criminalização do torcedor e o “ópio do povo” e passar a conhecer esses novos processos e novos grupos. Pelo motivo teórico que não se pode homogeneizar que por torcida organizada se entenda apenas o estilo conhecido como “de pista”, e assim apenas reproduzir a criminalização que elas já estão sujeitas. E pelo motivo prático já citado que todo espaço que a esquerda renunciar a mobilizar e organizar deixará o espaço aberto para que a direita o faça. A seguir uma contribuição de um fragmento de do militantes comunista Valerio Arcary, cujos textos foram buscados na série “sobre a militância” no portal virtual “Esquerda Online”:

“A experiência histórica confirma que existe sempre o perigo real de burocratização de qualquer organização. Mas as críticas à forma-partido esquecem que os movimentos sociais, as ONG’s ou os sindicatos não estão imunes, tampouco, ao funcionamento autoritário, abuso de poder, degeneração burocrática, ou corrupção de lideranças.”

Afinal, quanto mais o clube e o estádio ficam inacessíveis à participação do torcedor mais o papel de compensação das torcidas organizadas aparece para canalizar essa participação. Diante de um horizonte histórico profundo, isso também diz respeito a uma importante afirmação que o futebol brasileiro tem um caráter tão massificado que nenhum dirigente de clube ou de torcida organizada foi poderoso o bastante para impor um alinhamento ideológico rígido de esquerda ou de direita a sua organização. O que deixa como lição que são espaços férteis de serem disputados. Não há uma relação direta, homogênea e inequívoca de um clube sempre no mesmo lado político independente de conjunturas. Vide clubes são organizações complexas e seus torcedores são comunidades ainda mais complexas. E esse é certamente um dos principais méritos da torcida organizada ser o tipo de organização popular com décadas a mais de existência em relação a outros movimentos sociais e políticos. O que certamente causa certa “inveja” (que conforme se aproximem mais podem se transformar em admiração e aprendizado) na militância geral de fora do futebol diante da união de torcedores organizados em sua maioria por anos e até por décadas em uma mesma organização. Além claro da disposição para a ação no dia-a-dia. É o que veremos em alguns estudos de casos na Parte II.

Já o elemento em que a militância geral mais se aproxima (embora imperceptível para muitos) da militância torcedora é um elemento bem prático com o chamado “troféu de pista”. Algo em comum de uma cultura política não-escrita em ambos campos. Embora olhares mais desatentos imaginem que isso ocorra apenas com torcidas organizadas, é uma tática de “ação direta” bastante comum em coletivos torcedores, fascistas x coletivos antifascistas e até mesmo em poucos casos entre partidos políticos tradicionais. Ou seja, a disputa nas ruas com um rival/adversário/inimigo pode ser considerada vitoriosa pelo critério de maior quantidade, pela vitória em confronto físico, por fazer o outro lado correr, ou até mesmo nesse caso por conquistar materiais como camisas e principalmente bandeiras dele. O que depois é comemorado colocando-o de cabeça para baixo como prova dessa conquista e tem um forte efeito de divulgação do ocorrido e principalmente de legitimar a força do próprio grupo e deslegitimar o outro lado. O que remete a um forte símbolo do antifascismo internacional em 1945 que foi o enforcamento de Mussolini e seu corpo pendurado de cabeça para baixo. Um símbolo tão forte que transborda suas origens a ponto de ser frequentemente apropriado por grupos apolíticos (inclusive várias organizações torcedoras) ou até por grupos fascistas. O que também remete a uma grande vitória do antifascismo nacional em 1934 na Praça da Sé. Nesse episódio da “revoada das galinhas verdes”, os integralistas correram e tiveram suas roupas verdes tomadas como “troféu de guerra”.

(Obs: embora nesse atual texto aprofundo os protestos de torcedores por motivos políticos, menciono que os protestos por motivos esportivos não são irracionais, como o senso comum tende a afirmar. Mas sim são parcialmente políticos, pois há alguma consciência que quanto mais excludente se torna o futebol pelas vias formais do clube e do estádio mais os protestos se tornam “inevitáveis” como o último recurso de cobrança por participação dos torcedores. Embora superficialmente aparente haver apenas cobrança pelo resultado do time. Tratei desse tema em texto anterior. E acrescento que esse pode ser um sintoma do quão profundo o abismo que o “futebol moderno” afasta torcedores de jogadores; o que em última instância é a fragmentação da consciência de classe dos dominados)

Análise de conjuntura (2016 em diante)

Após tanto tratar antes dos dominados, é preciso agora posicioná-los diante dos dominantes. Toda análise de conjuntura deve partir de um diagnóstico das condições estruturais. A análise de conjuntura é parte da disputa política e um terreno em si mesmo de disputa. Conjuntura, como o próprio nome diz, é uma circunstância imediata com um conjunto de fatores com alguma coerência articulados e que tendem a ter alguma duração (embora nunca eterna). O que implica identificar no momento uma dupla posição defensiva para a esquerda nacional e mundial: em um horizonte imediato com a ascensão do neofascismo e em um horizonte distante (mas ainda permanente) com a ascensão do neoliberalismo. Grosso modo, isso equivale em um paralelo a uma também dupla posição defensiva para a militância torcedora diante de recentes proibições generalizadas e da já não tão recente arenização (levando a ampla exclusão dos mais pobres dos estádios). O que são duas faces da mesma moeda, pois um dos objetivos estratégicos da repressão e proibição são suprimir qualquer tentativa de contestação organizada pelas classes populares à arenização e por sua consequente exclusão. (Obs: também tem um forte efeito simbólico o paralelo que costumo traçar entre o golpe parlamentar contra Dilma e o “golpe” da torcida única no futebol paulista, ambos em abril de 2016. Seja para a militância geral de esquerda e seja para a militância torcedora, respectivamente, ambas têm em comum a partir de então uma certa paralisia e inoperância imediata ao não conseguirem reagir usando sua principal tática que é a mobilização popular, como nos primeiros meses daquele ano, seja na rua e/ou no estádio). Ora, novamente segundo Arcary, há 4 possíveis reações às derrotas: desmoralização, auto-negação, auto-engano e auto-crítica são os 4 efeitos possíveis, para militantes ou organizações, após uma derrota; sendo que apenas o último permite se enfrentar a correlação de forças e até virá-la. Ou seja, sair da dupla posição defensiva implica diversas auto-críticas, re-organizações e unidades táticas dentre as várias militâncias. Em um jogo de palavras dialético: torcedores militantes se tornarem também militantes torcedores e vice-versa.

A importância desse paralelo de dupla posição defensiva está que tanto para o futebol quanto para a política existe uma atual correlação de forças entre dominantes bem articulados e dominados bem fragmentados. E isso é mais importante do que o efeito simbólico da coincidência temporal dos dois golpes. Assim como a importante constatação que a massa torcedora e a massa popular estão profundamente fragmentadas diante da dificuldade de suas organizações de vanguardas (torcidas organizadas e coletivos no futebol e partidos na política) de saírem dessa situação defensiva. Embora houve durante a Copa do Mundo de 2014 uma curta experiência contra essa fragmentação que foram protestos pontuais da Frente Nacional dos Torcedores (logo depois inexistente) e principalmente uma experiência já de alguns anos com a formação da Associação Nacional das Torcidas Organizadas. Ambas como um pequeno legado positivo no futebol da intensa agitação política com o junho de 2013: temporários de agitação para a primeira e duradouros de prevenção institucional para a segunda (GOMES, 2020). Algumas contribuições do militante comunista Valerio Arcary sobre essa conjuntura geral defensiva através dos seguintes fragmentos:

“A inércia provocada pela imobilidade política sobre a cabeça das pessoas, essa terrível lentidão do psiquismo humano, hipnotiza a imaginação de tal forma que as massas não vêem possibilidade alguma de transformação da sociedade tal como ela está.”

“A frustração política da vanguarda ativista com os partidos atingiu um grau muito elevado. A desconfiança afastou muitos entre os melhores militantes das organizações coletivas. A febre do independentismo contagiou. A consequência foi a atomização.”

“Quando atravessamos uma etapa defensiva e desfavorável da luta de classes, e a luta pelo poder fica mais difícil, tende a ocorrer um duplo processo. Uma parcela da militância mais cansada, desgastada ou desmoralizada se afasta dos coletivos organizados. Outra parte do ativismo se engaja na superpolitização de tudo. São compreensíveis e, até previsíveis, mas não inofensivos.”

Considerações Finais

Uma crítica mais ampla na política que desenvolvo diante dessa situação no futebol é que é muito cômodo a pessoas ditas de esquerda querer cobrar demais das torcidas organizadas por essas novas “causas”. Porém grande parte das próprias vanguardas das esquerdas mais institucionalizadas estão perdidas demais (diante da conjuntura defensiva mais geral de meia década já citada com o acúmulo de derrotas) e acabam até que pouco cobradas por suas bases. O que se converte em mais uma dificuldade da conjuntura ao estarem como burocracias tão distantes de suas massas populares. Por isso a importância introdutória dos riscos que a atual conjuntura de dupla posição defensiva impõe. Em suma, é muito cômodo o erro ideológico da “excepcionalidade” do futebol por um olhar mais desatento acusar que as torcidas organizadas estão longe do povo e da tarefa de organizá-lo. Mas no fim das contas boa parte das esquerdas estão muito mais longe, diante das seguidas derrotas eleitorais e políticas (como demonstrado na conjuntura pós-2016). Pois buscam ocupar espaços nos gabinetes de governo e principalmente nas redes virtuais e nas urnas, porém cada vez menos nas ruas. O que pode ser compreendido pela frequente hipótese da necessidade de retomar o assim chamado trabalho de base. Ou seja, voltar a disputar a mobilização política das classes trabalhadoras em seus locais de trabalho, transporte e moradia. Pois o acúmulo de vitórias pela direita nos últimos anos se deu a ter sido mais efetiva em seu “trabalho de base” no dia-a-dia que se refletiu em maiores mobilizações de ruas, o que se refletiu em vitórias nas urnas. Mas cabe à esquerda não somente retomar essa forma de organização, porém não mais sob o erro de repetir as mesmas bases ideológicas que levaram a tantos erros. Mas sim fazer uma profunda autocrítica quanto ao seu conteúdo ao retomar o classismo (marxismo) diante da péssima decisão a favor do identitarismo (a base de onde cresce o liberalismo de esquerda) que coincide com as várias derrotas políticas dos últimos anos. O que não significa desprezar as identidades, mas sim desprezar a hegemonia das identidades como gênero, cor e sexualidade sobre a condição de classe que as articulasse. O liberalismo de esquerda fragmenta indivíduos e identidades em um “mercado” simbólico e dificulta a militância por perder o sentido de coletivo. Com maior ou menor papel do identitarismo nisso, a militância geral e a militância torcedora (principalmente as organizadas) por serem minoritárias dentro d massa geral e da massa torcedora desenvolvem reflexos sectários ao entender-se mutuamente ambientes de difícil penetração ou diálogo. Vide em texto anterior tratei do imenso prejuízo do identitarismo reforçar a lógica punitiva mais geral (também conhecido como “esquerda punitiva”).

Além de que, em um sentido mais profundo, hoje para uma mentalidade de um liberalismo de esquerda é muito cômodo acusar que a torcida organizada não é democrática (em um sentido liberal restrito) por conta do suposto machismo e homofobia presente nela. Mas pouco leva em conta que a adesão de um membro a uma torcida organizada (sobretudo as tradicionais “de pista”) sempre foi e ainda é bastante democrático (em um sentido popular) pois lá dentro são diluídas inúmeras diferenças sociais vindas de fora. Por fim, ironicamente a ascensão democrática nos anos 80/90 coincide inversamente com a exclusão da militância torcedora tanto do campo esportivo quanto do campo cultural. Dessa forma, acadêmicos não podem estar juntos de torcedores apenas na “festa”, porém abandoná-los na hora da “guerra”. Ou seja, é preciso serem especialistas e militantes ao mesmo tempo ao lidarem com o tema violência e torcidas estudando e até intervindo.

Leituras de Apoio

GOMES, Vitor. A militância político-torcedora no campo futebolístico brasileiro. 2020. 139 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. 7, 2009.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Sobre a militância torcedora (I): premissas gerais. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 21, 2021.
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