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Sobre Aranhas e macacos

Victor de Leonardo Figols 22 de setembro de 2014

No dia 28 de agosto a equipe do Santos foi a Porto Alegre enfrentar o Grêmio, em jogo válido pela Copa do Brasil. O que parecia mais um jogo normal da equipe gaúcha contra a equipe praiana ganhou uma repercussão negativa e abriu uma debate sobre o racismo no futebol brasileiro, mostrando que já passou da hora de discutirmos o assunto.

O Santos de Aranha, com 2 a 0 no placar, começou a administrar o jogo para levar a vantagem para a partida de volta, em quanto isso, o Grêmio acatava, buscando pelo menos um gol para reduzir o prejuízo de ter tomado dois gols em sua casa. Nos minutos finais, o time do Grêmio obrigou a uma sequência de boas defesa do goleiro Aranha, e em resposta a torcida gremista se sentiu no direito de usar do racismo para atacar o goleiro do Santos. Por alguns minutos, foi possível ver e ouvir torcedores gritando a palavra “macaco” e imitando o som e o gesto do animal toda vez que o goleiro santista pegava na bola.

Transtornado, Aranha reclamou com a arbitragem, que nada fez a respeito (só relatou o ocorrido na súmula no dia seguinte) e ainda argumentou que o goleiro estaria insultando a torcida. Já no banco, Robinho, que sofreu com ofensas racistas na Itália, se levantou e também protestou contra o árbitro. A atitude do juiz não veio, então, Aranha pediu para que os cinegrafistas filmassem um grupo de torcedores que estava atrás do gol ofendendo-o, mas nenhum deles virou a câmera para a torcida. O único registro veio da ESPN que conseguiu gravar um grupo de torcedores imitando o som de macaco e uma moça gritando a palavra “macaco” para se referir ao goleiro Aranha.

Imagem: Felipe de Leonardo – felipedeleonardo.com

Na saída de campo, o goleiro santista falou com a imprensa, e declarou: “Fico nervoso mesmo quando essas coisas acontecem, é algo que dói. Quando me chamaram de macaco, de preto, bati no braço e disse que sou preto sim”. E alertou, racismo no Sul do país e na Arena do Grêmio é comum.

E de fato, a palavra “macaco” está na boca de muitos gremistas, principalmente para se referir aos jogadores e torcedores do Internacional. Diversas músicas xingando a torcida colorada podem ser ouvidas vindo das arquibancadas gremistas, em uma delas o termo “macaco imundo” é usado para se referir aos colorados, e tem quem diga que não há racismo nisso. Há quem afirme que essa referência à torcida colorada tem duas origens, a primeira diz que “macaco” era usado para chamar os torcedores do Internacional que subiam em árvores para acompanhar os jogos, a segunda é que por um bom tempo o Internacional tentava imitar os passos do Grêmio, daí a possível origem do termo.

Entretanto, em ambos os casos o racismo está impregnado, basta lembrar que o Internacional foi muito popular entre os negros, chegando até a organizar competições entre clubes formados por jogadores negros, como a Liga da Canela Preta, ainda na década de 1920. Também foi em 1925 que o Internacional aceitou ter jogadores negros no elenco. É precisos lembrar também que no estatuto do Grêmio havia uma cláusula que impedia os negros de fazerem parte do elenco. O Grêmio foi o último clube brasileiro a aceitar negros, foi só em 1952 que um negro vestiu a camisa do tricolor gaúcho.

Ainda hoje, a discussão sobre o racismo não parece ter avançado muito no Grêmio, e parece que na nova Arena do clube o racismo virou algo comum. Mas, mesmo antes de ir para o seu novo estádio, a torcida gremista imitou o som de macaco para o Zé Roberto, que é jogador e capitão da equipe gremista. Já na Arena, que tem menos de dois anos, dois atos racistas foram registrados, nos últimos cinco meses.

Três dias depois do episódio os jogadores do Grêmio entraram com faixa contra o racismo. Foto: Edison Vara – Grêmio FBPA.

No dia 30 de março, em um jogo do Campeonato Gaúcho contra o Internacional, o jogador colorado Paulão foi insultado por parte da torcida do Grêmio. Paulão denunciou, mas sem registro dos agressores, o Grêmio foi apenas multado em 80 mil reais. O segundo caso foi de Aranha, que devido aos registros feitos pelas câmeras ganhou repercussão nacional, abriu o debate sobre o racismo no futebol e mostrou que muitas pessoas ligadas direta e indiretamente ao futebol não entendem e não sabem lidar com o racismo.

No mesmo dia em que Aranha foi vítima da torcida gremista, Vanderlei Luxemburgo, técnico do Flamengo, comentou o caso falando sobre a moça identificada pelas câmeras da ESPN dizendo que foi “uma ira momentânea que ultrapassou o limite da educação”. Luxemburgo ainda completou: “Mike Tyson, que era negro, desestabilizava seu adversário chamando de crioulo, de gay. Aquilo é uma competição e não vejo como racismo”.

A ideia de que o racismo “faz parte do futebol” apareceu na boca de algumas pessoas ligadas ao futebol, como por exemplo, o ex-presidente do Grêmio, Luiz Carlos Silveira Martins. Conhecido como Cacalo, o ex-presidente do clube gaúcho disse: “Dentro do folclore do futebol, o Internacional coloca uma faixa ‘aqui é macacada’”, assim os gritos de “macaco” fazem parte do contexto do futebol, ou como disse Cacalo “É dentro do folclore do futebol”. O ex-presidente do Grêmio usa o Internacional como exemplo, dizendo que o clube colorado se enxerga como “macaco” uma vez que coloca uma faixa na torcida dizendo “Aqui é macacada!”.

Na partida seguinte ao episódio vários torcedores (as) gremistas se manifestaram. Foto: Edison Vara – Grêmio FBPA.

É preciso lembrar que o mascote do Internacional é o Saci Pererê, e por alguns anos, foi um macaquinho com o nome de Escurinho (referência a um dos maiores ídolos da história do Internacional). Soa extremamente racista um clube usar um macaquinho com o nome de Escurinho como o seu mascote, mas por outro lado, é possível pensar que o clube está invertendo a lógica do agressor, que durante anos foi – e ainda é – identificado pelo seu rival como um time de “macacos”. Deste modo, o Internacional e sua torcida desconstroem a imagem imposta sobre eles, invertendo a lógica do agressor e assumindo a identidade que lhes foram atribuídas, talvez como uma tentativa de diminuir a agressão. Como o Palmeiras que adotou o Porco como símbolo, um xingamento a comunidade italiana que torcia pelo clube, ou como o Corinthians que assumiu a identidade de time popular.

Cacalo continua com a sua ideia de que “faz parte do folclore do futebol”, segundo ele “Essa menina está virando assassina por ter feito um grito do folclore de futebol”. E ex-presidente ainda troca os papéis, transformando a agressora em vítima e a vítima em agressora, sugerindo que o goleiro do Santos “não é nenhum coitadinho”.

Para Cacalo, Aranha protagonizou uma “cena teatral” ao escutar um “gritinho”, e que os gritos vindos das arquibancadas foi apenas uma resposta ao goleiro que estava “atrasando” o andamento do jogo. Quem compartilha desta ideia é o jornalista gremista, Eduardo Bueno, que disse: “O Aranha se comportou como um escroto, não estou falando no momento da denúncia, calma, estou falando antes. […] Ele fez muito bem em denunciar, estou dizendo o que antecedeu a revolta da torcida. Ele ficou quatro minutos, se recuperou e depois caiu de novo.” e completou “Pra mim o Aranha é um merda que nunca ganhou nada.” Tanto Cacalo quanto Eduardo Bueno tentam justificar os atos racistas, deixando a entender que o goleiro do Santos provocou a torcida gremista, seguindo essa lógica, ambos reiteram a ideia de que os gritos racistas fazem parte do jogo.

Pelé afirmou que “Aranha se precipitou em querer brigar” e que o melhor caminho para combater o racismo no futebol seria não dar repercussão aos casos, ou seja, segundo Pelé a omissão e resignação seriam a melhor forma de evitar o racismo no futebol. Uma lógica um pouco débil, uma vez que se entende que não falar sobre o racismo coibirá novos atos racistas. Pelé também deu declarações que endossam a ideia de que o racismo no futebol é algo normal. Segundo o ex-jogador, os gritos racistas “são explosões naturais” do futebol, o jogo é extremamente passional, e que, portanto, é algo que “não vai dar para mudar.”.

Pelé criticou a atitude de Aranha. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

A moça flagrada gritando “macaco” foi identificada. Poucos dias depois, Patrícia Moreira concedeu entrevista coletiva, ela disse: “Aquela palavra macaco não foi racismo de minha parte, foi no calor do jogo, o Grêmio estava perdendo”. A torcedora pediu mais desculpas ao Grêmio – que foi expulso da Copa do Brasil e recebeu uma multa de R$ 54 mil – do que ao goleiro Aranha. O advogado da Patrícia afirmou que “Macaco, no contexto dentro do jogo, não se tornou racista. Isso se torna um xingamento dentro do futebol. Uma das expressões dentro do futebol”. E mais uma vez patinou na ideia de que o racismo faz parte do jogo.

Mas não, o racismo, assim como a homofobia, não faz parte do futebol, como bem explica Paulo Nascimento: “Racismo e homofobia não fazem parte do jogo. São ofensas que se apropriam indevidamente das filiações étnico/ raciais e de orientação sexual de alguns para gerar humilhação. Isso tudo sob o pretexto do ‘faz parte do jogo’”. Partir da ideia de que “faz parte do jogo” é relativizar o racismo, e pior do que isso, é naturalizá-lo dentro do ambiente do futebol e esconder as tensões raciais existentes dentro dos gramados e nas arquibancadas.

Casos como o do goleiro Aranha ocorrem todos os dias dentro do futebol, e fora dele também. O racismo não se restringe apenas ao jogo, pelo contrário, está impregnado na sociedade, e em muitos lugares naturalizado sob o pretexto de que no Brasil não há racismo, numa leitura bem freyriana, no melhor estilo da “Democracia Racial”.

Lembro de alguns casos recentes no futebol, como do Tinga, do Arouca, do arbitro Márcio Chagas da Silva, do Francisco de Assis, do Paulão, do Marino, do goleiro Igor (que foi chamando de “Aranha” e de “macaco” por torcedores do Tombense-MG), e de tantos outros que foram vítimas daqueles que acreditam que o racismo no futebol faz parte do jogo. E enquanto isso, “no ‘calor do jogo’ milhões de negras e negros foram e são assassinados” todos os dias.

Referências:
Chamar de macaco e imitar animal são coisas comuns na Arena do Grêmio
Ex-presidente gremista: ‘macaco é folclore do futebol’
Escritor gaúcho diz que Aranha foi “escroto” e polemiza sobre racismo
Pelé pede combate ao racismo, mas diz que ‘Aranha se precipitou em querer brigar’
‘Não sou racista’, diz Patrícia Moreira, que pede ‘perdão’ a goleiro Aranha
Racismo e homofobia não fazem parte do jogo

Esse texto foi originalmente publicado no blog O Campo e cedido para publicação nesse espaço.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Sobre Aranhas e macacos. Ludopédio, São Paulo, v. 63, n. 7, 2014.
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