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Sobre concessões, conquistas e o abismo entre os gêneros no futebol

Luciane de Castro 26 de agosto de 2018

Estamos, em tempos recentes, sublinhando diariamente a necessidade de equiparação nas condições para que homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades. Dentro e fora das quatro linhas, essa necessidade se revela de modo mais acentuado e segue demonstrando o quanto as instituições responsáveis pela organização do jogo, mantém um padrão que segmenta de modo cruel e lima, de certo modo, as condições para que as mulheres atinjam espaços de mais destaque.

Longe de apontar demérito ou menosprezar a carreira de muitos técnicos, a concessão de licença honorária aponta diretamente para esta questão. A própria “regra” para a concessão de tal licença delimita o número, e claro, o gênero, de pessoas agraciadas com a licença.

Conhecendo o tempo de trabalho e as conquistas de muitas mulheres dentro das quatro linhas, me peguei perguntando por qual razão as interessadas em se qualificar – verbo largamente utilizado por gestores da CBF para argumentar sobre o espaço negado às mulheres em cargos de comando – precisam assumir valores altíssimos e muitas vezes impraticáveis, para estarem em algum pé de igualdade com os homens frente às oportunidades de trabalho no futebol.

A licença honorária é concedida a técnicos com mais de 60 anos de idade, tenham somado mais de 50 pontos durante o ofício – de acordo com critérios da Conmebol que não estão explícitos na matéria veiculada no site da CBF – que tenham conquistas com seleções principais e de base, além de campeonatos nacionais e internacionais com clubes durante suas carreiras.

Repito: longe de apontar demérito ou desrespeito por muitos dos técnicos agraciados com a licença honorária, mas por que não ceder uma bolsa para a licença pró – a mais cara da CBF Academy – ao invés de simplesmente ceder a licença? Óbvio que alguns dos nossos treinadores, com trabalho de sucesso, não têm condições de frequentar o curso, mas outros as têm e seria mais justo e implicaria em menos questionamentos.

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Somos Futebol: Desenvolvimento do Futebol Feminino 2017. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Outro apontamento: com licenças cujos valores variam entre R$ 5 e R$ 18 mil reais, como as mulheres que estão no comando de equipes femininas poderiam fazer os cursos e se qualificarem para terem as mesmas oportunidades? E a pergunta é válida, já que sabemos bem quanto se paga aos técnicos.

Desde a exclusão da esdrúxula lei que proibiu às mulheres a prática do futebol, o discurso da “concessão” é utilizado como forma de demonstração de força: “Nós (senhores mandatários do futebol nacional) concedemos a elas o direito de praticar, o direito de arbitrar, o direito de gerenciar, o direito de treinar.”. Até no discurso é preciso demonstrar que só estamos aonde estamos porque “eles deixaram”, quando na verdade tudo é fruto de conquista, de exigência, de posicionamento e de luta.

As ditas regras da Conmebol para concessão de licença honorária segmentam no sentido de fragmentar e as mais atingidas por este fragmentação são as mulheres, não bastassem, óbvio, os valores das licenças.

Por comparação simples, que não requer grandes cálculos ou continhas simples de somar ou subtrair, identificamos a disparidade, o abismo entre o que se paga aos homens e o que se paga às mulheres nas mais variadas profissões. O universo futebolístico nos traz estes dados de modo mais simplificado porquanto é uma reprodução das questões de gênero em nossa sociedade.

Observar, refletir, apontar e convidar ao debate são ações inerentes ao que intentam colaborar de modo efetivo com a modalidade. Se ao nos depararmos com situações que apontam, indubitavelmente, a discrepância no tratamento às pessoas e não nos posicionamos e questionamos o por quê desta diferença, colaboramos para que o abismo se aprofunde cada vez mais.

Para além dos argumentos pautados em questões corporativas, mercadológicas ou qualquer futebolês moderno que o valha, precisamos nos pautar pelas questões humanas e de direitos. Se os espaços a serem ocupados são direito de todos, que os caminhos trilhados sejam iguais, para que todos os ocupem. Não é justo que o das mulheres tenha sempre mais obstáculos, ou, como de hábito, nem caminho existe.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Sobre concessões, conquistas e o abismo entre os gêneros no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 27, 2018.
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